Nada melhor do que mostrar a história de uma personagem que vive a realidade e as lutas do povo do campo no Dia do Agricultor e da Agricultora: a camponesa agroecóloga Rosiéle Cristiane Ludke, de Paraíso do Sul (RS). Um dedo de prosa de fundamento, especial para os leitores do Brasil de Fato.
"Por mais de 15 anos convivemos com o cultivo do tabaco e sofremos com todos os problemas que essa cultura acarreta, então veio o aprendizado e a descoberta da Agroecologia e isso abriu possibilidades completamente novas" conta, enviando suas respostas desde a unidade produtiva Recanto Fonte da Vida, onde a família atua desde 2016. "Esse despertar começa lá no início da militância, na Pastoral da Juventude Rural (PJR) e tem continuidade quando me aproximei do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) em busca do programa de habitação, me apaixonei pela proposta do movimento e aceitei o desafio da diversificação da produção, depois acabei atuando também como técnica para apoiar a outros camponeses e camponesas que queriam se libertar desse tipo de produção e passar a se dedicar ao cultivo de alimentos."
O cotidiano de Rosiele divide-se entre a atenção à família – além do companheiro, Valdemir Vezaro, tem dois filhos e uma neta –, as atividades de produção de alimentos saudáveis, a participação na coordenação do grupo Flor(&)Ser Agroecológico, as feiras populares onde faz comercialização e partilha da produção. Sem jamais deixar de lado a bandeira do MPA e as ações de militância onde atua junto ao coletivo de gênero, também desenvolve trabalho com ervas medicinais e volta e meia é chamada para colocar seu violão e sua voz a serviço da animação das lutas presenciais e virtuais.
"Nossa produção primeiro se destina ao auto consumo, a garantir a alimentação posta na mesa do campesinato, para na sequência procurar os mercados e construir os laços entre o campo e a cidade, a aliança camponesa e operária que propomos através do Plano Camponês", explica, citando o documento norteador do MPA. “Ainda é preciso destacar o aspecto da preservação ambiental que o campesinato executa, por exemplo aqui no Recanto Fonte da Vida, destinamos cerca de 6 hectares para a habitação e produção, deixando 19 hectares de mata preservada e agroflorestal", complementa, afirmando que todo camponês e camponesa são por princípio guardiões e guardiãs da natureza.
Um olhar atento às necessidades da terra
"Nossas práticas agroecológicas são desenvolvidas a partir de um laboratório que a natureza nos proporciona", afirma Rosiele, fazendo referência ao processo de reaprendizado que executa como camponesa. “Produzimos, em roda da casa hortaliças, plantas alimentícias não convencionais, ervas medicinais, milho, feijão, batata doce, mandioca, inhame, cará, açafrão", sempre privilegiando a utilização de mudas e sementes crioulas que já são mais de 100 espécies preservadas, multiplicadas e compartilhadas.
"Valorizamos muito a autonomia camponesa, temos todo um olhar diferenciado sobre a terra, estamos sempre aprendendo a lidar com a terra, fazemos um diagnóstico sobre o que cada espaço é mais apto a produzir”, explica ao citar ainda a utilização de bioinsumos produzidos na própria unidade produtiva ou adquiridos de empresas certificadas para produção orgânica.
"Na nossa rotina cada dia fazemos uma coisa diferente, temos os dias de plantio e cultivo, temos dias de produção, temos dias em que participamos das feiras – em Paraíso do Sul e em Santa Maria –, assim como buscamos a relação com outras famílias camponesas que participam conosco do grupo Flor(&)Ser ou que nos são próximas através das ações do movimento", assinala.
Rosiele conta ainda que nos últimos anos as famílias produtoras tem se organizado para buscar a certificação de produção orgânica, viabilizada através do sistema OCS (Organização de Controle Social), onde uma família auxilia no processo educativo e fiscaliza a outra: “Já somos em quatro unidades produtivas certificadas e com uma quinta em processo de certificação, o que vem viabilizando ações como por exemplo a organização de uma feira totalmente agroecológica em Paraíso do Sul”.
Despertar da consciência
Relembrando as dificuldades enfrentadas, o endividamento da família paterna nas décadas de 80 e 90, Rosiele contrasta com os bons anos onde elementos como o despertar da consciência de classe, a luta social e a construção de políticas públicas através de governos populares foram transformando a realidade do campesinato: Pronaf, Ater, Minha Casa Minha Vida, Luz Para Todos, Plano Safra da Agricultura Familiar, PAA, entre outros que ajudaram a consolidar o surgimento de uma nova geração camponesa.
“Hoje, infelizmente vivemos uma situação que a fome está novamente batendo à porta do povo brasileiro e isso poderia ser bem diferente se o governo estivesse fomentando a produção camponesa de alimento saudável, hoje nos sentimos completamente abandonados, temos certeza que se não estivéssemos abandonados essa questão da volta da fome seria muito diferente", lamenta.
Para Rosiele, a realidade social do país só não está pior por conta da enorme capacidade de resiliência dos camponeses e camponesas. “A gente não sente tanto o impacto porque produzimos para nossa própria alimentação e o excedente conseguimos compartilhar, mas sabemos que essa não é a realidade de muitos camponeses e camponesas que estão inseridos nas cadeias produtivas que são controladas pelas multinacionais”, aponta.
“Nós temos uma liberdade, uma autonomia, uma soberania que nem temos como medir, mas que infelizmente não é a realidade da maior parte dos agricultores”, explica, ressaltando a compreensão de que no momento “parece ser um privilégio poder produzir tanto alimento, tanta abundância, de poder escolher o alimento que vamos colocar na nossa mesa enquanto tanta gente está tendo dificuldade de manter uma alimentação digna à disposição de sua família”.
Compartilhar abundância
Quanto ao momento atual e o protagonismo do campesinato junto às ações de solidariedade e resistência, Rosiele aponta que todos os esforços tem sido empreendidos para ajudar aos que mais precisam. Tanto para com o povo urbano quanto para com companheiros e companheiras camponeses que precisam de apoio, assim como para com diversos projetos sociais que lhes são próximos.
“Sempre procuramos compartilhar um pouco do que produzimos, não é caridade, é solidariedade, é dividir o pouco que temos para garantir que nossos companheiros e companheiras que estão em situação mais delicada possam também resistir e seguir em frente”, afirma. Mais uma vez o exemplo da mesa que se estende, do camponês ao operário, ao desempregado, ao sem-teto, enfim a todo irmão ou irmã necessitado, é evocado pela camponesa agroecóloga.
E no final da prosa, é possível falar de esperança? “Sim, precisamos ter esperança, mas assim como ensinou Paulo Freire, tem que ser esperança do verbo esperançar. Nosso papel enquanto camponeses e camponesas é continuar resistindo, esse precisa ser um momento de muita resistência, não é só uma tarefa, é uma missão, a missão de produzir alimento saudável, de qualidade, oportunizar um preço justo para que todos e todas possam acessar esses alimentos. Temos trabalhado muito para aumentar a nossa produção e levar cada vez mais alimentos para a cidade, assim fomentando que essa resistência se amplifique e mudanças possam ir sendo construídas para que ali na frente se possa recuperar esse tanto de coisas que foram destruídas no último período”.
Essa é a mensagem que deixa a camponesa Rosiéle Cristiane Ludke, tecnóloga em Agropecuária, mestre em Agroecologia, mulher, mãe, avó, militante do MPA, companheira e lutadora, no dia do Agricultor e Agricultora. “Resistir e esperençar, esses são os nossos verbos”.
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Edição: Marcelo Ferreira