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Coluna

O que fazer com a sinceridade do presidente?

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"A expressão 'caguei para a CPI' utiliza-se de uma gíria bastante comum para significar aquilo que não importa e permite intuir o que nossas instituições hoje representam no jogo de poder que tem custado a vida de quase 2.000 pessoas por dia" - Reprodução/Twitter
É indecente tentar auferir vantagens com a compra de vacina, enquanto tanta gente morre e adoece

A frase com que o presidente da República respondeu ao pedido de explicações da CPI é quase um símbolo do tempo presente e de um passado que não conseguimos deixar para trás. Bolsonaro, que faz aglomeração com motociclistas portando bandeiras do Brasil, com palavras de ordem em nome de deus e da família brasileira, respondeu ao Legislativo com um palavrão. A mídia reagiu espantada, ruborizada.

Não deveria, afinal trata-se apenas de uma fala sincera, que nos permite perceber, com nitidez, porque bons chefes de família, pais amorosos, esposos dedicados, filósofos eruditos aderiram historicamente a regimes autoritários, criaram técnicas de tortura, mataram. Eles simplesmente não se importavam.

A expressão “caguei para a CPI”, utiliza-se de uma gíria bastante comum para significar aquilo que não importa e permite intuir o que nossas instituições hoje representam no jogo de poder que tem custado a vida de quase 2.000 pessoas por dia. E se o que essas instituições fazem já não importa, é porque há um outro jogo que desde sempre se desenrola em ajustes, trocas e silêncios, que contam com a cumplicidade dos grandes meios de comunicação. 

Quando, depois dessa fala, a vida segue com o silêncio ensurdecedor de quem tem o dever de agir, temos a certeza de que nada mais foi dito do que a verdade. 

Uma verdade inconveniente. 

A mesma contida em frases como “não sou coveiro”, vai morrer gente “e daí? lamento, quer que eu faça o quê?” Frases, cujos efeitos devastadores na vida psíquica de quem já perdeu um afeto, parecem não abalar a fidelidade dos 20% que silenciam ou usam os motores de suas motocicletas para reafirmar apoio ao governo. 

O que afinal não importa? 

Que tenha havido corrupção para a aquisição superfaturada de vacinas em um país que responde por um terço das mortes no mundo em razão de complicações da covid-19 e tem mais de 19 milhões de pessoas infectadas? 

Que estejamos somando mais de 533 mil cadáveres em menos de dois anos de pandemia? 

É indecente tentar auferir vantagens com a compra de vacina, enquanto tanta gente morre e adoece. Portanto, não se trata de mais um escândalo de corrupção. Trata-se de corrupção na compra do único meio capaz de evitar a morte por covid-19, em uma realidade na qual nem 20% da população brasileira está imunizada. Há, portanto, caso se comprove a denúncia feita ao Ministério Público e à CPI, a deliberada atuação de vários agentes do Estado para se apoderar de dinheiro público, que deveria ser gasto com mais vacinas, com renda básica, com saúde e educação, sabendo que isso significa a exposição de mais pessoas à miséria, à falta de atendimento em postos de saúde, à falta de renda mínima para comprar alimento, ao adoecimento e à morte.

É verdade que outros chefes de Estado, com suas mesóclises e frases bem formuladas, não adotavam políticas menos lesivas do que a atual. O que há agora é o despudor. A fome sempre matou e adoeceu uma parcela expressiva do nosso povo, que é alvo histórico de doenças já erradicadas em outros cantos do mundo, da violência estatal, da falta de emprego. Nosso passado escravista é indecente, assim como toda a política de arranjos que sempre nos conduziram a uma conciliação que beneficia poucos e castiga muitos; que sistematicamente adia as possibilidades de mudança radical. 

E essa indecência sempre foi escatológica.

No Relatório da Comissão da Verdade, produzido em 2014 e disponível no site do governo federal, no volume que traz os relatos das vítimas, há referência à prisão de um sargento, que teve seus "testículos amarrados e puxados" e sua boca "esfregada em um chão cheio de fezes". Algumas vítimas relataram que uma das formas de tortura era obrigá-las a comer fezes. Uma mulher contou das torturas que sofreu, e relembrou quando seus filhos, de 5 e de 4 anos de idade, foram levados para vê-la, nua, machucada, suja com suas próprias fezes. Outro sobrevivente, conta, no mesmo relatório, ter sido espancado nu por mais de uma hora e levado para uma sala cheia de fezes. 

O uso de fezes como forma de humilhação e sevícia tem um simbolismo cruel. Revela o modo como as pessoas torturadas eram consideradas por seus algozes: como dejetos a serem descartados, vidas que não importam. Quando o presidente se refere aos próprios excrementos para dizer o que pensa em relação ao trabalho da CPI, ele dialoga com esse passado recente, invocando a triste memória das tantas vidas torturadas e perdidas em razão de uma gestão que simplesmente não se importava. 

E rompe com um pacto, que exigia de nossas elites o mínimo de decoro. 

Era preciso ao menos fingir que se importavam. 

E agora, o que faremos com isso?

Até onde irá o assédio moral coletivo que nos destitui da condição de seres capazes de chorar nossos mortos e de exigir respeito a todas as vidas? Mesmo aquelas e aqueles que acreditavam estar votando contra a corrupção, que queriam apenas ser contra “tudo isso que está aí”, que desejavam sinceramente um Brasil melhor ou não sabiam direito no que estavam apostando, todas estamos hoje diante da crua realidade dessa frase que é síntese de uma história comandada por quem não se importa. 

Agora, mais do que nunca, precisamos nos importar.

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko