Se usasse um estilo já bem ultrapassado poderia começar com uma frase bombástica: “ressoa em todo o território nacional um grito uníssono ...”. Uníssono? As palavras podem ser as mesmas, mas as diferentes forças de esquerda não têm as mesmas intenções ao gritá-las nas manifestações. Distintas propostas estratégicas subentendem avaliações diferentes sobre a natureza da crise que atravessamos e os riscos que vive a nossa precária democracia.
Todos estamos de acordo que Bolsonaro significa tudo que há de pior na sociedade brasileira e não vou desfiar aqui todos os horrores que vão se acumulando dia a dia desde que o energúmeno se elegeu. O que provoca diferenças na esquerda é a avaliação do risco e o caminho para enfrentá-lo.
Para alguns Bolsonaro é um perigo menor do que o neoliberalismo representado por Guedes, a maioria do Parlamento, o “partido militar” e a elite econômica brasileira. São os que consideram que a palavra de ordem do impeachment é incorreta por levar ao poder o general Mourão. Isto permitiria que o lado mais tosco do atual regime fosse superado e os programas de reformas neoliberais avançassem sem todos os traumas e problemas que a estupidez e a cupidez de Bolsonaro e sua família provocam. Esta visão desconsidera o risco de golpe representado pelas táticas de Bolsonaro. Ou acham que todos os indicativos quase quotidianos da preparação para um golpe são pouco reais ou de sucesso improvável ou não veem diferença de qualidade entre um governo Bolsonaro com plenos poderes e um governo neoliberal dentro da ordem democrática.
Mas se não for por impeachment como pode ser afastado o energúmeno? A palavra de ordem “Fora Bolsonaro e Mourão” depende de uma decisão do TSE que é ainda mais difícil do que o próprio impeachment. E mesmo que fosse possível, o presidente interino até as eleições seria o presidente da Câmara, Artur Lira, o paladino do Centrão que está aproveitando a atenção da opinião pública voltada para a CPI para passar uma majestosa boiada de projetos de lei que fazem a alegria da elite empresarial. Nada muito melhor do que o Mourão. Se Artur Lira não puder assumir por estar respondendo a processos judiciais assumiria o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, outro prócer neoliberal com pinta de bom garoto. Ao preferir o Fora Bolsonaro e Mourão, trocamos seis por meia dúzia.
Quem discorda da palavra de ordem pelo impeachment e apoia apenas o Fora Bolsonaro ou o Fora Bolsonaro e Mourão sem indicar como tirá-lo ou tirá-los deixa em aberto duas possibilidades.
A primeira é desgastar o governo atual com manifestações de massa, CPI, TCU, STF, até as eleições de 2022. Esta estratégia levaria à eleição de Lula em embate contra um Bolsonaro exangue. Esta parcela da esquerda até teme que o desgaste de Bolsonaro seja tão grande que ele poderia perder a vaga no segundo turno e abrir espaço para um candidato confiável para o neoliberalismo. A famosa “terceira via” poderia potencializar a resistência contra a esquerda, o PT e o próprio Lula, mobilizando a parcela do eleitorado chamada de “nem/nem”. Contra Bolsonaro uma parcela dos nem/nem acabaria votando em Lula e outra anularia o voto, garantindo a vitória do candidato do PT. É uma estratégia arriscada pois ignora tanto a possibilidade do golpe, já mencionada, mas também uma possível recuperação de Bolsonaro se a economia voltar a crescer e o governo usar seus recursos para distribuir benesses para os eleitores mais pobres. Este segundo risco me parece menor dado o quadro econômico mais provável no ano que vem, a possível evolução da pandemia com outro surto provocado pela incúria da vacinação e pela maior contaminação da variante Delta, o apagão em perspectiva, a inflação saindo do controle e o contínuo descalabro administrativo deste governo. Mas esta estratégia parece ignorar que o voto em Lula, mesmo supondo que ele ganhe a eleição e que Bolsonaro não dê o golpe, não garante sequer um governo como o do período 2003/2010. O voto em Lula para derrotar Bolsonaro não implica em um voto em governadores, deputados e senadores alinhados com os partidos da esquerda parlamentar. Lula se elegeria com minoria no Senado e na Câmara e com uma oposição na mídia, na elite econômica e no judiciário. Estaria travado em qualquer tentativa de repetir o receituário reformista do seu governo anterior e em uma conjuntura econômica mundial e nacional muito negativa, não permitindo melhorar a distribuição de renda sem mexer com os privilégios dos mais ricos.
A segunda possibilidade para derrubar Bolsonaro é mais radical. Ela aposta, de certa forma, no mesmo quadro que Bolsonaro procura criar. Bolsonaro precisa de uma situação de caos social e de forte instabilidade política e institucional para emparedar o Congresso e o STF e arrancar poderes maiores para a presidência, seja sob a forma de estado de sítio, estado de emergência ou, simplesmente, estado de “força maior”, ou seja, o voto de poderes ainda maiores para si mesmo. Pois bem, alguns setores da esquerda estão sonhando com este mesmo caos, mas com um desfecho diferente. Algo como ocorrido no Chile ou na Bolívia onde movimentos de massa gigantescos neutralizaram não só as forças conservadoras, mas também a oposição social-democrata. A implicação desta estratégia é, simplesmente, um processo revolucionário que precisa, no mínimo, de uma não intervenção das forças armadas. No Chile e Bolívia, a solução foi institucional, nos marcos da democracia destes países, com as forças políticas se curvando ao peso das ruas e, depois, ao peso dos votos. Em nenhum dos dois casos as forças armadas intervieram no processo, embora as forças policiais tenham tentado fazê-lo, sob comando de governos conservadores legítimos (caso chileno) ou não (caso boliviano). Para esta estratégia as manifestações terão não apenas que crescer muito, mas também terão que se radicalizar muito. Isto explica a tática de confronto adotada pelo menos por um partido da esquerda extraparlamentar, tentando impedir que forças de centro ou de direita anti-Bolsonaro participem das manifestações.
A possibilidade do caos social é real, quer pelo recrudescimento da pandemia, quer pelo crescimento da pobreza, desemprego, fome, inflação, apagão, etc. A questão é saber quem terá mais condições de explorar este quadro de profunda instabilidade, se uma força de esquerda radicalizada mas minúscula ou se as forças que darão suporte a Bolsonaro, as polícias militares, as milícias e as próprias forças armadas unidas sob o comando de seus generais ou fracionadas se estes não apoiarem o mito.
Processos revolucionários são, quase sempre, imprevisíveis. A revolução de fevereiro na Rússia de 1918 surpreendeu desde o Tzar até o Lenin. As massas se insurgiram e os militares se rebelaram, sem que os partidos de esquerda tivessem muito a ver com isso. Os bolcheviques foram os mais inteligentes para explorar o quadro gerado pela dissolução do governo e das forças armadas pela explosão do descontentamento social, mas a revolta em si não poderia ter sido mais espontânea. Nossa microesquerda radical sonha com uma situação semelhante em que o Alvorada seria o Palácio de Inverno e Bolsonaro o Tzar. Não vou gastar os dedos mostrando as imensas diferenças entre as duas conjunturas, tanto a econômico-social como a militar, na Rússia de 1918 e no Brasil de 2021/2022, isto para não falar das diferenças entre os nossos partidos de esquerda e o partido bolchevique.
A terceira voz no dissonante Fora Bolsonaro é a que reúne todos os que veem em Bolsonaro um perigo muito real para a manutenção da nossa precária, mas essencial democracia. Entre estes há de tudo: de ex-bolsonaristas rancorosos com o mito ou arrependidos de sua escolha, neoliberais preocupados com o “ambiente de negócios” ou com o isolamento do Brasil nos mercados internacionais, políticos de direita ou simplesmente oportunistas que se dão conta que um Bolsonaro com plenos poderes poderá dispensá-los, até defensores do socialismo e de uma democracia participativa radical. Entre os dois extremos há uma miríade de posições intermediárias, mas o importante nesta frente é a decisão de eliminar o risco que Bolsonaro representa para a democracia. Isto vale tanto para aqueles que estão contentes com a forma atual desta democracia como para aqueles que querem aprofundá-la para construir uma sociedade mais livre e mais justa.
Esta terceira posição é a que não quer esperar as eleições para se livrar de Bolsonaro e defende o impeachment já. Ela sabe que terá que remar contra a maré dos interesses eleitorais de quase todos os partidos que já estão agindo em função do pleito de 2022. Ela sabe que o impeachment, com a composição do nosso Congresso e com o poder de compra do governo federal amarrando o Centrão, somente um grande movimento de massas pode levar ao sucesso. Isto implica em sair da bolha da esquerda, cuja capacidade de mobilização pode colocar um milhão ou dois em todo o país, mas não as dezenas de milhões necessárias para sacudir os congressistas. Será algo como as Diretas Já foram em 1984, mas ainda mais amplo e empolgante. Vai ser possível? Não sei. Mas o que sei é que se a esquerda receber no tapa todo mundo que não é de esquerda (e temos que saber o que cada um considera ser de esquerda) mas que é contra o Bolsonaro, ficaremos com as mãos calejadas e isolados.
Não podemos esquecer quem são e o que fizeram muitos dos que hoje estão se colocando contra Bolsonaro. Não vamos dar anistia aos golpistas, neoliberais ou ex-bolsonaristas. Vamos lutar para ganhar as amplas massas para a nossa liderança e preparar o próximo round, após Bolsonaro, onde vão ser disputadas as visões para o futuro do país. Mas para isso vai ser preciso ter um futuro. Sem Bolsonaro.
* Jean Marc von der Weid é agroecólogo e ex-presidente da UNE (1969/1971).
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira