Rio Grande do Sul

Coluna

Que se mantenha o veto ao homeschooling na ALRS!

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Em 2019, a AMPD enfrentou sozinha como grupo de pressão na Assembleia Legislativa do RS o projeto de educação domiciliar no RS - Vinicius Reis/ALRS
Se lugar de criança é mesmo na escola, então que não se vote o homeschooling. Ou é pura incoerência

Primeiro é importante dizer que não sei o que me incomoda mais neste projeto do homeschooling. O RS passaria a ser o 1º estado no país, depois do DF, a permitir a modalidade, que não tem regulamentação federal e por isso é inconstitucional.

A aprovação deste PL na ALRS foi de 28 votos favoráveis e 21 contrários (bem divididos os votos) e o governador vetou porque esse projeto tem elementos jurídicos inconstitucionais claros e porque também se alinha à política e à agenda de retrocessos na educação federal. Nesta o governador acertou, muito embora eu discorde bastante da política educacional de forma geral do governador, a opinião pública também tem sido contrária a esse projeto.

A justificativa do governador para o veto foi de que a educação domiciliar só pode ser regulamentada por lei federal aprovada no Congresso e citou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). “Em que pese ser meritório, o Projeto de Lei de iniciativa do deputado Fábio Ostermann deve ser vetado por razões de constitucionalidade [...] Sob o aspecto jurídico, o Projeto padece de vício dada a competência privativa da União para legislar sobre a matéria", artigos 22 e 24 da CF. E há ainda que se considerar que a educação é considerada direito social, inclusive previsto em cláusula pétrea (art. 6º da CF)."

Em 2018, o STF definiu, de fato, que o ensino domiciliar, conhecido como homeschooling, não deve ser admitido no Brasil enquanto o Congresso não editar uma lei que regulamente a prática. Esse foi o entendimento da maioria dos ministros sobre recurso que pedia o reconhecimento legal da educação em casa. No Brasil, de acordo com a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), 15 mil estudantes entre 4 e 17 anos, de 7,5 mil famílias, estão na educação domiciliar. A estimativa é que no RS tenha cerca de mil famílias.

A escola é essencial e vimos como foi difícil não ter a escola fisicamente neste período da pandemia, embora alguns pudessem ter tido aulas remotas, os nossos filhos, filhos na AMPD, inclusive, e quando possível não levamos os nossos filhos para a escola neste momento de gravidade da pandemia. Lutamos por uma volta às aulas segura porque colapsou o nosso sistema de saúde e milhares de vidas foram perdidas. Para nós, a suspensão das aulas no pior momento da pandemia, de mortalidade e transmissibilidade da covid acima de 1,2 (RT), entre março e abril deste ano, pelo Poder Judiciário, através da ação civil pública da Associação Mães e Pais pela Democracia, salvaram mais de 1.000 pessoas no RS.

Nós sempre defendemos a escola, o fortalecimento da escola pelo acesso que produz e possibilidade de transformação real da sociedade, se valorizada e priorizada, e de desvelamentos das violências contra as crianças, sobretudo sexuais e o trabalho infantil. No nosso país, 80% das denúncias de assedio a crianças são feitas nas escolas. Então a escola é um meio de proteção essencial e precisamos da sua obrigatoriedade. Foram mais de 95 mil denúncias de violência contra a criança no Disque 100 no país em 2020.

Essas questões que precisam ser priorizadas e ganhar a Agenda, os debates e a priorização das políticas públicas educacionais. Isso sim é estar sintonizado com o tempo, com a realidade e com o compromisso histórico de apoiar o país a se reconstruir, virar o jogo do descontrole sanitário e do apagão educacional. Além disso, a aprovação da modalidade da educação domiciliar pode, inclusive favorecer que crianças com deficiência sejam retiradas da escola e, com isso, do convívio social, ou, ainda, legitimar que instituições recusem a matrícula desses estudantes.

O número de crianças em sinaleiras da capital gaúcha cresceu 178% em 2020 – quem circula pelas ruas de Porto Alegre já percebeu: há mais crianças nas sinaleiras. Levantamento da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) mostra que, em 2020, 334 crianças e adolescentes foram abordados pela primeira vez em situação de trabalho infantil na nossa cidade; no ano anterior, haviam sido 120, um aumento de 178,3%.

A discussão sobre educação domiciliar (homeschooling) está intimamente associada às ideias e ao posicionamento político dos que defendem o “Escola Sem Partido” e as Escolas cívico-militares que são projetos da extrema direita brasileira contra a ciência e uma educação libertadora e está na agenda ultra conservadora da política brasileira e ligada ao bolsonarismo. E o mais irônico de tudo: quem propõe o projeto de educação domiciliar que enfraquece a escola para todos é quem defendia a volta às aulas em plena bandeira preta, sem vacinação dos professores e com o sistema de saúde colapsado no RS e com liminar e julgamento nesse sentido. Se lugar de criança é mesmo na escola, então que não se vote o homeschooling. Ou é pura incoerência e oportunismo e um delírio ideológico.

Mas vou dizer que lugar de criança é na escola com segurança, fiscalização e monitoramento com possibilidade de controle público. Sempre defenderemos a escola e a Associação Mães e Pais pela Democracia tem responsabilidade com a vida e com a educação voltada à vida!

A defesa da educação domiciliar no Brasil tem ocorrido de forma limitada, descontextualizada, sem ancorarem na realidade, sem estar atrelado a orçamento, pessoal, sem estudo de perfil das famílias para uma boa implementação de política de educação e responsável com as vidas, sobretudo dos menores. Parece reduzir significativamente os desafios da educação básica brasileira e que ainda infla mais os parcos recursos estatais, na minha opinião. E o homeschooling do RS depende de fiscalização de conselhos tutelares e secretarias de Educação. Isso sim que é querer depender do Estado e querer usar o público no privado.

Não há capacidade institucional e estatal para fiscalização do homeschooling e nem nossa como mães e pais e sociedade civil. É uma matéria que precisa de regulamentação federal primeiro e isso exige amplo debate público e nacional, de modelo de sociedade. No caso desta política pública, cada “liberdade de escolha” significa a redução de investimento e de qualidade nas escolas públicas e no enfrentamento das violências contra as crianças, porque drena pessoal, atenção e recursos e não é só uma simples oferta de um método, significa também o desprezo com as crianças que têm direitos violados ou são abusadas sexualmente. Essas que são um número muito grande serão revitimizadas com o aval estatal. É disso que se trata.

O que mais aprendemos com a cruel pedagogia do vírus é que a solidariedade, o social e o diálogo são fundamentais e que devem superar o individualismo exacerbado que inclusive nos colocou nesta situação de mortes evitáveis, pandemia descontrolada, fragilização da democracia e de banalização da vida.

Para nós da AMPD mais do que notas e aprovações em vestibulares que nossos filhos vão muito bem, nós queremos uma escola pública forte, para todos, de qualidade, laica, plural para que eu possa ter inclusive um ensino privado forte e não refém de pais-clientes e que não aceitam a diversidade de pensamento na educação. Há inúmeras opções de métodos, privados e redes de ensino, para além do público. Nós queremos filhos engajados e que saibam resolver problemas concretos e sociais, saibam mediar conflitos desde a escola para que possam encontrar as soluções para a vida em sociedade com mais pluralidade e menos ódio, intolerância e violência.

A escola, claro, precisa ser avaliada pelos seus déficits, tanto públicas quanto privadas, em relação ao conteúdo, às formas de inclusão e aos resultados, mas as soluções não podem ser simplistas e restritas para um pequeno grupo e gerar um revés social enorme e que impacta todas as políticas sociais. Isso que é falta de sensibilidade. Se quer, então, um grupo que terá um ensino muito mais qualidade? Reforço de privilégios então??

Há falta de investimento e desestruturação das políticas educacionais no estado neste sentido, as mais de 60 escolas fechadas no RS, acabaram com a Educação de Jovens e Adultos e reduziram muito o atendimento e a qualidade da educação especial, retirando professores desse atendimento para o atendimento geral, por exemplo. Por isso que nós entendemos que esse projeto enfraquece a educação.

Não funciona no Brasil o homeschooling com a violência contra as mulheres e contra as crianças, sexual e letal, pois somos o campeão no mundo em violência letal e juvenil em números absolutos, e com a redução das políticas públicas de proteção social não dá para aceitar um projeto com tanto revés social e educacional, seria “a escolha de liberdade” às avessas.

Em estudo recente apresentado pela OIT e UNIFEC chamado “Trabalho infantil: Estimativas globais de 2020, tendências e o caminho a seguir" – disponível somente em inglês – divulgado às vésperas do Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, em 12 de junho, há um alerta que o progresso para acabar com o trabalho infantil estagnou pela primeira vez em 20 anos, revertendo a tendência de queda anterior que viu o trabalho infantil diminuir em 94 milhões entre 2000 e 2016 no mundo. Isso é muito grave e essa tendência se expressa ainda mais no Brasil.                      

Sobre a flagrante inconstitucionalidade do homeschooling no RS, a norma Constitucional não prevê que os recursos públicos sejam destinados ao ensino domiciliar ao estabelecer taxativamente que sua destinação se dará às Escolas Públicas (art. 213 da CF). Ainda, o art. 214 Carta Magna prevê a universalização do ensino escolar. Os artigos 7º e 20º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional preveem, respectivamente, que o ensino é livre à iniciativa privada e estabelecem as categorias de instituições privadas de ensino, podendo as famílias que almejam uma educação com orientação confessional específica criarem uma instituição comunitária ou confessional que atenda aos seus princípios, desde que sejam observadas as normas gerais vigentes que sistematizam a base curricular nacional.

Precisamos de busca ativa, buscar as crianças que não estão na escola e não é desresponsabilizando o Estado com a educação, com a regulamentação do homeschooling que pode reduzir e enfraquecer o enfrentamento das violências, da fome e do trabalho infantil. Para além da pandemia, que possibilitou experimentar os efeitos da educação em casa, mitigada pela interface online com a escola, a educação domiciliar retira as crianças do convívio da escola que é o lugar da diversidade e da pluralidade em relação à família e da sociabilidade e lugar de saúde mental por tudo o que ela produz.

Com a enorme evasão escolar, legado da pandemia, e segundo pesquisa do Conselho Nacional de Juventude (2020), 28% dos jovens que evadiram em decorrência da pandemia não pretendem retomar os estudos quando houver retorno presencial, ficará justificado o trabalho infantil se os pais disserem que o ensino se dá em casa. E as crianças exploradas e abusadas sexualmente pelos seus genitores e familiares, o que não é raro, infelizmente, simplesmente não irão na escola com o pretexto de estarem estudando em casa, e sempre foi na escola o desvelamento dessas violências.

Por fim, temos é que reconstruir a escola a partir de uma escola pública mais inclusiva e humanizadora, com espaço para a subjetividade e rompimento dos preconceitos, fomentando seres livres, focados no bem comum, empáticos e capazes de resolver problemas concretos, sem tanto foco no individualismo e na competição, a começar pela experiência de aprender no coletivo, e nada como estar em uma sala de aula para barrar doutrinações e violências.

Pela manutenção do veto do governador ao homeschooling apresentado no RS na ALRS!

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko