Não se pode ser lascivo ou permissivo com o ovo da serpente
Nestes últimos dias, ativas e vigilantes entidades como a Forbidden Stories e a Anistia Internacional expuseram um gigantesco esquema de espionagem mundial. A empresa israelense NSO Group invadiu, ilegalmente, ao menos 50 mil contas de celulares, em uma operação financiada por governos para monitorar opositores.
Os alvos foram ativistas de direitos humanos, jornalistas, advogados e lideranças de partidos de oposição. Essa operação de espionagem foi tornada pública, pelo mundo afora, através de jornais como Washington Post, The Guardian, Le Monde e 14 outras empresas de mídia ao redor do planeta. Nenhuma delas brasileiras, as quais só passaram a divulgar o fato dias depois.
Já neste ano de 2021, alguns veículos de imprensa revelaram que Carlos Bolsonaro, vereador de extrema direita do Rio de Janeiro e filho do presidente, haveria participado de conversas com representantes da israelense NSO Group para viabilizar a aquisição do sistema de espionagem pelo Estado brasileiro. O que teria gerado insatisfações nos setores oficiais vinculados à espionagem, como o Gabinete de Segurança Institucional e a Agência Brasileira de Inteligência.
Em 2 de abril de 2019 a BBC, em uma matéria sobre a visita de Jair Bolsonaro à Israel, onde foi recebido pelo direitista Benjamin Netanyahu, informou que “segundo o governo brasileiro, a expectativa em relação à visita era de aproximar os países e firmar novas parcerias em segurança, nas áreas de tecnologia, cibersegurança e defesa”.
As demonstrações de que o núcleo principal do governo Bolsonaro quer ampliar a capacidade de controle sobre os dispositivos de espionagem, fora das normas constitucionais, são inúmeras. Como na reunião de governo de abril de 2020, tornada pública por um vídeo marcado pela expressão do Ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, de que deveriam aproveitar e “passar a boiada”, e pela fanfarronice de Abraham Weintraub, Ministro da Educação, de que “botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF". Nela Jair Bolsonaro manifestou nitidamente sua disposição de controlar livre e diretamente o dispositivo policial e militar de inteligência e espionagem, demonstrando insatisfação com os resultados dos serviços das Forças Armadas, ABIN e PF. Seu objetivo, obviamente, era e continua sendo blindar o núcleo de governo, que inclui seus filhos, de acusações de envolvimento em crimes. A anulação de investigações contra os seus, a construção de processos contra adversários e conhecimento sobre o xadrez da política estão no centro desta preocupação com “informações”.
A constante dinâmica do “Escritório do ódio”, em produzir desinformação e contrainformação e distribuí-las através de uma logística muito bem estruturada nas redes sociais, completa esse dispositivo. Através dele criam uma atmosfera de perseguição e conspiração contra Bolsonaro envolvendo a todas as dissidências, de Sergio Moro a Joice Hasselman. A modificação do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), pretendida pelo governo Bolsonaro, vai neste sentido de eliminar os controles sociais e obstáculos legais à operação dos esquemas orgânicos de distribuição de versões favoráveis ao bolsonarismo.
As reações havidas até agora, tais como o inquérito do STF contra as fake news, são importantes, contudo podem não ser suficientes. Está em curso um processo contínuo de desconstituição de prerrogativas fundamentais de um sistema político não autoritário, tais como a inviolabilidade das comunicações dos cidadãos, advogados, movimentos sociais e lideranças políticas. Um processo de desdemocratização progressiva que gera a existência de uma situação autoritária no país, antessala da ditadura.
Somados às terríveis revelações da CPI da Pandemia, demonstrando a evitabilidade da grande maioria de mortes havidas no país, geradas por uma política genocida e por corrupção na gestão da saúde pública, os ataques de Bolsonaro às bases da democracia constitucional são óbvios e contundentes crimes de responsabilidade por ele cometidos.
O fato de a maioria da sociedade se preparar para derrotá-lo nas eleições de 2022, e com isso impedi-lo de completar seu projeto autoritário de caráter miliciano, não ilide a imposição política e ética de se efetivar o processo de impeachment previsto na Constituição Federal. Não se pode ser lascivo ou permissivo com o ovo da serpente. O neofascismo, o autoritarismo associado ao neoliberalismo, são repugnantes no campo das ideias e uma tragédia quando armados e no poder.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira