Ser mulher significa enfrentar, desde infância, uma guerra cruel
Esta é uma coluna que se propõe trazer ao diálogo múltiplas vozes de mulheres, numa possibilidade de cruzamento de informações, posicionamentos políticos, teoria e crítica feminista. Aqui encontram expressões questões que nos afetam, como mulheres, desde os mais diversos espaços em que nos encontramos, as comunidades, as coletivas que se multiplicam, nas mais diversas áreas. Nessas duas semanas passadas, a munição contra nós e nossas corpas foi demasiadamente pesada. Ser mulher significa enfrentar, desde infância, uma guerra cruel. Trans, negras, indígenas, lésbicas, mães, quanto mais camadas, mais vis ainda são as formas de opressão e violência.
Os índices são desnorteantes, a cada 13 minutos uma adolescente é estuprada no país. Não há lugar nas páginas policiais para tantos feminicídios. Os processos se multiplicam e seguem uma burocracia que, para além de impor uma demora triplicada pelas condições da pandemia e pelo jorro impiedoso de vítimas, está contagiada pela dinâmica do patriarcado, minimizando o impacto da violência contra mulheres.
Como parar essa sangria? Como estancar esse jorro? Não basta prender o DJ Ivis. É necessário enfrentar o problema estruturalmente. Faz parte disto, um movimento didático de prevenção, que leve à não aceitação deste tipo de comportamento. Comportamento que, é necessário frisar, nem sempre se manifesta como uma voadeira no meio da coluna da vítima. Nem sempre é possível filmá-lo. O histórico de misoginia, a construção da cultura do macho, cimenta a sociedade em todas as áreas. Portanto, atravessa todos os setores e áreas da sociedade.
Algumas dessas áreas têm seu papel no fortalecimento, ou combate à violência contra as mulheres, facilmente reconhecido. Este é o caso, em geral, dos diversos âmbitos de atuação do Estado, como setores da segurança, do judiciário, ou mesmo de representação política e tomada de decisão.
Em outras, no entanto, a participação é mais sutil. É o caso, principalmente, de áreas produtoras ou reprodutoras de conteúdos que expressam os diversos sentidos que, como sociedade, atribuímos a comportamentos, relações, posicionamentos, etc. São estes os casos da publicidade, da educação e, de forma muito especial, das Artes.
Nestes casos, é ainda mas necessário que estejamos muito atentas. No caso das artes são muitos os relatos de abusos e molestações, crimes em ambientes de trabalho.
E, nesse sentido, nos sentimos convocadas a chamar a atenção para um fato recente de nossa cidade. Na mesma semana em que nos sentimos todas implicadas política e emocionalmente com a agressão promovida pelo DJ Ivis, vemos a banalização deste tipo de atitude. Isto porque, vimos ocorrer a nomeação de um conhecido molestador da área das artes, aqui de Porto Alegre.
Há essa conduta normativa na construção machista, os espíritos nefastos se reconhecem e, em situações políticas como a atual, onde o fascismo é celebrado, esses ‘pseudo’ artistas, depois de viverem uma vida de incidir em molestações e abusos em camarins, perseguições a mulheres, assédios, recebem cargos comissionados que empoderam sua figura. E os deixam “protegidos”, como chefes de equipes de cultura, em um governo perigoso.
Acontece que os tempos são outros, enquanto as velhas correntes enferrujadas arrastam-se pelos corredores dos salões de gravata, babando de seus esqueletos ocos, aqui fora lançamos raízes de um novo tempo, que se estendem e florescem. Não há recuo, daqui, só avançamos. Não há cargo de comissão, ou piada, ou voadeira no meio da coluna, que nos cale.
* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira