Rio Grande do Sul

Não à privatização

Carris: empresa de transporte coletivo mais antiga do país sob risco de privatização

Com quase 150 anos de história, futuro da empresa pública porto-alegrense foi tema de audiência pública virtual na ALRS

Brasil de Fato | Porto Alegre |
A cidade de Porto Alegre é a única capital que tem uma empresa pública de transporte ativa no país, a Carris - Divulgação Susepe

A cidade de Porto Alegre é a única capital que tem uma empresa pública de transporte ativa no país. Criada via decreto, pelo então imperador Dom Pedro II, a Carris nasceu em 19 de junho de 1872. Quase 150 anos depois, ela corre risco de ser privatizada, ou até mesmo extinta.

Alegando ser inviável a manutenção da empresa por conta de desafios estruturais, o prefeito Sebastião Melo (MDB) encaminhou à Câmara de Vereadores, no dia 15 de junho, o Projeto de Lei 13/2021, que prevê a desestatização da Carris.

Com intuído de debater o assunto, a Comissão de Segurança e Serviços Públicos da Assembleia Legislativa do RS promoveu, na manhã desta quinta-feira (01), uma audiência pública proposta pela deputada estadual Sofia Cavedon (PT). 


Audiência virtual debateu sobre a privatização da Carris, empresa pública de transporte de Porto Alegre / Divisão de fotografia da Assembleia Legisltavia

Na época de seu surgimento Porto Alegre, ainda uma província que contava com 44 mil habitantes. Hoje, a Capital tem em torno de 1,409 milhão de pessoas. Cerca de mais de 262 mil pessoas dependem quase que exclusivamente do transporte coletivo público. 

Quando encaminhou o projeto à Câmara, o prefeito Melo, pelas redes sociais, escreveu que é preciso discutir com os vereadores e a sociedade a remodelação do transporte coletivo. “O modelo atual faliu, e o cidadão não pode mais ser penalizado com um mau serviço que custa caro”, afirmou. 

De acordo com o texto do projeto, é autorizado ao município alienar ou transferir, total ou parcialmente, a sociedade, os seus ativos, a participação societária, direta ou indireta, inclusive o controle acionário, transformar, fundir, cindir, incorporar, liquidar, dissolver, extinguir ou desativar, parcial ou totalmente a Carris.

O executivo, na justificativa, alega que o transporte público coletivo enfrenta desafios estruturais que resultam na “precarização de sua capacidade de financiamento". De acordo com o texto, houve uma queda de 25% de seus passageiros entre 2016 e 2019. Destaca ainda o impacto desta crise, pontuando que a empresa precisou de um aporte de R$ 16,6 milhões em 2019 para fazer as despesas necessárias ao funcionamento. No contexto da pandemia, conforme destaca o governo municipal, o aporte subiu para R$ 66 milhões. A prefeitura ressalta que precisou realizar aportes para as empresas privadas de ônibus da Capital, também. 

Presidente da Comissão, o deputado estadual Edegar Pretto (PT) disse que a justificativa da empresa ser inviável gera dúvidas. De acordo com ele, o patrimônio da empresa é de aproximadamente R$ 300 milhões, se somando os valores da frota e mais os 340 veículos. “Além do patrimônio da empresa, tem uma receita bruta anual considerável. Segundo a receita total de 2019 foi de quase R$ 171 milhões. Não podemos vincular a venda da Carris como condição para melhorar o serviço de transporte coletivo da nossa cidade. As causas das péssimas condições de transporte coletivo na cidade não dizem respeito à existência de uma empresa pública e sim à falta de controle da gestão pública”, opinou o parlamentar, destacando também o valor imobiliário do terreno da empresa. 

O secretário de Mobilidade Urbana de Porto Alegre, Luiz Fernando Záchia, abriu sua fala sobre a falência do transporte urbano da cidade dizendo que não se pode separar a Carris desse cenário. Segundo ele, em em 2015, quando foi feita a licitação, o sistema transportava 1,5 milhão de pessoas por dia dia, e a partir de então, vem havendo uma redução de 3% ao ano. De acordo com o secretário, entre as diversas razões para essa redução está o surgimento de outras modalidades de transporte, bicicletas e motos e em especial, e os aplicativos de transporte.

“Temos 44 mil aplicativos rodando em Porto Alegre, isso desregula ainda mais o sistema. De 2016, quando ingressaram os aplicativos, até o início de 2020, a queda no sistema foi violenta. Em fevereiro de 2020, a empresa transportava 808 mil pessoas por dia, em fevereiro de 2021, 276 mil pessoas. Não tem sistema que se sustenta com essa demanda tão baixa porque ele tem o seu custo fixo e variável”, apontou . De acordo com o secretário, o sistema de transporte público tem que ser repensado. Segundo ele, a Carris, ao longo de 10 anos, tem dado prejuízo, com um custo 21% maior do que o sistema privado. 

Para o ex-secretário dos Transportes de Porto Alegre e ex-presidente da Carris, Mauri Cruz, representando o comitê técnico do Fórum em Defesa da Carris, a empresa tem um papel estratégico no transporte público de Porto Alegre, assim com social e histórico. “A Carris nunca parou nesses 149 anos de vida, ela sempre cumpriu um papel fundamental. Ela tem um papel operacional muito importante, porque ela opera as transversais, as universitárias, circulares, que têm o maior percentual de usuários com isenção”, apontou.

Segundo Mauri, uma empresa pública tem custos diferenciados, mas tem também benefício diferenciados. “Ela traz benefício porque não visa o lucro. Às vezes opera no prejuízo porque entende que o transporte público é um serviço essencial. Se a produtividade da Carris em 2019 não tivesse entrado no cálculo da tarifa, ela seria 23 centavos mais cara do que foi. A produtividade da Carris beneficia a redução da tarifa e parte do custo da empresa pública não entra no cálculo tarifário”, destacou, frisando que a crise nos transportes não é causada pela empresa, mas é uma realidade em todo país. 

“Diferente do que Melo imagina, a privatização da Carris não vai reduzir a pressão sobre o orçamento da prefeitura, pelo contrário, vai aumentar, com a diferença de que essa pressão vai repassar recurso público para os cofres das empresas privadas e não para os cofres de uma empresa pública. Do ponto de vista estratégico, não me parece uma boa alternativa a privatização de uma empresa pública. É um privilégio ter uma empresa pública na crise do transporte”, expôs. 

Por sua vez, a secretária municipal de Parcerias, Ana Pellini, afirmou que não é papel do município administrar uma empresa de transporte coletivo. Em sua exposição, trouxe slides sobre a situação da empresa. De acordo com ela, nos últimos dez anos a prefeitura repassou à Carris cerca de meio bilhão. "Com esses recursos a prefeitura poderia construir 10 clínicas de saúde da família, 251 ambulâncias da SAMU”, exemplificou.

Conforme apresentou a secretária, o gasto com o pessoal da Carris é elevado. Disse que uma auditoria feita na na empresa apontou gastos superlativos com combustíveis, pessoal, mecânica e ainda um passivo trabalhista de R$ 30 milhões. Ela reforçou o custo de 21% da empresa pública. “Todo mundo gosta da Carris, mas ela custa,  vamos gastar com a Carris ou com o que pode trazer benefícios à população? Será que não teríamos uma aplicação melhor para o IPTU?”, indagou. 

Pela comissão de representantes dos funcionários, Rosângela Machado, cobradora da empresa há 17 anos, salientou que a Carris é mais eficiente e seu custo é menor em comparação com as empresas consorciadas que atuam na Capital. “ A Carris tem sozinha 22% do mercado enquanto os outros 78% são divididos entre os quatro consórcios. Ela é mais eficiente que os quatro consórcios”, apontou. 

Sobre o prejuízo alegado pelas empresas privadas, Rosângela disse que não procede. Ela afirma que, em 2019, o consórcio de empresas privadas reduziu salários e benefícios em 75%. "Houve muitas demissões, suspensão de contrato por seis meses, vários carros que deixaram de rodar. Isso demonstra também porque o custo da Carris foi maior em 2019, porque ela rodou bem mais do que os outros consórcios, atendeu 22 bairros a mais, durante a noite rodou sozinha. Isso comprova o porque o gasto ter sido maior. Esse ano as empresas estão também com redução salarial dos funcionários", informou.

Representando também a comissão dos trabalhadores, Marcelo Weber disse que Carris ficou devendo muitos quilômetros para o transporte, mas que ela quitou essa dívida no final de agosto. Em relação às taxações, questionou o motivo de não taxar as empresas de aplicativos para reverter o valor para o transporte público de Porto Alegre. Em relação aos salários, questionou os altíssimos valores pegos às pessoas em cargo de confiança  (CC) dentro da Carris. Segundo Weber há uma média de 25 a 30 CCs dentro da empresa ganhando de 4 a 12 mil reais.

Marcelo Cafrune, do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, lembrou que a condução geral do sistema é privada no país. Destacou também que, no caso de Porto Alegre, deve se levar em conta o debate do Plano Diretor que está em curso, onde o custo do transporte público está diretamente relacionado com a necessidade de pensar o planejamento da cidade. “Precisamos enfrentar a estratégia do setor privado de ficar com as receitas e deixar os custos para população pobre, para a classe trabalhadora. Nesse sentido é preciso enfrentar a ênfase no transporte privado, precisamos qualificar o transporte público. É preciso olhar para soluções integrais”, afirmou. 

Para a deputada Sofia Cavedon, quando a secretária Pellini diz que o governo não deve ter uma empresa pública, é uma posição política, não uma visão técnica. Em sua avaliação, antes da privatização da empresa, seria central recuperar a câmara de compensação. Segundo ela, é necessário um debate onde sejam transparentes os números da câmara de compensação do sistema, hoje nas mãos dos consórcios privados de transporte coletivo.

"Temos que mirar em uma cidade em que todos andem mais no transporte coletivo. Qual o padrão que queremos oferecer? Precisamos também pensar no que vamos oferecer ao usuário, linhas que deixam de existir, poucos horários e carros velhos e sem conforto.” A parlamentar disse que vai propor à Comissão de Segurança e Serviços Públicos a realização de um seminário para discutir o tema.

Também se manifestaram o atual presidente da Carris, Maurício Cunha, o usuário do transporte público André Nunes e a procuradora de Justiça Flávia Malmann.

*Com informações da Assembleia Legislativa


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Edição: Marcelo Ferreira