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Se vem de lá e parece bom, desconfie!

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Niara, a mascote da Campanha Tributar os Super-Ricos explica porque deve-se tributar lucros e dividendos distribuídos pelas empresas aos seus sócios e acionistas - Tirinha: Aroeira
Neste momento, é importante reafirmar as propostas defendidas pela campanha TRIBUTAR OS SUPER-RICOS

O governo apresentou, recentemente, a segunda etapa da sua proposta de reforma tributária e, surpreendentemente, colocou sobre a mesa um problema que vem sendo evitado há muito tempo, mas que já está se tornando insustentável. Não há mais como justificar a isenção de Imposto de Renda para os lucros e dividendos distribuídos. Esclarecendo: desde 1996, os lucros e dividendos distribuídos pelas empresas aos seus sócios e acionistas não pagam Imposto de Renda, por força da Lei 9.249, de 1995, e isso só acontece no Brasil e na Estônia.

Com essa isenção e com a criação da esdrúxula figura dos juros sobre o capital próprio, que permite às empresas deduzirem, como despesa financeira, parte da remuneração do capital dos sócios, os mais ricos passaram a pagar muito menos Imposto de Renda do que os mais pobres, a ponto de termos, como afirmou o secretário especial da Receita Federal, Auditor-Fiscal José Barroso Tostes Neto, cerca de 20 mil pessoas que receberam R$ 230 bilhões sem pagar nenhum centavo de Imposto de Renda.

A proposta apresentada pelo governo revoga a isenção dos lucros e dividendos distribuídos e aplica uma alíquota única de 20% sobre estes rendimentos. Propõe também revogar a possibilidade de dedução dos juros sobre o capital próprio. Esses dois pontos são realmente muito importantes e necessários. Mas como o governo parte da premissa de que não deve elevar a carga tributária, essas medidas que aumentam a arrecadação são compensadas com a redução da alíquota do Imposto de Renda das empresas, de 25% para 20%, e com a correção da tabela do Imposto de Renda Pessoas Físicas, elevando o limite de isenção dos atuais R$ 1.903,00 para R$ 2.500,00. Além disso, está propondo limitar a utilização do desconto simplificado apenas para contribuintes com rendas mensais de até R$ 3.333,00 e criar um limite de isenção para lucros e dividendos distribuídos por micro e pequenas empresas de até R$ 20.000,00 por mês.

Primeiramente, é preciso ressaltar que essa tática do governo de apresentar a sua proposta de reforma tributária em etapas dificulta qualquer análise mais detalhada que queiramos fazer, pois o desconhecimento do todo impede a identificação daquilo que realmente importa, os reais objetivos da proposta. Sabemos que nenhuma reforma tributária é neutra, pois ela sempre apontará para um modelo de Estado, uma concepção sobre o papel que se atribui às políticas públicas, uma orientação para a indução de um determinado modelo de desenvolvimento econômico e uma expectativa quanto aos efeitos redistributivos de renda e de riquezas, mas esses resultados esperados só podem ser percebidos pelo conjunto das propostas e não por uma ou outra medida, individualmente.

Entretanto, sabemos muito bem que o governo nunca escondeu o seu desejo de desconstruir o projeto de Estado de Bem-estar social, cujas bases estão definidas na Constituição federal, de 1988, e de substituí-lo por um Estado mínimo, voltado a atender, prioritariamente, os interesses de alguns setores do mercado, promovendo privatizações do patrimônio público, das estatais e, até mesmo, das políticas públicas essenciais, e isso fica muito claro em diversas iniciativas encaminhadas ao Congresso Nacional, como, por exemplo, a reforma Administrativa (PEC 32/2020). Portanto, ainda que não conheçamos o conjunto das propostas de reforma tributária do governo, na análise das suas partes, não podemos deixar de considerar esses antecedentes, que revelam as expectativas do governo em relação ao papel do Estado, à sociedade e ao próprio desenvolvimento econômico.

Em relação aos tributos, o ministro da Economia já havia, inclusive, externalizado a sua intenção de reduzir a carga tributária para no máximo 20% do PIB, embora não tivesse deixado claro quais seriam as políticas públicas que deixariam de existir. O certo é que, parafraseando o célebre Barão de Itararé, “de onde menos se espera, daí mesmo é que não sai nada”. Portanto, não há como se esperar que no conjunto das propostas de reforma tributária defendida pelo governo esteja embutida a preocupação com a ampliação de recursos para as políticas públicas, com a redução das desigualdades sociais, ou com o necessário fortalecimento do Estado de Bem-estar social. Nem mesmo a preocupação com a gravidade dos problemas decorrentes da pandemia consta em suas motivações.      

Um dos pontos que precisa ser considerado, desde logo, diz respeito à manutenção do mesmo nível de participação do Imposto de Renda na arrecadação total. Já está comprovado que um dos principais fatores que tornam o nosso sistema tributário injusto e regressivo é que a maior parte da arrecadação decorre de tributos que incidem sobre consumo, que os tributos sobre a renda representam uma parcela muito pequena na carga tributária e que a participação dos tributos sobre o patrimônio são insignificantes. Com isso, os pobres acabam pagando muito mais tributos do que os ricos, proporcionalmente as suas rendas. A correção desta anomalia se daria pela elevação da arrecadação dos tributos sobre a renda e isso poderia ser alcançado com a revogação da isenção de tributos para as altas rendas e dos juros sobre o capital próprio, com implementação de um tratamento tributário isonômico para as rendas, independente da sua origem, se, do capital ou do trabalho.

Portanto, alterar a legislação do Imposto de Renda sem promover uma elevação de arrecadação decorrente deste tributo constitui uma oportunidade desperdiçada, sobretudo neste momento de crise, que exige medidas urgentes para o fortalecimento das políticas públicas. Além disso, a elevação do volume de arrecadação deste imposto seria também muito bem-vinda aos Estados, Distrito Federal e Municípios, uma vez que metade da arrecadação deste imposto é destinada ao Fundo de Participação dos Estados (FPE) e ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM).   

Numa primeira leitura, não há dúvida de que as iniciativas de revogação da isenção dos lucros e dividendos distribuídos e dos juros sobre o capital próprio e de correção da tabela do IRPF são positivas e o efeito destas medidas será de que uma parte significativa das altas rendas, hoje isentas, passará a ser tributada. Parece bom, mas o governo sinaliza que essa elevação pode ser compensada com a redução da alíquota do IRPJ.

A proposta do governo não completou nem duas semanas de existência e o próprio ministro da Economia já cogita a possibilidade de reduzir a alíquota do IRPJ ainda mais, de 25% para apenas 15%, medida que anularia totalmente o efeito da tributação dos lucros e dividendos distribuídos. Como a porta foi escancarada, o próprio relator, deputado Celso Sabino, já está propondo uma redução ainda maior no IRPJ, para 12,5%, o que vai inverter o sentido daquilo que era colocado como ponto positivo. A tributação das rendas do capital será reduzida em relação ao que temos hoje e a participação da tributação da renda na arrecadação total será também diminuída, ampliando a regressividade geral do sistema tributário.

A justificativa, comumente utilizada, de que os lucros já teriam sido tributados nas empresas e que, portanto, não deveriam ser tributados quando distribuídos aos sócios, não se sustenta, pois a empresa e os sócios ou acionistas são pessoas distintas e o patrimônio de uma não se confunde com os dos outros, além do que, não existe nenhum impedimento para que uma mesma renda seja tributada mais de uma vez. Aliás, isso ocorre o tempo todo quando utilizamos nosso salário para comprar alguma coisa ou contratar algum serviço. O salário foi tributado na fonte e quando vira receita de outra pessoa, será tributado novamente, e assim por diante, a cada vez que esta renda se transfere para outra pessoa.  

Aqueles que argumentam que a tributação dos lucros e dividendos distribuídos deve implicar, necessariamente, uma redução das alíquotas do IRPJ, pois o somatório das alíquotas poderia significar um custo muito elevado para os investimentos, na comparação internacional, omitem o fato de que a alíquota efetiva das pessoas jurídicas no Brasil é muito menor do que a alíquota nominal de 34% (IRPJ + CSLL), diferentemente do que ocorre em outros países. Além disso, a redução da tributação das empresas, neste momento, está na contramão das tendências internacionais. Até mesmo o FMI tem recomendado que os países elevem a tributação sobre as altas rendas e grandes riquezas e, também, sobre as empresas, especialmente aquelas que aumentaram seus lucros mesmo durante a pandemia.

Pela proposta do governo, os rendimentos de lucros e dividendos distribuídos continuariam tendo tratamento diferenciado em relação aos rendimentos do trabalho e, se forem distribuídos por pequenas empresas, estariam sujeitos ainda a um limite de isenção de R$ 20.000,00, medida que continuará promovendo e estimulando a precarização das relações de trabalho.  

Por que não submeter todos esses rendimentos à mesma tabela de alíquotas progressivas a que estão submetidas as rendas do trabalho? A campanha TRIBUTAR OS SUPER-RICOS propõe tratamento isonômico para os rendimentos das pessoas físicas, e modificação da tabela de incidência com a inclusão de marginais de até 45% para rendas muito elevadas, em harmonia com o que é praticado internacionalmente, é possível, e elevação do limite isenção para rendas inferiores a 3 salários-mínimos, beneficiando a maioria dos trabalhadores.

O Instituto Justiça Fiscal (IJF) publicou Nota Técnica sobre a proposta apresentada pelo governo, na qual reforça que é “essencial que a reforma do Imposto de Renda tenha como objetivo a superação da regressividade do sistema tributário para a diminuição das desigualdades sociais e a retomada do crescimento econômico”. Além disso, a Nota apresenta um resumo dos pontos considerados avanços no sentido da progressividade e aqueles que tornariam o sistema tributário mais regressivo, além de sugestões para o aperfeiçoamento do projeto, com vistas à ampliação da progressividade. Ressalta, também, a presença, no projeto governamental, de um conjunto importantíssimo de medidas antielisivas, com grande potencial para coibir uma parte significativa dos planejamentos tributários abusivos praticados pelas grandes companhias e que são responsáveis pela maior parte do contencioso tributário. Não nos causa nenhuma surpresa que também essa parte do projeto está sendo retirada do texto, pelo relator, sem nenhum esboço de resistência por parte do governo.  

Por fim, ainda que a proposta apresentada pelo governo tenha trazido para o debate alguns pontos considerados positivos, acabou se convertendo numa armadilha. Os setores empresariais conservadores, simulando uma oposição circunstancial ao governo, rapidamente assumiram o controle do processo, com o aval do próprio ministro da Economia, para converter o que parecia ser, para eles, um limão azedo, naquilo que era de fato, uma doce e saborosa limonada.  

Neste momento, portanto, é importante reafirmar as propostas apresentadas pela campanha TRIBUTAR OS SUPER-RICOS e deixar claro que não basta revogar a isenção das rendas do capital e a dedutibilidade dos juros sobre o capital próprio, é preciso tributar estes rendimentos da mesma forma que se tributa a renda do trabalho, ampliar as alíquotas para rendas muito altas, implementar o Imposto sobre Grandes Fortunas, criar uma contribuição social sobre altas rendas para fortalecer a Seguridade Social, aumentar a tributação sobre os lucros dos bancos, entre outras coisas, e isso é perfeitamente possível, e pode ampliar a arrecadação em quase R$ 300 bilhões, onerando apenas 0,3% mais ricos da população e reduzindo tributos para a imensa maioria dos trabalhadores e para as micro e pequenas empresas.   

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

Edição: Katia Marko