Maria Carolina de Jesus foi certeira quando cunhou a frase ‘quem inventou a fome são os que comem’
A fome é sempre resultado das ações da mão humana, seja pela distribuição desigual de riquezas, seja por ações predatórias que levem ao desequilíbrio ambiental ocasionando movimentos de migrações forçadas. Maria Carolina de Jesus, do alto de sua simplicidade, foi certeira quando cunhou a frase “quem inventou a fome são os que comem”. Essa é uma frase resumo que serve para entender a geopolítica da fome no mundo, o aumento da fome está diretamente ligado às sucessivas crises do capitalismo, que se agravou com a crise do sistema financeiro de 2008 e com desdobramentos muito fortes para os países da periferia do sistema.
A vitória de Donald Trump não foi um acidente de percurso na trajetória imperialista dos EUA. Foi um “mau” necessário que a elite americana e a elite mundial alinhada ao imperialismo norte-americano gestaram desde o fatídico 11 de setembro, para reorganizar as bases do capitalismo no mundo cultural, militar e economicamente, adiado pelas condições econômicas estáveis que o mundo se encontrava, mas que encontrou terreno fértil após a crise de 2008. Segundo a “Estratégia de Defesa Nacional” apresentada por Condolezza Rice ainda no início da década de 2000, a orientação do estado americano é impedir, com todos os meios necessários, a consolidação de novos centros de poder que possam vir a ameaçar a condição dos EUA de potência hegemônica do sistema internacional.
Após toda e qualquer crise mais aprofundada do sistema, o capital empreende ação ainda mais hostil contra os estados nacionais - no caso brasileiro o centro do sistema agiu diretamente, como mostram as denúncias feitas pelo site The Intercept. O Brasil exercia forte liderança e era um dos polos dos países emergentes críticos à arquitetura de poder global exercida pelos EUA, materializada na formação dos BRICS abarcando Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Junto a esse bloco o Brasil vinha articulando posições comuns críticas as políticas dos países capitalistas centrais nos fóruns multilaterais do sistema ONU, com destaque para a exigência de reformas estruturais no FMI e Banco Mundial, mudanças no Conselho de Segurança, alternativas ao poder estrutural do dólar na economia global, e medidas de enfrentamento da crise econômica no âmbito do G-20 que resguardem e assegurem o direito ao desenvolvimento e a soberania. Com políticas antissistêmicas, buscando uma nova correlação de forças entre os países.
Para conter tal avanço, a elite norte-americana alia-se em solo brasileiro ao agronegócio – que tem como principal parceiro comercial a China, mas alinhado culturalmente aos EUA – aos setores financeiro, jurídico, midiático e às forças armadas. Uma grande conspiração capaz de (re) estabelecer as bases de um movimento retrógrado e que desestabilizou a vida política nacional, com novos atores (desqualificados) ocupando as ruas e espaços de poder institucionais, numa simbiose que destrói o mínimo do que se gestava da construção de um Estado de bem-estar social, integrado à economia capitalista. Restou o ultraliberalismo e o autoritarismo, face caricata e hostil do capitalismo que emerge ao final de toda crise de maior duração do sistema. Foi o capitalismo que pariu Hitler, Mussolini e todas as ditaduras militares da América Latina no século passado.
Em todo projeto autoritário, a fome e a desigualdade andam juntas. Se o Brasil tem hoje mais de 19 milhões de pessoas em situação de fome, mais de 33 milhões de trabalhadores subutilizados (palavra utilizada para maquiar o nome do desemprego), se temos um lacaio na presidência, é fruto dos movimentos do sistema capitalista, mas é antes de tudo fruto da ação humana. Fruto dos que comem todo dia e não tiveram prejuízo algum com os desdobramentos da crise política, econômica e institucional que o Brasil está metido. A mídia estar preocupada com a fome e apresentar o agronegócio como saída para a crise alimentar é uma piada de mau gosto, tão ou mais ignorante e mentirosa que a saída política que apresentaram ao país em 2018, representada por Jair Messias Bolsonaro.
* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira