São muitos os fenômenos políticos que indicam que vivemos em um momento de rupturas democráticas. O assassinato, por agentes do estado, do assassino confesso Lázaro em Brasília no dia de ontem (28/06/2021) e a comemoração por parte destes mesmos agentes, da mídia corporativa e de parte da sociedade, é só mais uma evidência.
Quis o destino que esse fato ocorresse dias após a passagem do humanista gaúcho José Paulo Bisol. Talvez para que lembrássemos e, por conseguinte, fizéssemos a comparação, de fato semelhante ocorrido em 5 janeiro de 2002 quando, um sequestro com reféns no centro de Porto Alegre resultou num cerco policial por mais de 27 horas. Ao final, o sequestrador, temendo pela vida, pediu a presença do então Secretário de Justiça e Segurança, José Paulo Bisol que, prontamente, foi até o local e saiu abraçado ao delinquente assegurando que ele respondesse, vivo, por seus atos perante as varas da lei.
Na época, Bisol foi duramente criticado pela oposição ao Governo Olívio e pela mídia corporativa. Queriam sangue. Para nós, que estávamos com ele no dia a dia, era visível sua satisfação pela oportunidade de demonstrar, não somente a Porto Alegre, mas ao mundo, o que é uma política de segurança eficiente e humanizada. Não houve mortes e nem perdão a conduta criminosa. As investigações realizadas após o fato apuraram que o “criminoso” era uma pessoa com transtornos mentais, não tinha passagem pela polícia e, antes deste fato, nunca havia oferecido risco a sociedade.
Os assassinatos em Brasília representam uma porta escancarada para a barbárie. Por um lado, fazendeiros contratam um matador profissional, evadido do sistema prisional, para que cometa crimes objetivando que as propriedades da região percam valor e sejam vendidas a preços de banana. Depois, o estado mobiliza duzentos e cinquenta agentes por 20 dias para buscar e assassinar o contratado, evitando assim, a elucidação dos crimes e a identificação dos demais envolvidos. Pior, os defensores de um estado justiceiro, fazem festa, comemoram a barbárie e acusam os defensores/as do estado democrático de direito de apoiadores da violência contra a sociedade.
Bisol conhecia bem este ambiente. Por isso, dedicou todo tempo possível para tentar construir uma política de segurança pública eficaz, que reduzisse a violência, mas com respeito ao devido processo legal, aos direitos humanos e, principalmente, a partir da humanização do sistema de segurança. Os desafios que Bisol enfrentou há 20 anos não foram bem compreendidos, nem por parte da esquerda que desejava ser aceita pelo status quo de um sistema policial que criminaliza as pessoas pobres e negras e muito menos por quem se beneficia deste tipo de política.
De lá para cá a situação só piorou. O pensamento fascista, autoritário, de desrespeito aos direitos humanos, de ações paraestatais de extermínio das pessoas pobres e pretas, sempre legitimada pela mídia, foram se ampliando a ponto de se constituírem como alternativa de poder. Bolsonaro é, em parte, resultado da incompreensão das esquerdas que era preciso humanizar as polícias e não armá-las ainda mais. Neste sentido, Bisol foi visionário. Sabia dos riscos de polícias fora do controle do estado democrático de direito. Infelizmente, ele não foi ouvido a tempo.
Agora, estamos no limiar de uma ruptura democrática mais profunda do que aquela ocorrida em 1964. Naqueles tempos, as ações de violência estatal ocorriam nos porões, às escuras, porque os agentes públicos tinham medo de serem reconhecidos como torturadores, desumanos, violadores de direitos humanitários. Hoje, eles se orgulham de suas práticas desumanas. Comemoram a morte, seja pela fome, pela pandemia ou pelas armas do estado.
Não ouvimos nem compreendemos Bisol há tempo. Hoje estamos numa encruzilhada democrática, com menos espaço do que tínhamos em 2002 para reverter este estado de coisas. Não podemos e nem devemos alimentar o ódio e aprofundar a divisão da sociedade brasileira. Pelo contrário, é preciso fortalecer o pouco de democracia, organizar e mobilizar a sociedade na defesa de seus direitos. Derrotar o fascismo como pensamento político. Mas para defender a democracia é preciso, primeiro, defender a vida dos/das democratas. E isso não será possível sem uma mudança de postura no enfrentamento à violência paramilitar. Esse, um grande desafio.
* Advogado socioambiental, especialista em direitos humanos, professor de direito a cidade e mobilidade urbana, diretor executivo do Instituto IDhES, membro do conselho diretor do Camp e da Diretoria Executiva da Abong.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Sul 21