Rio Grande do Sul

Coluna

A cilada da tecnologia para a Justiça do Trabalho

Imagem de perfil do Colunistaesd
"A pandemia gerou a falsa necessidade de realização virtual de atos antes praticados na presença de servidores, das alunas e alunos assistentes, das partes e das testemunhas"
"A pandemia gerou a falsa necessidade de realização virtual de atos antes praticados na presença de servidores, das alunas e alunos assistentes, das partes e das testemunhas" - Foto: TJSP
É indispensável que as audiências virtuais sejam vistas a partir da excepcionalidade da pandemia

Hoje usarei esse espaço para falar de outra questão, que embora aparentemente desconectada, tem íntima relação com a inércia na alteração do quadro de desamparo e desespero em que se encontra o povo brasileiro.

A Justiça tem sido o caminho, o único por vezes, para todas as pessoas que não detêm poder econômico, que não podem exercer seus direitos, porque estão em uma relação hierarquizada, assimétrica, tal como são as relações de trabalho. A pandemia gerou a falsa necessidade de realização virtual de atos antes praticados na presença de servidores, das alunas e alunos assistentes, das partes e das testemunhas. Nos negamos a aprender com a realidade ímpar do adoecimento e da morte por uma doença desconhecida, que no mais das vezes mata por asfixia. Negamos o pedido de socorro da natureza que, como diz Ailton Krenak, está implorando às suas filhas e filhos que parem, compreendam a destruição ambiental que estão promovendo e aprendam com essa experiência traumática.

Em vez disso, seguimos como se nada estivesse fora do lugar. E dobramos a aposta na informatização do Poder Judiciário, havendo já quem publique acórdão sob a forma de "visual law", como registra a nota publicada ontem pela Associação Americana de Juristas. Uma forma de eliminar as discussões e as peculiaridades do caso concreto ou, pelo menos, deixá-las mais distantes de quem recebe o resultado do seu processo.

E, desse modo, homogeneizar as decisões.

Não é só isso. A nota chama a atenção também para o uso da tecnologia na contramão da realização dos direitos. O último ato nesse sentido foi o estímulo à gravação das sessões de audiência, com a dispensa, em tal caso, do registro em ata. Algo que a princípio pode parecer vantajoso, mas que precisa ser alvo de uma reflexão mais profunda. A própria realização de audiências virtuais em uma realidade social na qual um terço da população não tem acesso à internet merece nossa reflexão.

O processo do trabalho só existe em razão do reconhecimento da necessidade de que as partes tenham contato com a juíza ou juiz que, assumindo a função de representar o Estado, atua para fazer valer a ordem jurídica, de modo mais simples e direto do que aquele previsto pelo formalismo civil. E isso passa pelo ritual da audiência, em que olhares se cruzam, pessoas sentam-se frente a frente para apresentar suas narrativas, há embate, mas há também entendimento. E, sobretudo, há escuta. Muito do não dito é fundamental para que se possa falar em realização da justiça, que é bem mais do que o texto escrito da decisão ou - pior ainda - o quadro esquemático do "legal design".

Nesse cenário, é indispensável que as audiências virtuais sejam vistas a partir da excepcionalidade da pandemia, resposta a esse medo que temos de olhar de frente para as urgentes mudanças que se fazem necessárias; essa necessidade de "manter tudo funcionando, enquanto choramos 540 mil vidas perdidas em menos de dois anos, em razão da COVID 19". E que precisa ser compreendida como uma medida paliativa, transitória, "compreensível, diante da urgência dos créditos alimentares, embora seja de pontuar que essa mesma circunstância - o fato de que aquelas que buscam a Justiça do Trabalho são, em sua maioria, pessoas desempregadas que estão enfrentando graves privações - não foi suficiente para impedir que se suprimisse os juros das ações trabalhistas ou que se desse maior prestígio às tutelas de urgência".

Não é apenas todo o simbolismo e a importância da presença, com seus cheiros, toques e olhares, que fica prejudicada pela realização de audiências virtuais gravadas. Há uma invasão do espaço privado, a captura de imagens por vezes não desejadas, uma tensão que se estabelece a partir do receio de que o áudio aberto permita a eternização de frases ou cenas privadas, que não deviam estar ali. As audiências são acessadas no espaço doméstico, no espaço de trabalho, no ambiente possível. E distanciam quem participa do ato.

Se servem nesse momento atípico, não podem simplesmente virar uma alternativa à presença, pois a oralidade depende disso, assim como é no encontro que firmamos laços de afeto, que percebemos gestos que por vezes são pedidos de socorro e que em tantas ocasiões dizem mais do que mil palavras. Alertar de que as imagens serão eternizadas em mídias que servirão como único meio para recuperar o que foi dito e o que foi calado durante uma audiência judicial não é suficiente. Afinal, como ocorre em tantos momentos da vida pública, essa não é uma escolha real. O que faremos se apenas uma das testemunhas disser que não concorda com a eternização de sua imagem, de sua voz, da sala de sua casa?

Existem outras implicações: para além do lixo eletrônico que produziremos, a função de quem secretaria audiências ficará obsoleta?

Esse avanço sobre a privacidade alheia e essa aposta na produção de mídias, que é surpreendentemente útil em tempos de reforma administrativa, é sintoma de um tempo presente em que estamos eliminando o direito constitucional à preservação de nossa intimidade e tem consequências de várias ordens, inclusive para as relações familiares. Tem consequências sobretudo para quem, em nossa sociedade, historicamente precisou dividir o tempo entre trabalho e convívio, como é o caso das mulheres servidoras, advogadas, trabalhadoras, responsáveis pelas inúmeras tarefas de cuidado. Um dos efeitos está na perda do dia de descanso semanal, algo já experimentado pelas trabalhadoras e trabalhadores atingidos por alterações que fazem da expressão "preferencialmente aos domingos", contida no texto da Constituição, o equivalente à folga em apenas um domingo por mês. A subversão da linguagem ganha novos contornos em tempo de pandemia, nos quais a informatização de atividades tem gerado, como uma de suas consequências, a perda completa do direito à desconexão.

A dispensa da obrigatoriedade de ata em audiências virtuais gravadas traz, ainda, a oportunidade de discutirmos com seriedade a importância do registro escrito, garantido expressamente pela CLT, e da viabilização do acesso à prova, por parte de quem julga. Afinal, apenas em Porto Alegre temos 30 Varas do Trabalho e, como refere a nota antes mencionada, se em cada uma dessas unidades houver instruções de 20 processos na semana teremos 600 mídias, cada uma com 2 horas ou mais de gravação. Ou seja, cerca de 1.200 horas de mídia armazenadas no espaço virtual do PJe, em apenas uma semana, em apenas uma cidade.

Elas serão acessadas? Serão examinadas com o cuidado necessário para que não haja negligência na avaliação da prova de demandas que versam direitos de natureza alimentar, como é o caso do processo do trabalho? Ou estamos apostando na inviabilização cada vez maior do acesso à prova, na esquematização das decisões judiciais até o ponto em que a existência mesma do Poder Judiciário perca sentido?

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira