A geografia privilegiada que embeleza Porto Alegre é a mesma que a torna sensível às mudanças causadas pela mão do homem. A cidade está situada num sistema ambiental complexo. Formada por morros e cercada por águas de um lado e terrenos arenosos de outro, a Capital funciona como uma ilha.
E morar em ilhas, ou em terrenos que se assemelham a uma ilha, é mais complexo devido ao esgotamento mais rápido dos recursos naturais, conforme ensina Rualdo Menegat, coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre, obra de referência lançada em 1998. Na capital gaúcha, é a água do Guaíba que garante a vida na cidade. Preservar a Orla, mais do que apreciar a paisagem e curtir o pôr do sol, é uma questão de sobrevivência.
Menegat traz como exemplo Florianópolis, cidade conhecida de muitos porto-alegrenses. A Ilha da Magia tem passado por problemas ambientais, como o rompimento da barragem de tratamento de esgoto em 2020, despejando efluentes na Lagoa da Conceição, o manancial de água potável para a população da ilha.
“Se não cuidarmos as sobrecargas dos sistemas, eles colapsam. E a equação seguinte é tal que levará esta população a não ter água potável. Porto Alegre também corre esse seríssimo risco, porque toda a vida do município depende da água do Guaíba”, afirma.
Para o geólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a preocupação com a “carga” que o ecossistema da cidade pode suportar, em especial o Guaíba, deveria balizar o planejamento urbano. Contudo, avalia que as transformações recentes e em andamento na cidade vão no sentido oposto.
“O que nós vimos nos últimos anos é o contrário, é uma irracionalidade total, como se não tivesse limite, como se a gente pudesse fazer tudo que quiser. Não dá, porque vivemos num ecossistema que tem claros limites de sobrecarga, cuja ruptura já fazemos notar. Não é uma questão para o futuro, para os nossos netos, não, nós já fazemos notar. A água de Porto Alegre já foi a melhor das capitais, tínhamos orgulho disso, porque a saúde se mede pela qualidade da água. E, nos últimos anos, ela decresce cada vez mais a ponto de os órgãos de abastecimento estarem obrigando os porto-alegrenses a tomar água fétida”, critica.
O autor do Atlas Ambiental de Porto Alegre não tem dúvida: se a Orla do Guaíba for ocupada de forma irracional, haverá um efeito dominó com graves consequências. “Devemos, em primeiríssimo lugar, cuidar da Orla, porque cuidando dela, estaremos cuidando da água.”
Cidade sustentável
Ao analisar a revisão do Plano Diretor, Menegat acredita que o processo deve pensar a cidade para os próximos cinco anos e também para os próximos 50 ou 60 anos. Argumenta que a revisão deveria levar em conta os estudos científicos que preveem a subida do nível do mar em 60 centímetros até o final do século, elevação suficiente para mudar drasticamente o cenário de uma cidade situada ao nível do mar, como é o caso da capital gaúcha.
“O Guaíba está no nível do mar, então ele vai subir 60 centímetros. Imagina a complexidade de fluxos, de águas pluviais, esgotos, tudo da cidade de Porto Alegre, que já na situação atual, sofregamente consegue esgotar os seus líquidos. Isso mostra a delicadeza do sistema porto-alegrense. Ele não é um sistema robusto que podemos colocar aqui cortinas e cortinas de arranha-céus. Essas bravatas que depois quem paga o preço é o conjunto da cidade, não apenas os vulneráveis. Essa questão das ocorrências climáticas vindouras, não é uma questão de ‘futorologia’ para daqui a 60 anos, tá aí, deve ser prevista agora”, afirma.
“Quando se trata de grandes projetos que vão ter impacto na cidade durante 50, 100 anos, não se pode olhar pra isso pelo impacto breve da geração de empregos a curto prazo”
Com tal perspectiva, é um risco permitir o adensamento da ocupação em zonas onde a provável subida das águas irá comprometer o esgotamento. Caso contrário, edifícios altos e outras construções poderão ficar inviabilizados no futuro e causar enorme deterioração urbana. Nesse sentido, Menegat considera que impera na cidade a lógica do “extrativismo sem limites” operado pelo mercado imobiliário.
“Podem gerar uma cidade agora, mas daqui a 60 anos, isso que eles construíram pode estar inviabilizado pelas contingências que se colocarem em relação às mudanças do sistema costeiro por conta do aquecimento global. Essas considerações são imperativas no momento de discussão do Plano Diretor.”
A visão de presente e de futuro faz Menegat questionar o conceito de sustentabilidade que tem sido utilizado pela Prefeitura de Porto Alegre. Para o professor da UFRGS, a sustentabilidade está ligada à capacidade da cidade ser sustentada pelos recursos que produz, aliada à condição de lidar com os resíduos que igualmente produz. Um conceito no qual a Capital atualmente não se enquadra, pois envia grande parte do seu lixo para o aterro sanitário de Minas do Leão, município localizado a cerca de 90 km de distância.
Para ele, as cidades deveriam ser sustentáveis na gestão do próprio lixo, promover o aumento da cultura da reciclagem e da compostagem, utilizando o húmus para o cultivo do solo. O reaproveitamento de resíduos deveria fazer parte de outra estratégia que ele considera central para se tornar mais sustentável: a produção de alimentos no cinturão verde ao redor da cidade.
“As cidades do futuro são aquelas que planejam os seus cinturões de produção de alimentos. Não importar alimentos de longe é hoje um requisito essencial para a garantia alimentar, para termos vida saudável. E Porto Alegre parece que está tendo uma vocação ao contrário, enquanto poderíamos ter compostagem, produzir nosso húmus, ter o cinturão verde, produzir alimentos saudáveis na nossa mesa. O contrário leva a quê? Ao adensamento das filas no sistema de saúde.”
Presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS), Rafael Passos acredita haver uma visão problemática sobre o desenvolvimento sustentável quando, em nome da geração de empregos a curto prazo, se aprova projetos de grande impacto urbano e ambiental a longo prazo. “Primeiro, ou tem um entendimento muito curto do conceito de sustentabilidade, ou não consegue compreender que, quando se trata de grandes projetos que vão ter impacto na cidade durante 50, 60, 100 anos, não se pode olhar pra isso pelo impacto breve, passageiro, da geração de empregos a curto prazo.”
Segundo o arquiteto, a maioria dos membros do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA), órgão responsável por analisar empreendimentos enquadrados como projetos especiais, são favoráveis aos grandes projetos. Por outro lado, entre os conselheiros que costumam questionar os projetos avaliados, ele pondera ser possível perceber divergências, o que demonstra não haver um simples interesse em negar os projetos que passam pelo conselho. O IAB-RS é uma das entidades representadas no CMDUA, e Passos destaca ser comum outros membros do órgão acusarem o instituto de ser a “vanguarda do atraso” por divergir das posições pró-grandes projetos.
No meio desse embate há ainda a posição da Prefeitura, que Passos afirma ser sempre a favor dos grandes empreendimentos. “O que é lamentável, nesse contexto, porque o conflito é inerente à questão urbana, a cidade é um conflito entre interesses distintos, que às vezes se contrapõem e às vezes se sobrepõem, mas é lamentável o claro lado que tem o poder público, que deveria ter o papel de mediar conflitos. Ele toma posição num conflito e toma sempre a mesma posição, alegando que, acima de tudo, é a geração de empregos.”
À frente da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, Germano Bremm diz buscar o equilíbrio entre a cidade mais compacta e o meio ambiente. O secretário avalia que Porto Alegre tem a “grande oportunidade” de encontrar esse equilíbrio e recorda que o nome da sua pasta une meio ambiente, urbanismo e sustentabilidade, com a proposta de levar o tema da sustentabilidade para todos os projetos da Prefeitura.
“Ao ter essas estruturas unificadas, a gente começa a ter uma política de preservação mais ativa no meio ambiente, no sentido de atuar por meio dos instrumentos urbanísticos de construção da cidade, a política de preservação e proteção ambiental, e não uma política, talvez, muito reativa e que por vezes dá conflito, porque a gente acaba no licenciamento apontando problema naquela área de proteção ou de preservação permanente”, explica Bremm, destacando o embate que surge quando os problemas ambientais aparecem no processo de licenciamento já em curso e com expectativa de aprovação.
“Quanto mais a gente der transparência dos nossos processos e das nossas áreas que merecem ser protegidas e ‘gravar’ isso nas informações urbanísticas, mais tranquilo vai ser depois no licenciamento dos empreendimentos e a gente consegue superar os problemas. Por isso acho que tem grandes ganhos com essa fusão, porque trabalha em sintonia. Ao invés de ser reativo, a gente consegue ter uma política mais ativa de proteção”, pondera o secretário, ao defender a abrangência temática da sua pasta.
Área rural em disputa
A advogada Michele Rihan circula pelo extremo-sul de Porto Alegre há cerca de 20 anos. Nascida na cidade, se criou no bairro Bela Vista até se mudar para a Tristeza, começar a conhecer a zona sul e se encantar com a região. A atração foi levando-a ainda mais ao sul da Capital e a fez fixar residência no bairro Belém Novo.
O passar dos anos a fez acompanhar de perto a transformação do extremo-sul da cidade nas últimas duas décadas, período no qual observou o crescimento da ocupação da região, ao mesmo tempo em que se revelava a ausência do poder público em regular essa ocupação. “A gente viu loteamentos sempre grandes surgirem, mas também loteamentos irregulares, então essa ocupação que vem sendo feita, que é ordenada e desordenada ao mesmo tempo, está causando um impacto bem significativo para quem mora lá.”
O resultado pode ser percebido no aumento do trânsito, pois são poucas as vias de acesso à zona sul. As avenidas ficam congestionadas independente do horário, seja no sentido bairro – centro ou no inverso. Outro impacto para o qual ela chama a atenção é no saneamento básico. O esgoto é um problema, com a falta de redes e de tratamento.
“A gente visualiza o extravasamento do esgoto que vai parar no Guaíba sem qualquer tipo de tratamento. Esse recorte que tenho presente dos últimos 20 anos, com relação à expansão urbana de Porto Alegre, é bem assustador porque a gente não vê estrutura para o que está sendo feito e não vê nenhum tipo de planejamento com relação à preservação ambiental, e estamos falando das últimas áreas verdes de Porto Alegre”, comenta Michele.
“Nós fomos informados de uma lei que tinha sido aprovada alterando o regime urbanístico da Fazenda pra ajustar às necessidades do empreendedor”
No final de 2015, a advogada conta que a comunidade foi surpreendida com a proposta de alteração do regime urbanístico da área chamada Fazenda do Arado Velho, antiga propriedade do jornalista Breno Caldas. A notícia repentina causou impacto. A mudança da lei estava tramitando na Prefeitura e ninguém tinha acesso aos documentos. “Só nos foi informado que estava tramitando um projeto para aquela área”, recorda.
O projeto previa urbanizar 426 hectares às margens do Guaíba, uma área equivalente a 11 vezes o tamanho do Parque Farroupilha. O local inclusive abriga um sítio arqueológico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Michele conta que o grupo procurou então o Ministério Público Estadual (MPE) e apresentou documentos sobre a existência do sítio arqueológico, com o intuito de destacar a importância da área, caracterizada por banhados. O MPE abriu inquérito civil e obteve os estudos de impacto ambiental. Como se puxasse o fio de um novelo, o projeto Fazenda do Arado Velho começou a ser desenrolado, a começar pela alteração sob medida do Plano Diretor.
“Nós fomos informados de uma lei que tinha sido aprovada alterando o regime urbanístico da Fazenda pra ajustar às necessidades do empreendedor. Por conta da proposição dessa lei, não foi feita nenhuma audiência pública pra informar a população sobre o que se tratava aquela mudança legislativa”, recorda a integrante do movimento Preserva Belém Novo, criado em 2015 com o objetivo de dialogar com a Prefeitura para demandar cuidados com a região, principalmente com a Orla do Guaíba.
Proposto pela Prefeitura, o Projeto de Lei nº 780/2015 alterava o regime urbanístico previsto no Plano Diretor para adequar a área ao empreendimento. Em 2017, o MPE ingressou com ação civil pública, com o argumento de que o projeto havia tramitado sem prévia consulta à população. Mesmo aprovado na Câmara, a Justiça concedeu liminar e declarou ilegal a lei que havia alterado o regime urbanístico da Fazenda do Arado.
Força política
Os empreendedores do projeto não se deram por satisfeitos. Em 2020, o prefeito da Capital era outro, mas as forças políticas favoráveis ao negócio se mantinham firmes. O apoio se materializou por meio de novo projeto de lei complementar (PLC 016/2020), apresentado pelo então vereador Wambert di Lorenzo (PTB). O projeto recuperava a proposta anterior suspensa pela Justiça. Segundo o ex-vereador, que não conseguiu a reeleição em 2020, o objetivo da proposta era sanar o vício da lei anterior, que havia sido a falta de realização de audiência pública.
A nova lei foi aprovada na Câmara no dia 17 de dezembro de 2020, dessa vez com a realização de audiência pública virtual em função da pandemia, mas acabou vetada pelo prefeito Sebastião Melo (MDB) sob a justificativa de vício de origem, pois alterações de regime urbanístico seriam prerrogativa do Poder Executivo municipal. Apesar do veto, Melo já afirmou que irá reapresentar o projeto.
Em junho deste ano, a Prefeitura e técnicos responsáveis pelo empreendimento apresentaram à população do bairro Belém Novo e ao Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA), as bases do projeto que pretende ampliar a possibilidade de ocupação na área da Fazendo do Arado. De acordo com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus), o novo projeto está em elaboração e será apresentado formalmente após cumprir as etapas de participação popular.
No começo de junho, a proposta de alteração urbanística da área da Fazenda do Arado foi apresentada ao CMDUA pelos arquitetos Rodolfo Fork, responsável técnico pelo empreendimento, e Gisele Coelho Vargas, assessora técnica da Diretoria de Planejamento Urbano da Prefeitura. Dias depois, a mesma apresentação foi repetida à comunidade de Belém Novo durante encontro da Região de Planejamento 8, que representa os bairros do extremo-sul da cidade no CMDUA. Uma audiência pública aberta à participação de toda a população estava inicialmente prevista para o dia 25 de junho, depois foi transferida para o dia 7 de julho, para 28 de julho e, finalmente, para 12 de agosto. A Prefeitura deve apresentar o projeto após a audiência pública.
O projeto Fazendo do Arado
Nos dois encontros de junho, o arquiteto responsável pelo empreendimento apresentou um vídeo elaborado em 2016 e atualizado com novas informações. A proposta é construir um bairro planejado na área de 426 hectares da antiga Fazenda do Arado e da área de preservação ambiental da Ponta do Arado, com 92 hectares transformados em unidade de preservação privada, porém com acesso público.
A empresa responsável pelo projeto diz que o sítio arqueológico indígena existente na área de preservação será mantido, embora não explique se as famílias guarani-mbya que participam da retomada no local serão contempladas na proposta.
O projeto prevê que as demais áreas da fazenda sejam subdivididas para exploração comercial e de serviços, enquanto outras quatro áreas abrigarão empreendimentos habitacionais distintos. A proposta é que a área destinada para a construção de habitações, atualmente localizada em zona rural e de preservação ambiental, tenha uma ocupação maior nas proximidades da Avenida Lami e menor à medida que se aproxima da área que será transformada em reserva natural. O resultado final será um “bairro planejado” com previsão de construção de 1.650 casas, número sujeito a alteração posterior.
A estimativa da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade é de que a população da futura Fazenda do Arado seja de 7.942 habitantes, quantidade que aumentará em 70% a população do bairro Belém Novo, hoje estimada em 10.635 pessoas.
“O empreendimento que vai acontecer aqui, vai tramitar pelos órgãos ambientais”
O projeto propõe a duplicação das avenidas Lami e Heitor Vieira, que contornam a Fazenda do Arado, nos trechos que ligariam o empreendimento à região central do bairro Belém Novo, além de nova via interna no empreendimento e outras intervenções em avenidas da região para tentar suportar o aumento do trânsito. O antigo casarão da Fazenda será transformado em hotel e centro de eventos e os demais prédios com valor histórico serão preservados e restaurados.
Como contrapartida, a empresa prevê a doação de uma área de 9,4 hectares ao Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) para a construção de uma Estação de Tratamento de Água (ETA), como forma de enfrentar o problema de falta de água na região. Outra área seria doada para a criação de uma escola de agroecologia e estudos climáticos e um terreno de 40 mil m², junto à Av. Lami, seria destinado para a instalação de indústrias e empresas de tecnologia. O vídeo do empreendedor ainda destaca que, além da reserva natural, outra área de morro seria preservada, totalizando 140 hectares que não sofrerão mudanças urbanísticas.
“O que a gente está discutindo hoje é a lei que propicia o loteamento, a gente não está discutindo este projeto específico”, justificou o arquiteto Rodolfo Fork. “O empreendimento que vai acontecer aqui, no momento da sua aprovação, vai tramitar pelos órgãos ambientais e vai ter reuniões com a comunidade pra alinhamento do que vai acontecer e apresentação.”
Nas reuniões do CMDUA e no Belém Novo, a arquiteta Gisele Coelho Vargas, técnica da Prefeitura, apresentou a proposta de mudanças no Plano Diretor somente após a explanação do arquiteto do empreendimento. Embora o debate da alteração da lei possa favorecer exatamente as pretensões do empreendimento, o discurso é de que são coisas distintas.
A representante da Prefeitura explicou que, de acordo com o atual regime urbanístico, a área da Fazenda do Arado permite a construção de 1.323 unidades habitacionais. A proposta é que a área de ocupação intensiva que existe próximo à Avenida Heitor Vieira, permitindo uma densidade de 140 habitantes por hectare, seja ampliada para a construção de 542 economias, entre unidades habitacionais e estabelecimentos comerciais.
A área de ocupação rarefeita, que hoje permite a realização de atividades de produção primária e densidade de 2 hab/ha, seria mantida, mas aumentada a ocupação até uma densidade de 42 hab/ha nas proximidades da Av. Lami, e de 28 hab/ha na parte inferior da área de ocupação rarefeita. E a antiga região da Fazenda, localizada em área de preservação natural e também de ocupação rarefeita, com densidade atual de 0,5 hab/ha, passará a permitir densidades entre 7 hab/ha e 11 hab/ha.
Os possíveis impactos do projeto
O modo como o mercado imobiliário avança em Porto Alegre, com amplo apoio político, tem revoltado Paulo Brack, professor do Departamento de Botânica, do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“A gente está descobrindo, cada vez mais, como são feitos os esquemas da Prefeitura com a Câmara de Vereadores, porque ali tem vereadores que são ‘testas de ferro’ desses grandes empreendimentos. Então temos que estar atentos, a população de Porto Alegre tem que estar atenta, porque essas modificações que estão ocorrendo vão ser de priorização do capital e comprometimento da qualidade de vida da população”, afirma Brack.
O caso da Fazendo do Arado é emblemático. O professor da UFRGS critica as seguidas tentativas de modificar o regime urbanístico para favorecer um empreendimento de 426 hectares em área de banhado, imprópria para construção.
“Esses empreendimentos, quando são realizados, eles começam a decapar tudo, tiram toda a vegetação, passam a terraplanagem, é terra arrasada total, e depois vão fazer aterros, fazer laguinhos, e ali vai ficar a classe alta com suas mansões, isoladas da população por muros enormes. É um absurdo esses condomínios fechados que estão sendo construídos em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul”, avalia.
Membro honorário do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), Brack destaca a importância de haver espaços comuns e que também permitam a circulação da fauna. Questões ambientais importantes e que, ele diz, não interessam aos empreendedores ou aos futuros moradores.
“Eles não querem saber disso, eles querem viver no apartheid não só ambiental, mas no apartheid social, uma higienização da cidade jogando a população com mais carência para os bairros longínquos sem infraestrutura. Foi o que fizeram ali no aeroporto, tiraram a Vila Nazaré, vão jogando lá pro final, onde não tem ônibus, não tem saneamento, não tem condições mínimas. Pra essa elite que está aí, a cidade pra eles é uma grande mercadoria de exploração”, afirma.
Lei sob medida?
O apoio ao longo dos anos de diferentes prefeitos e da maioria dos vereadores da Capital ao projeto Fazendo do Arado é sintomático ao revelar como grandes empreendimentos imobiliários são bem-vindos pelas forças políticas da cidade. Se a legislação impede a obra, então muda-se a lei. As particularidades geográficas, as características ambientais de Porto Alegre e os impactos causados por grandes empreendimentos ficam em segundo plano.
A mudança do regime urbanístico de um bairro no extremo-sul da cidade para beneficiar sob medida um único empreendimento, se enquadra na perspectiva mais ampla de ocupação da Orla do Guaíba pelo mercado imobiliário. A Fazendo do Arado está longe de ser caso isolado. As 19 torres do Golden Lake, ao lado do Barra Shopping, estão em obras. Ali ao lado, o Pontal, com a proposta de shopping center, hotel, centro de eventos, torre multiuso e centro de saúde, já é realidade.
Próximo ao Pontal, o Sport Club Internacional também se articula para ser favorecido e receber a permissão de construir duas torres ao lado do estádio Beira-Rio. Por ter recebido de graça o terreno público onde ergueu o estádio, clube social e o Gigantinho, o Internacional não pode, segundo a legislação em vigor, construir um empreendimento privado e obter lucro com ele. As negociações com a Prefeitura e a Câmara ocorrem há algum tempo e, tudo indica, o clube deverá obter autorização para o negócio.
No caso do projeto Fazenda do Arado, a advogada Michele Rihan e outras entidades de defesa do meio-ambiente criticam a postura da Prefeitura em tentar adequar o Plano Diretor aos interesses do empreendimento.
” Não teve nenhum estudo, por parte da Prefeitura, com relação aos impactos disso”
“Basicamente, o que estamos pedindo ao longo desse anos é que sigam os trâmites legais que a lei determina, com transparência e publicidade, com efetiva participação da população, com informações que tragam clareza às repercussões dessas alterações na cidade e isso não está acontecendo”, afirma Michele.
A advogada explica que, em 2015, antes da aprovação da primeira lei do “Projeto Arado”, havia sido aprovado também o “retorno da zona rural de Porto Alegre”. A mudança foi resultado de uma luta longa dos produtores rurais, interessados em obter com a mudança benefícios e linhas de financiamento próprias.
“Uma boa parte da Fazenda do Arado foi inserida como zona rural, e para a surpresa de quem estava acompanhando na época, surgiu essa iniciativa de lei do Executivo, que queria ajustar as regras da cidade ao interesse do empreendedor. E então lançaram o Projeto de Lei 780/2015, que basicamente colocou como válida dentro da legislação a intenção do proprietário da área, que quer urbanizar. Não teve nenhum estudo, por parte da Prefeitura, com relação aos impactos disso. Eles usaram como base o estudo de impacto ambiental do empreendedor, a intenção do empreendedor em urbanizar a fazenda, pra justificar essa alteração legislativa”, explica.
Além dos impactos ambientais, Michele e demais integrantes do movimento Preserva Belém Novo questionam outras consequências da concretização do projeto. Questões como a abertura de novas vias, o aumento do fluxo de veículos, a necessidade de maior número de linhas de transporte coletivo, redes de água e esgoto, saúde pública e iluminação. “Basicamente, o empreendedor quer colocar um novo bairro dentro da região, tamanho é o empreendimento que eles querem fazer na Fazenda do Arado.”
Michele pondera que o dano ambiental, em determinados casos, pode ser compensável e gerar punição, como multas, mas muitas vezes é irreparável. “Um banhado, aterrou está aterrado. Qual o custo de se conseguir reverter e será que é possível reverter?”
Edição: Sul 21