Optar ou não pela maternidade é um debate urgente e que precisa ser ampliado
No Brasil o aborto é legal sob três condições: feto anencéfalo, em caso de estupro ou quando a gestação traz riscos de vida para a mulher (ou a menina). Mas há um caso não coberto até então: o aborto como direito de escolha.
As estatísticas comprovam que 2/3 das gestantes que abortam já são mães[1], o que nos apresenta uma necessidade de repensar um aspecto crucial dos direitos reprodutivos no Brasil: a possibilidade de escolher a maternidade. O assunto é, contudo, colocado cada vez mais como um tabu no momento em que forças conservadoras (e corruptas) elencam a família como nó produtivo da sociedade. Essa família defendida pelos conservadores esconde uma outra estatística de número similar: 70% dos casos de abuso infantil são cometidos dentro dos lares.
A pandemia do coronavírus nos coloca diante de uma pergunta que abre outras tantas perguntas: como humanos/as se reproduzem? E quando se reproduzem, que formas de vida assumem? O conceito de reprodução social é um espaço para pensar a maneira como humanos se multiplicam e, por consequência, interagem com outras formas de vida no planeta. E o que isso diz da vida das mulheres, de seus direitos, de seus desejos?
No diagrama vigente de reprodução social se reafirmam vários aspectos da reprodução que são determinados pela condição biológica de gestar e parir: mulheres são majoritariamente responsáveis pelo cuidado, e isso se estende socialmente no trabalho generificado dos cuidados, como na saúde, alimentação, educação, limpeza, entre outros. No diagrama vigente, estabelece-se a realidade de que pessoas do sexo masculino assumem infimamente a responsabilidade e a implicação nos cuidados. E, nada surpreendente, os retrocessos em relação a direitos das mulheres tem sido perpetrados por homens – afirmando a cena conservadora que desenha a exploração dos corpos das mulheres nas sociedades ocidentais com maior opressão e exploração para mulheres negras, indígenas, pobres e trans. Como crítica a esse modo vigente de reprodução social, os direitos reprodutivos vem defender o direito à saúde reprodutiva, e também, à capacidade de escolha da maternidade e da reprodução.
Optar ou não pela maternidade é um debate urgente e que precisa ser ampliado. Essa opção não significa negá-la, muito pelo contrário, politizá-la. Significa aprender com as redes de partilha da maternidade, com as redes de cuidado mútuo entre as mulheres, e nas comunidades que se criam para que o cuidado seja possível. Não o cuidado isolado nos núcleos familiares, modelo implementado pela sociedade, economia e política capitalista, que explora as mulheres com o trabalho reprodutivo não remunerado que é um dos pilares do capitalismo.
O direito de escolha de ter mais um/a filho/a e a legalização do aborto seguro e gratuito demarcam direitos reprodutivos que vão contra a reprodução de privilégios e contra a perpetração de sofrimento, exaustão, pobreza e depressão. Pensar direitos reprodutivos e educação sexual com vistas à legalizar o aborto como direito de escolha atua contra aspectos estruturantes da sociedade que são marcantes na consolidação de classes e grupos sociais e de relações institucionais que privilegiam uns e subjugam outros. A reprodução social também é, portanto, pensada pelos feminismos, e também pode ser transformada pela maternidade como direito de escolha.
Como um dos mais inovadores exemplos de luta, o Carro do Óvulo - uma ação da Frente pela Legalização do Aborto RS - tem circulado em Porto Alegre, criando formas de tomar a cidade para afirmar o potencial de invenção dos cuidados, da vida e da vulnerabilidade que nos fortalece, além de informar sobre condições legais de aborto e acolhendo mulheres que precisam de apoio.
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Cristina Ribas, pesquisadora e artista
[1] Estatísticas apresentadas no relatório “Aborto: por que precisamos descriminalizar?”, Instituto Anis, Agosto de 2018
* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko