Para o professor Paulo Ribeiro Cunha, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas (Unicamp) e livre docente da Universidade Estadual Paulista (Unesp-Marília), está equivocado quem pensa que os militares devem se manter longe da política, porque as forças políticas estão presentes tanto nos meios militares quanto nos demais setores da sociedade. Um dos mais reverenciados pesquisadores sobre as relações das Forças Armadas com a sociedade civil em uma perspectiva histórica e também do papel dos militares no processo democrático no país e autor de diversos livros sobre esses temas, Cunha recém lançou a segunda edição revista e ampliada de Militares e militância: Uma relação dialeticamente conflituosa (Ed. Unesp, 484 p., 2021). Consultor da Comissão Nacional da Verdade para assuntos militares, ele defende que as Forças Armadas devem pedir desculpas à nação pelo período ditatorial e que é necessário separar a instituição dos seus torturadores. “Quando isso acontecer, a memória será enterrada e o episódio vira história”, argumenta. Nesta entrevista, ele analisa as relações do bolsonarismo com os militares, diz que o presidente tem o comando, mas não lidera as Forças Armadas, e alerta que o risco de rebelião não vem da caserna, mas das polícias militares.
Extra Classe – Qual é a sua leitura da participação do general Eduardo Pazuello no ato pró-Bolsonaro, no Rio de Janeiro, em 23 de maio?
Paulo Ribeiro da Cunha – Inicialmente, gostaria de dizer que eu defendo uma tese polêmica. Os militares têm o direito de participar da política e, aliás, historicamente sempre participaram. Porém, uma coisa é o direito de participar e outra é partidarizar a instituição, como Bolsonaro tem tentado fazer com membros das Forças Armadas. No caso Pazuello, foi um ato flagrante de indisciplina militar extremamente preocupante. Bolsonaro dá um recado aos seus seguidores, especialmente às polícias militares, de que, com ele, tudo pode, e quem for contra será punido.
EC – Além de não punir, o comandante do Exército, general Paulo Sérgio de Oliveira, mandou arquivar o processo. Por quê?
Cunha – A posição do comandante foi lamentável, servil, em que ele se acopla ao presidente quando a instituição Exército gradualmente tem dado sinais de afastamento já há algum tempo de Bolsonaro, que foi um péssimo militar, e de suas políticas. O general violenta o princípio da disciplina e o princípio histórico muito rico da tradição do Exército brasileiro, que é a dos comandantes falarem pela instituição e tomarem posição. O atual comandante simplesmente teve uma atitude servil, para não dizer covarde. Lamentavelmente, um general bateu continência para um capitão e no dia seguinte foi recompensado com uma altíssima Comenda, que ficou assim como uma associação clara de condecoração por serviços prestados. Ao mesmo tempo, o processo do Pazuello, pasmem, está com um sigilo de 100 anos.
EC – Isso pode gerar algum desdobramento futuro?
Cunha – A última crise, com a demissão dos três comandantes e do ministro da Defesa, já foi um recado claro que a instituição Forças Armadas não estaria acoplada ao governo, a despeito do Bolsonaro falar o tempo todo “meu Exército”. Ficou muito claro e o presidente, a meu ver, saiu enfraquecido. Àquele momento, me parece que o Exército tomou o partido militar, como muitas correntes estão colocando, embora eu considere esse conceito problemático para se recorrer a todo momento. Nessa última crise, parte do comando do Exército queria a punição e o próprio Pazuello entendia que seria punido. Ele, ao não ser punido, descolou o comandante do Exército da sua instituição. Podemos ter algumas situações de crises futuras, embora eu ainda não veja ameaças à democracia.
EC – Ainda? Vê alguma ameaça mais à frente?
Cunha – Acredito que não nas Forças Armadas, mas podemos ter novidades traumáticas, um pouco truculentas, nas polícias militares. As Forças Armadas já vinham dando o recado. Não quiseram comemorar 1964, foram contra uma intervenção militar na Venezuela; vários generais, que em um primeiro momento apoiaram o governo, saíram, como no caso do general Santos Cruz. Você pode discordar dele, mas é um oficial de altíssimo gabarito. Saiu por fofoca de filho! Um herói, uma pessoa que tem experiência de combate, como ele? Entre outros. Então, me parece que hoje o Bolsonaro fala para a sua tribo, que está em 15% da população.
EC – Existe uma relação abusiva entre as Forças Armadas e a sociedade brasileira?
Cunha – Em primeiro lugar, na contracorrente de alguns analistas, eu digo que não foi o Exército que entrou no governo Bolsonaro, embora haja um número enorme de militares que o integram. Foi um grupo de generais, uma ala militar que o apoiou. Ala que teve uma influência histórica, como, por exemplo, do general Coutinho (Sergio Augusto de Avellar Coutinho), leitor de Gramsci. O general defende a tese do “Marxismo Cultural”, assim como o Olavo de Carvalho. Esse grupo (apoiador de Bolsonaro) não era homogêneo, mas tinha algumas coisas em comum. Por exemplo, experiências em missões de paz no Haiti ou na África. Eles tinham, na opinião deles, que fazer alguma coisa. No vácuo do governo Temer. Bom a gente lembrar que o governo Temer – e aí o twitter do general Villas Boas tem que ser visto com uma certa cautela – tinha 3% de popularidade. Um governo que tem 3% de popularidade não governa nem o próprio Palácio. (NE: Em 2 de abril de 2018, véspera do julgamento de um habeas corpus ao ex-presidente Lula no STF, o então comandante do Exército fez uma postagem ameaçadora a pretexto da “paz social”, na qual avisa que os militares estavam atentos às “missões institucionais”).
EC – O senhor relativiza o twitter do general?
Cunha – A postura do general Villas Boas tem que ser contextualizada na perspectiva de um comandante que tinha que falar pela e para a instituição. Num quadro, vamos dizer, de anomia, para resgatar Durkheim. A situação estava caótica. Esse é um dado. Segundo, historicamente, houve momentos em que as Forças Armadas atuaram ao lado do povo e contra o povo. O mesmo Exército que, com um grupo, atuou pela democracia em vários episódios, de 1945 a 1954, e em 1961 defendeu a posse de João Goulart. Parte desse grupo, depois, participou do golpe de 1964. As Forças Armadas refletem também a sociedade, os grupos, as lideranças. Ou seja, todas as tensões da sociedade não são impermeáveis à caserna e acabam influenciando também a atuação na caserna. Basta lembrar que, em 1964, Castelo Branco falava das “vivandeiras dos quartéis”. Tinha a UDN, que atuava junto aos militares sempre com a ideia do golpe.
EC – E a chamada esquerda militar, um dos objetos dos seus estudos?
Cunha – Por outro lado, teve uma esquerda militar com muita influência do partidão (PCB), mas também do antigo PSB, que abarcava um número também grande de militares progressistas, constitucionalistas. Um dado da Comissão Nacional da Verdade mostra que os militares foram a categoria proporcionalmente mais atingida pelo golpe. Pós-64, foram 6,5 mil expurgados. No período de 1945 a 1964, os dados são precários por várias razões. Mas é bom lembrar que houve perseguições violentíssimas no período democrático, especialmente nos anos 1950. Então, a relação dos militares com a sociedade é uma relação de interação, de crítica, de confronto, mas é, às vezes, de autonomização. Não necessariamente algo fora de um contexto político mais global. O Exército que apoiou, no fim da escravatura, a queda da Monarquia, estava se digladiando depois. Ora apoiando as oligarquias, ora confrontando. A história do Brasil tem esses altos e baixos. Em alguns momentos (as Forças Armadas), ao lado das causas progressistas e em outros, lamentavelmente, contra o povo.
EC – Ainda existem militares de alta patente de esquerda?
Cunha – Que eu conheça, não. Conheço alguns muito próximos. Até porque nós temos uma situação de uma democracia frágil e de uma instituição que ainda não comporta pensamentos diversos. Sem dúvidas, o processo de depuração de 1964 e a falta de oxigenação política da própria sociedade foram decisivos para isso, mas temos também que lembrar que a esquerda, em geral, dialoga muito mal com os militares no pós-64. E isso é um problema sério. Não estou falando que a esquerda tenha que entrar nos quartéis, mas é legítimo que a esquerda dialogue com os militares, que tenha uma proposta clara e, óbvio, possa formar seus quadros, possa atuar e, assim, oxigenar a instituição. Da mesma forma, vejo isso como algo importante em relação às polícias militares.
EC – Ao contrário do que aconteceu na Argentina, no Chile, por exemplo, os militares aqui não foram responsabilizados por crimes da ditadura. Essa saída negociada poderia ter sido evitada?
Cunha – Em princípio, sim. Você tem, muitas vezes, um conceito que norteia as relações políticas dos vários setores da sociedade, excluindo em grande medida o setor popular, que é o da conciliação. Se valoriza muito a conciliação. Mas a primeira anistia do governo Figueiredo foi aprovada na Câmara dos Deputados por uma diferença de seis votos. Tinha uma reação forte da sociedade que capitaneou essa luta ao longo das décadas até chegar à Comissão da Verdade. Essa anistia, de fato, foi negociada e conferiu aos torturadores a mesma grandeza –, entre aspas, quero deixar claro –, dos torturados aos chamados crimes conexos. O Exército atuou muito bem nesse processo. Seus lobbies foram muito eficientes. Na minha opinião, as Forças Armadas têm que pedir desculpas à sociedade, mas a responsabilização tem nome, rosto e endereço.
EC – Por quê?
Cunha – A Comissão Nacional da Verdade levantou quatrocentos e poucos torturadores, seguramente o número é maior, pois o trabalho ainda não foi concluído. A meu ver, é um equívoco associarmos os torturadores à instituição. Se eu fizer essa condenação da instituição militar, vou ter que também condenar a minha universidade, pois lá também teve repressão. Vou ter que condenar setores das mais diversas universidades públicas, o Banco do Brasil. Em todos esses lugares, houve perseguições e repressão. Tem que se separar o joio do trigo. As Forças Armadas, enquanto instituição, têm responsabilidade e, ao fazer um pedido de desculpas, como outras forças armadas fizeram, ela se aproximaria da sociedade e se desvincularia desses membros.
EC – A repressão era feita por agentes a serviço da instituição…
Cunha – Entendo que tinham no aparelho repressivo comandos paralelos que, literalmente, não respondiam à cadeia de comando. O Ustra, por exemplo, era capitão, torturava, e em algumas unidades militares, mandava mais do que o comandante formal. Na medida em que se faz essa avaliação e essa crítica, aproxima-se a instituição da sociedade. Aí tem uma enorme dificuldade de diálogo. A Comissão Nacional da Verdade entendeu de outra forma, é bom lembrar. Na hora em que você separa o joio, o Ustra, da instituição, você preserva a instituição. Salvo aqueles militares que já eram coronéis ou de patente maior, todos os capitães e tenentes identificados como torturadores não chegaram a ser generais. A própria instituição militar, discretamente, os colocou no lugar.
EC – Os militares lidam mal com a própria história?
Cunha – A instituição também não conhece bem parte da sua própria história. Eu escuto isso até de militares. A história militar é uma área muito pouco valorizada. Numa ocasião, falando para um general, disse que ele tinha uma cartilha de guerra na Caatinga no livro Os Sertões (de Euclides da Cunha). O traje parecido com o usado pelos sertanejos só foi incorporado como uniforme nos batalhões da Caatinga a partir dos anos 1970. Até então, não tinham aprendido nada. Isso é um absurdo. Agora, voltando a 1964, teve uma ínfima parte das Forças Armadas envolvida em tortura e repressão. Acho que é o caso de fazer uma separação. O que não quer dizer que as questões colocadas como espírito de corpo não existam e tenham que ser reposicionadas.
EC – Os governos democráticos mantiveram os currículos das escolas militares com sua versão da ditadura enquanto “revolução anticomunista”…
Cunha – Os governos civis lidaram mal com a questão militar. Até hoje lidam muito mal. O Fernando Henrique, por exemplo, que deu um passo importante com a criação do Ministério da Defesa, quem ele colocou à frente? Élcio Alvares, um ex-senador que tinha perdido as eleições e era acusado de corrupção. O Lula também não lidou bem com a questão militar. O ministro da Defesa, embaixador José Viegas, quis punir o comandante do Exército e o Lula foi contra. O embaixador ficou desmoralizado e o Lula podia ter permitido a punição porque ele tinha uma popularidade enorme. Você tem que lidar com militar da forma como ele entende, com comando e liderança. Você é autoridade, ele tem que bater continência para você.
EC – Onde os governos civis erram?
Cunha – Os governos civis acharam que, equipando as Forças Armadas, contentariam os militares. Não aprenderam nada com a história. Getúlio Vargas comprou 70 caças Glost Meteor, na época os mais avançados, e a Aeronáutica continuou conspirando. A Marinha recebeu o Porta-aviões Minas Gerais em 1960 e continuou conspirando.
EC – E as questões dos currículos?
Cunha – Os governos civis não atuaram nesse quesito importante, que é o da reformulação dos currículos das academias militares, que é, inclusive hoje, uma recomendação da Comissão Nacional da Verdade. O Nelson Jobim, ex-ministro da Defesa de Lula, chegou inclusive a elaborar um projeto de reformulação, mas não foi adiante. Os militares têm que ser enquadrados, reconhecidos, têm que participar, mas o poder é civil e emana do povo. Eles não têm esse poder de tutela. Mas, agora eu vou falar uma hipótese minha: Bolsonaro talvez nos faça um favor. O de mostrar duas coisas a médio prazo. A primeira, que o desastre dele como presidente mostrou que não é um militar que vai resolver os problemas do país. Em segundo, foi a gestão do Pazuello. Ela enterrou de vez aquela concepção de que os militares são ótimos gestores. Pazuello hoje virou sinônimo de pesadelo. Além de ineficaz, também com muita corrupção ao seu redor. No próprio ministério, com o que vimos recentemente no Rio de Janeiro. Então, a médio prazo, isso pode significar uma nova relação entre militares e civis, mas isso é uma hipótese.
EC – Há relação entre o ressentimento com a Comissão da Verdade e a fidelidade de militares de alta patente a Bolsonaro?
Cunha – Não. São momentos distintos para mim. É bom lembrar que boa parte dos militares que votaram no Bolsonaro no segundo turno não o fizeram no primeiro turno, quando ele teve apoio especialmente entre sargentos. Hoje tenho minhas dúvidas. Primeiro, a reforma da previdência dos militares não privilegiou os sargentos, entre os quais Bolsonaro teve a sua grande base nas Forças Armadas. Esse pessoal está possesso. Segundo, vai depender muito da alternativa que será colocada. Acho que o fator Lula pode significar um outro tipo de diálogo com as Forças Armadas. Inclusive porque, concretamente, os governos do PT – podemos fazer várias críticas – foram os que mais valorizaram as Forças Armadas. Isso é real. Todos os projetos, salvo o das fragatas para a Marinha, que são do Bolsonaro, vieram dos governos Lula e Dilma. Agora, quanto às polícias militares, aí é que implica o risco.
EC – Por que as polícias militares?
Cunha – Bolsonaro tem estimulado muitas tensões e, em alguns momentos, quase aconteceram situações de motim. Um exemplo, o caso daquele PM da Bahia (Wesley Soares Góes) que foi abatido porque estava dando tiro pra lá e pra cá, inclusive contra seus colegas. Ali estava se gestando um motim que não seria somente na Bahia. Os deputados Bia Kicis e Eduardo Bolsonaro estavam estimulando. E olha que curioso. A renúncia do ministro da Defesa, seguida dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, abortou a situação. Mas é um perigo que ainda está presente. Agora, os militares não veem isso com bons olhos. Isso é um poder paralelo e isso os incomoda. Essa questão em algum momento vai ter que ser objeto de atenção. Inclusive porque as Forças Armadas se veem como uma instituição nacional que não tem que partilhar o poder legal com milícias. É uma coisa histórica. O Exército bateu de frente pra acabar com a Guarda Nacional que existia do Império até os anos 1920 de República.
EC – Ao fazer um movimento em direção às polícias, Bolsonaro se distancia dos militares. Por quê?
Cunha – É um outro componente. O Bolsonaro, ao focar, como está se focando nesses grupos, também se distancia dos militares. Os militares não querem a milícia. Não gostam da milícia. Ela é um problema também para os militares, até porque algumas delas atuam em torno de unidades militares de uma forma até muito ostensiva. Continuo dizendo que é aí, nas polícias militares, que nós deveremos ter os problemas maiores até o final do governo Bolsonaro. Isto se ele chegar até o final.
EC – Além da questão dos sargentos, nas altas patentes das Forças Armadas, onde se deu essa inflexão?
Cunha – A inflexão se deu porque todas as políticas do Bolsonaro têm sido desastrosas. Você destituir generais do naipe de um Santos Cruz não é pouco. Isto reflete. É um cara conservador, mas é de altíssimo nível. Recentemente, saiu uma pesquisa mostrando que o Lula já divide o voto dos evangélicos. Interessante esse carisma dele. Digo que a eleição do Bolsonaro se deve muito aos erros da esquerda, mas, hoje em dia, se há um governo com capacidade de autofagia é o do Bolsonaro. Vai auxiliar a esquerda, com certeza. O fator Lula, certamente, vai influenciar nas Forças Armadas. Qual a moral que o Bolsonaro tem? Na realidade, esses militares que o apoiaram tinham a ideia de controlar o Bolsonaro. Foi aí que eles se perderam. Eles sabiam quem era o Bolsonaro. O Exército opera com dois conceitos: comando e liderança. Eles nunca reconheceram o Bolsonaro como um bom militar, mas, naquele momento, era uma liderança política, porque falava pra fora e foi eleito. Ele foi perdendo essa liderança. É bom lembrar que todo líder é um comandante, mas nem todo comandante é líder. Em tese, ele, Bolsonaro, é o comandante das Forças Armadas. Isso não quer dizer que ele lidere hoje as Forças Armadas.
EC – Como dialogar com uma instituição que trabalhou para sonegar informações, como no caso da guerrilha do Araguaia?
Cunha – Você tem toda a razão. Esses arquivos têm que ser abertos. É fundamental, é história. Os militares lidam mal com a própria história também. Eu estudei um grande intelectual militar que foi Nelson Werneck Sodré (1911-1999), que não é estudado, salvo individualmente pelos militares. A Coluna Prestes, por exemplo, é estudada em várias academias militares do mundo, mas não nas nossas, salvo enquanto tática. Cordeiro de Farias (militar, revolucionário e político, 1901-1981), em suas memórias, só em duas ocasiões ele falou da Coluna Prestes no Brasil, salvo em um livro, em 1950 e em 1960, para os americanos! Estou falando de Cordeiro de Farias. Pode se discordar dele, mas é um monumento. Isso tudo tem que ser repensado. São desafios a serem colocados.
EC – No imaginário dos militares, a Comissão da Verdade foi uma ação revanchista?
Cunha – Em duas oportunidades na Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed), pude debater esse assunto e pedi que fosse mostrado um único caso do “outro lado” que não tivesse sido investigado. Porque eles falam que a comissão investigou um lado só. Até hoje não tive respostas. Na verdade, é uma falsa questão. O que tem que ser investigado mesmo é o que começou com tudo. E é um trabalho contínuo. Milhares de militares, camponeses, operários, estudantes foram presos e torturados. Isso não é um trabalho que tem data para acabar. Até hoje se investigam os crimes da Guerra Civil Espanhola. Quando eles falam que tem que investigar o outro lado, eu falo: vão nos processos. Estão aí! Os IPM (inquéritos policiais militares) estão todos aí. Existe uma falsa questão que eu tive a oportunidade de debater com muitos militares. Começaram a construir chavões. O general Etchegoyen (ex-ministro do governo Temer), por exemplo. O pai dele foi comprovadamente um cara vinculado à tortura. Esquecem que, quando o Etchegoyen veio a público defender o pai, o Exército não falou nada. Disse que era uma questão pessoal, não ficou do lado dele. Da mesma maneira, quando o almirante Othon (Othon Luiz Pinheiro da Silva, ex-presidente da Eletronuclear perseguido pela Lava Jato) foi acusado de corrupção e preso, a Marinha não se rebelou. São particularidades interessantes pra gente entender isso que está acontecendo. Um exemplo de que não houve revanchismo é o do capitão Wilson Machado, do atentado do Rio-Centro. Está andando aí na rua, quando deveria estar preso. Aquilo lá foi um escândalo. Seguiu a carreira, com discrição. Mas não chegou a general.
EC – O twitter do general Villas Bôas não ajudou a desencadear a crise que vivemos hoje?
Cunha – Bom. Inegavelmente, aconteceu. Mas isso não é nada de novo. Ele se manifestou politicamente como em outras ocasiões. Pouco tempo antes, quando o Temer declarou Estado de Emergência em Brasília, o Villas Bôas foi contra. Então, veja, o que eu estou colocando é que em vários momentos essas coisas acontecem. O twitter tem uma relevância grande, mas eu acho que muito da questão, ali, para justificar a derrota do Lula – acredito que foi um golpe, sem dúvidas – a esquerda jogou para debaixo do tapete os seus erros na condução do processo. Ali, eu acho que a esquerda errou muito. O Bolsonaro não foi eleito só pelos seus méritos, que, aliás, não tem nenhum. Foi eleito também pelos erros do arco progressista de esquerda. O twitter do general será sempre marcado por isto, mas eu também acho que ele estava falando para a instituição. Como comandante, não tinha ninguém acima dele. Então foi uma situação muito interessante para avaliar, mas que não foi nenhuma novidade na história.
EC – A quem você se refere ao citar a “ínfima parte” das Forças Armadas envolvidas diretamente nas torturas e na repressão durante o golpe militar?
Cunha – Lembro do coronel Cavagnari (Geraldo, referência nacional em estudos estratégicos, falecido em 2012). Ele me disse: “Paulo, eu apoiei 1964. Mas, depois daquilo lá, eu fui cuidar da minha vida”. Então, veja bem, ele tem responsabilidade? Tem. Mas a responsabilização não é dele. A Comissão Nacional da Verdade levantou quase 250 órgãos de arapongagem. Os ministérios tinham, as universidades tinham, as empresas estatais tinham, além dos DOI-Codi da vida. Um aparato muito significativo. Seria como condenar o exército alemão pelos crimes da SS. A SS é uma coisa, o exército alemão é outra. Claro que teve soldados que atuaram barbaramente, mas o exército alemão tinha uma postura que atuou na guerra com um certo cavalheirismo. São coisas diferentes. É nesse sentido que eu reforço essas questões. Para abrirmos um diálogo. Já falei isso para os militares. ‘Na medida que vocês pedirem desculpas à nação, vocês enterram a memória e vira história.’ Aí a história vai ser apreendida e pesquisada com vários olhares, mas deixa de ser memória. Enquanto não acontecer isso, fica uma memória negativa.
Edição: Extra Classe