A saga do Quilombo da Família Silva para seguir habitando o território onde seus antepassados chegaram há mais de 70 anos em Porto Alegre confunde-se com a trajetória das famílias negras brasileiras nas grandes cidades. Até conquistarem a titulação, em 2010, reparação inédita no Brasil até então, foram décadas suportando pressões, racismo, agressões e tentativas de despejo. Isso porque o quilombo, outrora uma região afastada da cidade repleta de chácaras ocupadas por negros alforriados, resistiu ao processo de desenvolvimento do bairro no decorrer do Século 20.
Essa história inicia com a chegada de Naura da Silva e Alípio dos Santos na década de 1940, vindos do interior gaúcho em busca de melhores condições de vida na Capital, e torna-se uma referência à luta quilombola urbana, encontrando sua maior expressão na vida de Lorivaldino Silva.
O Lorico, como era conhecido, foi um dos 12 netos de Naura e Alípio, filho de Anna Maria. Falecido em maio deste ano, com 60 anos de idade, foi presidente da Associação do Quilombo da Família Silva, estando por muitos anos na luta pelo território da sua família e, consequentemente, pela causa quilombola.
Lorico e a luta por um lugar de pertença
A desterritorialização é uma constante para famílias negras e pobres no desenvolvimento das grandes cidades brasileiras. É comum, ainda hoje, que centenas de famílias sejam despejadas dos locais onde habitam há décadas para regiões afastadas, por conta de obras ou gentrificação. “A história dessa família é na verdade a história de todo negro e negra do Brasil, que se desloca, que é desterritorializado do contexto rural e vem para o urbano, ou está no urbano numa área que antes era considerada rural, de periferia, a cidade vai crescendo e o pessoal vai sendo desterritorializado”, afirma o advogado e integrante da Frente Quilombola RS Onir Araújo.
O Quilombo Silva resistiu e resiste em um dos bairros mais valorizados de Porto Alegre, o Três Figueiras. Tornou-se o primeiro quilombo urbano titulado do Brasil, hoje com mais de 20 casas abrigando quatro gerações da família, em meio a condomínios de luxo, avenidas e shoppings. Muito da força necessária para esta resistência veio de Lorico, como testemunha Onir. Ele recorda carinhosamente e com emoção do seu amigo, a quem conheceu por volta de 1998, através do processo de autoidentificação do terreno via Conselho de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra do Rio Grande do Sul (Codene).
“O Lorico foi fundamental, foi um cimento muito importante, primeiro para manter a unidade ali do núcleo familiar, segundo para ampliar esse tipo de cosmovisão de reação política, irradiar ele para outras famílias e outros territórios. Ele criou uma referência que tinha uma sabedoria e uma estratégia, nós somos de certa forma coletivamente um legado dessa experiência dele, e esperamos que nós estejamos à altura disso que ele semeou”, afirma.
A irmã mais velha da família, Lígia Silva, atual presidenta do quilombo, reitera a importância de Lorico na luta e na família. “Estava sempre à frente do movimento, fazia uma viagem aqui, uma palestra ali, o Lorico estava sempre pronto para ir, se dedicava de corpo e alma pelo território. Ele jamais queria perder essas terras, ele nasceu aqui, tinha muito amor por esse pedaço de chão que nossos avós deixaram pra nós”, conta.
Da semente ao fruto
Onir recorda que Lorico trazia consigo a tradição de relação com a terra. “Tinha uma mão de ouro, um cuidado, ele de certa forma continuou a tradição dos chás, das beberagens, que são coisas feitas com ervas, com plantas. Na parte do quilombo onde ele morava é uma lindeza, tudo muito bem ajeitado e com todo o carinho, tu vê o cuidado com as plantas, e ele praticamente era a referência para esses cuidados envolvendo jardinagem ali no entorno das mansões”, afirma.
No entender de Lígia, seu irmão plantou sementes que vão germinar para sempre. “Até hoje nós temos as árvores que o Lorico plantou, ele fazia desde os tempos dos meus avós o alcanfor, que bota álcool, arruda, guiné, manjericão, várias outras plantas, ele fazia essa infusão e dava pra nós quando tinha uma dor, pra passar. É uma coisa de manter a tradição dos antigos, o Lorico dava também chás de sete ervas pra quebrar inveja, tudo ele fazia. Cada pessoa que vinha aqui o Lorico dava um vasinho de sete ervas”, revela.
Esse legado do cuidado com as plantas segue vivo no quilombo, frutificando nas novas gerações. Lígia conta que a filha e o genro de Lorico seguem cuidando da horta que ele mantinha. “Tão replantando as plantinhas que o Lorico gostava de plantar, alface, cenoura, guaco. Ela disse que não quer que a horta do pai dela termine com o tempo.”
A semente da luta quilombola também segue viva. “Essa luta não pode morrer porque se nós não lutarmos por dias melhores, as pessoas que não querem nós aqui vão criando mais força. Se a gente tá atento, eles não conseguem. A gente não pode parar um dia sequer”, afirma Lígia, que destaca a dificuldade de seguir sem a presença física do irmão. “Está sendo muito difícil sem ele, mas se hoje o Lorico não tá mais aqui, o espírito dele tá vendo que a caminhada dele não foi em vão, que ele deixou essas terras pros filhos, irmãos e netos e pros bisnetos que tão chegando.”
Onir reafirma a força dessa relação “com a mãe-terra, com o território, dentro daquela tradição de que tu quando nasce enterra, corta o umbigo e bota na terra na porta de casa”. O advogado lembra que Lorico enfrentou a todos e todas, inclusive pessoas do próprio movimento social que não acreditavam que a vitória do quilombo seria possível. “E ele, com aquela calma, diz que quem bota a semente, aduba, planta, cresce, espera… tá aí o resultado. Politicamente ele era um semeador também, ele era um cultivador na prática, tinha essa questão do acolhimento e do cuidado, um ritmo muito ligado a essa tradicionalidade.”
“Não só no Quilombo dos Silva, mas qualquer território quilombola em contexto urbano aqui em Porto Alegre que você visitar, ele é parte do plantio feito pelo Lorico. É esse o legado que a gente tem que honrar, eu espero que a gente esteja à altura dessa tarefa sem ele, mas... essa vai ser a peleia”, compartilha. E recorda de uma composição do Nelson Sargento, que diz “o samba agoniza, mas não morre”. “O quilombo agoniza, mas não morre, e de certa forma a gente não morre mesmo, a gente continua de alguma forma naquilo que a gente plantou e cultivou. Então o Lorico só plantou coisa boa. Não merecia ir cedo, mas fazer o quê”, lamenta.
Uma vida de resistência
Lorico faleceu em maio, em casa, vítima de um infarto, após ter passado mal e sido socorrido por sua filha e genro. “Chamaram a Samu, estavam esperando, conversando no sofá, daqui um pouquinho ele deu um suspiro e perdeu a vida. Foi bem assim que aconteceu. Tudo muito de repente, porque ele tava bem, não tava doente, tava sempre em roda da filha, era muito apegado aos netos, todo o dia passava aqui na frente da minha casa, ele tava num momento muito bom da vida dele”, conta Lígia.
“Na verdade, ele nunca se recuperou plenamente de uma agressão que houve no território em 2010, praticamente um ano após a titulação, que foi em setembro de 2009”, recorda Onir de uma das tantas batidas vexatórias da Brigada Militar ao quilombo. Nesta ocasião, após os dois terem reclamado das sucessivas abordagens truculentas a um sargento do posto policial próximo do quilombo, a resposta horas depois foi outra batida, ainda mais agressiva, quando Lorico estava brincando com sua neta na praça em frente ao território.
“Como os brigadianos entravam aqui e davam pau em todo mundo, ele pegou a netinha pelo braço e entrou correndo. O brigadiano viu o Lorico correr e foi atrás, mas não viu onde ele foi, e a primeira porta aberta que ele achou foi a porta da casa da Preta, minha irmã. O Paulinho, marido da Preta, tava deitado no quarto e eles entraram, deram nele, machucaram as partes íntimas, arrastaram ele. Nós chamamos o dr. Onir. O Paulinho tava no posto policial algemado, parecia um porco quando vão matar”, conta Lígia.
A situação foi traumática. Meses depois, quando Lorico estava dando uma palestra na Unirriter, relatando o episódio, teve um AVC hemorrágico que quase o matou. “Ele ficou praticamente uns 20 dias entre a vida e a morte no hospital da PUC, e depois foi uma peleia pra gente ajudar ele a ter recuperação, fisioterapia, ficou com sequelas tanto motoras, quanto da fala. Foi uma peleia, mas ele veio se recuperando. Foi nesse período que ele deixou de ser o presidente do Quilombo dos Silva”, rememora Onir.
O militante da Frente Quilombola do RS conta que essa situação se desdobrou em uma ação cível que levou à condenação do estado do Rio Grande do Sul, confirmada em segunda instância e hoje aguardando julgamento de recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ). “Até nisso os Silva são protagonistas, talvez tenha sido a 1ª condenação coletiva de um Estado por uma ação das forças de segurança envolvendo danos morais coletivos.”
Lembranças de uma época difícil
Lígia lembra que, até sair a titulação, era frequente a visita de pessoas ao quilombo se dizendo donos do terreno. Recorda ainda dos diversos conflitos com os condomínios que foram cercando o quilombo, e das tantas situações de racismo. “Muitos não querem a gente aqui, uma vez vieram máquinas fazer os banheiros e um condomínio que invadiu uma área do quilombo, das janelas eles gritavam ‘vão levar a negrada embora’. Outros nos respeitam. Eles têm que entender que os negros já estavam aqui quando eles chegaram, e a gente não incomoda eles, vivemos nossa vida quietinha aqui.”
Mas nada se compara ao ocorrido em 2005, quando o quilombo da família Silva viveu seu episódio mais difícil, uma ação de despejo que se tornou um processo de 15 dias de resistência. “Era junho, com chuva, um frio, foram os piores 15 dias da nossa vida aqui, eu já tinha arrumado minhas trouxas e pensava que não tinha mais volta, lembra Lígia. “Nós estávamos com pessoas influentes aqui dentro, o senador Paim, o Comasseto, Carrion Jr., o Onir, a Frente Quilombola, e a coisa não andava. A gente dava graças a deus quando chegava seis horas e não podia mais ter despejo no dia”, completa.
Nesse período, conta Onir, os Silva já tinham adquirido uma respeitabilidade, muito por conta do jeito de ser do Lorico. “A comunidade angariou uma multidão de apoiadores não só aqui no estado, mas no Brasil inteiro e até internacionalmente. E foi fundamental para que inclusive se sensibilizasse e se estabelecesse uma relação de muito respeito pelo Ministério Público Federal em relação à comunidade, ele permitiu que a gente conseguisse naquele momento, com o deslocamento da competência pra Justiça Federal, trancar a reintegração de posse.”
“Foi um momento que tinha uma unidade, parece que os encantados, os orixás estavam todos ali conosco, e se conseguiu enfrentar essa demanda de uma forma que primeiro conseguiu se evitar o despejo, e a matéria na Justiça Federal com o andamento em relação aos estudos, a lauda, etc., tiveram o tempo necessário para serem concluídos. E aí foi toda a pressão depois junto ao Incra, em que o jeito do Lorico foi fundamental para que as coisas andassem, para que o laudo saísse, que se cumprissem os cronogramas, e finalmente toda a mobilização para que houvesse a titulação”, explica o militante da Frente Quilombola do RS.
Uma referência na luta quilombola urbana
Lígia lembra do momento em que saiu a titulação. “Nós ganhamos esse terreno também graças ao ex-presidente Lula. Um dia ele tava aqui, em 2009, na inauguração da Rodovia do Parque, e o Lorico e minhas irmãs foram com uma faixa pedindo a titulação do quilombo, naquele dia eu não pude ir por causa do serviço. E o Lula disse no microfone que ia dar o título aos Silva porque também é um Silva. E naquela mesma noite, eles deram o título. Mas não aqueles servidores do Incra que a gente estava todo o tempo falando, que tinham prometido várias coisas.”
Onir também comenta a ocasião. Na sua memória, a fala do ex-presidente Lula havia sido em “um tom não muito agradável de ironia”. Ele aponta que a Frente Quilombola do RS foi até a inauguração com uma delegação, para pressionar as autoridades presentes. Isso porque o processo de titulação dos Silva estava na Casa Civil da Presidência da República e também havia muita demanda acumulada dos territórios quilombolas em geral. “Chegando lá, tinha todo um aparato, ficamos cercados com a segurança apontando armas para nós”, afirma. Apesar da situação, nesta mesma noite veio a ligação de representante da Casa Civil avisando que seria publicado o decreto de desapropriação e a titulação.
Foram muitas as comunidades quilombolas pelo país que tiveram como referência esse processo de luta. “O Quilombo da Pedra do Sal, no Rio, teve muita referência na experiência do quilombo da família Silva”, exemplifica o advogado. “Outra comunidade quilombola que teve muita referência nessa luta aqui em Porto Alegre, por exemplo, é o Quilombo Vidal Martins, em Florianópolis, perto da Barra da Lagoa. Então ele foi uma referência porque o pessoal tinha, e até hoje de certa forma tem, uma visão muito folclórica, tanto de quilombo como de territorialidade indígena”, avalia.
Os Silva trouxeram o debate do aquilombamento para o contexto urbano, não só esteticamente ou na disputa simbólica ideológica, eles territorializam essa discussão. “Essa é a grande ousadia dessa família, que abriu caminho pra milhões de pessoas. E aqui em Porto Alegre você vê que, se tu observar, o impacto, como é direto e próximo, nós estamos indo para 11 comunidades quilombolas já autoidentificadas. Dessas, sete têm a certificação da Fundação Cultural Palmares, as outras quatro estão encaminhando”, afirma Onir, que explica que somente os Silva chegaram à titulação de fato.
“Eu digo e o Lorico sempre dizia, lutem sempre, não se entreguem, porque uma luta aqui hoje é uma luz que se acende lá na frente”, sugere Lígia, destacando a forte relação entre os quilombos, que tiveram a luta dos Silva como exemplo. “Quando a gente tinha uma atividade, um conflito, com o Ministério Público, os Alpes, os Fidelix, os Guaranha estiveram sempre presentes, o Morro Alto também. A nossa caminhada abriu porta para vários quilombos que já estão aí. Agora tem os Lemos, tem os Flores, que tão lutando pela terra deles.”
Onir ressalta que aprendeu muito com todo esse processo e com suas lideranças. “Eu tô praticamente convencido de que a nossa luta, ela não é apenas antirracista, nossa luta é abolicionista. Olhando essa realidade do século XXI, cada território na verdade é a expressão de uma luta abolicionista e de uma luta pela construção da liberdade e da humanidade que o sistema colonial nos tirou”, reflete.
Em meio aos desafios da luta quilombola, que em Porto Alegre segue marcada por conflitos e tentativas de desapropriações, como nos casos dos quilombos dos Machado e dos Lemos, em plena pandemia, a luta continua. “Mas a ameaça é permanente, não tem tranquilidade”, expõe Onir.
“Nosso papel, que já estamos aí ‘passando o canudo’ é chegar, sentar e fazer como o Lorico fazia com a gente. É falar, ‘olha, às vezes as coisas não têm que ser por aqui, quem sabe é por ali, quem sabe plantar essa muda aí não vai dar, porque a terra não ajuda, quem sabe vocês plantam em outro lugar’. Isso pra mim era uma característica muito marcante do Lorico. Estamos com uma responsabilidade que não é pouca”, finaliza.
Documentário
A história de resistência do quilombo da Família Silva está documentada em um filme produzido pelo Coletivo Catarse, Inverso Coletivo e Ponto de Cultura Teia Viva, lançado em 2012. Assista o documentário a seguir:
:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::
SEJA UM AMIGO DO BRASIL DE FATO RS
Você já percebeu que o Brasil de Fato RS disponibiliza todas as notícias gratuitamente? Não cobramos nenhum tipo de assinatura de nossos leitores, pois compreendemos que a democratização dos meios de comunicação é fundamental para uma sociedade mais justa.
Precisamos do seu apoio para seguir adiante com o debate de ideias, clique aqui e contribua.
Edição: Katia Marko