Para começar, um esclarecimento que seria desnecessário caso a confusão política em que hoje vivemos não fosse tão dramática e tão arquitetonicamente moldada para truncar (conforme é conveniente) qualquer debate sério: o senador Luis Carlos Heinze (PP/RS) está longe de ser um estudioso ou um intelectual, está longe de ser alguém que conheça (ou que admire, ao menos) o mundo da universidade. Quem o acompanha na CPI da Covid sabe do que estou falando: dogmatismo, negacionismo e anticientificismo têm caracterizado, à exaustão, a conduta de tal senador.
Sem ser, portanto, um ilustrado, quase voluntariamente alheio à complexidade e à pluralidade do mundo, em pleno século XXI, o senador Heinze não me causa mais surpresas. Não me espanta que idealize o período em que se graduou (nos anos 1970). Não me espanta que suas percepções sobre a UFSM – manifestadas num artigo que publicou recentemente – sejam tão obtusas, feitas sob prismas tão restritos, induzindo a conclusões tão simplórias e enviesadas.
Como político alçado momentaneamente à proximidade do poder, o compromisso de Luis Carlos Heinze não é com a verdade, com a justiça ou com o esclarecimento público. Seu compromisso fundamental é com os dividendos de suas próprias falas, é com o acúmulo de capitais e favorecimentos políticos que lhe interessam.
E a política, como bem sabemos – tal como vem sendo praticada na órbita imediata do poder, principalmente –, tem muito mais a ver com a produção e o manejo das ilusões sociais do que com o equilíbrio analítico, a técnica interpretativa, o olhar abrangente e detalhado.
Os depoimentos do senador, caso fossem extraídos do simplório jogo de polarizações em que são lidos (e ao qual alimentam), não acrescentam absolutamente nada. São insignificantes. Nos servem muito pouco. O texto, publicado na última sexta-feira (25), no Diário de Santa Maria, só repercute porque estimula o empobrecido dispositivo ideológico que trouxe seu autor ao poder e que o mantém aí, transitória e circunstancialmente.
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De resto, para além de sua ausência de fundamentos e de relevância, o senador repete os padrões argumentativos que vêm caracterizando a suposta “nova política” representada por Jair Bolsonaro e seus cúmplices, há quase três cansativos anos.
A primeira dessas estratégias – dentro do quadro geral de uma “retórica de fachada”, que permite apresentar como “novo” algo que, de fato, não tem nada de novidade – é a modulação da fala: é a prática de atenuar ou desdizer o que antes disse. Isso se dá, muitas vezes – e aqui não é o caso, cabe reconhecer –, com o auxílio providencial de um terceiro implicado, um outro ator envolvido na mesma rede de comandos, que salta em socorro, se for necessário, minimizando incêndios ou estragos ainda maiores.
Esse não é um expediente de correção de rumo ou mera mudança de ideias. Não se trata do genuíno reconhecimento de um erro. É muito mais cínico do que isso. Antes de reconhecer um erro e desculpar-se, verdadeiramente, trata-se de insinuar a incapacidade de entendimento do interlocutor. Cria-se também, fazendo assim, a oportunidade para reafirmar, logo à frente, o mesmo dito, avançando portanto, através de sua replicação num futuro próximo, na promoção dos efeitos sociais que o dito produz e na forçosa familiarização do interlocutor às ideias ou às práticas que os ditos antecipam. É um truque bastante baixo, para resumir.
Outro argumento nesse mesmo nível é o argumento moral. É até engraçado: sempre que vejo um guardião da moralidade argumentar (imponente, como se estivesse chocado, como se fosse uma criança digna de proteção ou um puritano ofendido) sinto cheiro de hipocrisia. É tiro e queda. Quase nunca falha. O senador saiu em defesa da ex-presidente Dilma Rousseff por ocasião das montagens pornográficas transformadas em adesivos para automóveis no episódio do aumento do litro da gasolina (para cerca de R$ 4,00, se não me engano), em 2015?
Tais investidas morais, vale acrescentar, visam causar comoção e medo, sobretudo pânico moral, a partir dos quais é mais fácil mobilizar os seguidores mais impressionáveis e induzir à irracionalidade. É outra estratégia bastante baixa, sem dúvida.
A terceira, também muito evidente, consiste em acusar no outro aquilo que eu mesmo pratico, como num espelhamento. Por exemplo: acusa-se na direção da Universidade o emprego de “manobras políticas”. É justo reconhecer, em contraponto, que o governo representado pelo senador também desenvolve, em níveis de assimetria e prevalência que beiram a covardia, seus próprios estratagemas para atropelar processos e driblar a vontade expressa da comunidade universitária. Temos acompanhado os casos de exigência de alinhamento (para não utilizarmos a palavra “intervenção”, que pode soar forte demais aos ouvidos mais sensíveis) dentro das sucessões das reitorias nas universidades federais, país afora.
Recorro aqui, para ser mais didático, ao velho ditado: para os meus amigos, tudo – tudo se resolve –; para os meus adversários, a severidade da lei. Ou seja: o senador acusa como ruim, nas universidades, aquilo que ele próprio pratica, direta ou indiretamente, de forma muito mais lesiva, dentro do senado federal, como sócio (ou, como ouvi alguém dizer, como “capanga” e “capacho”) de Jair Bolsonaro, na “tropa de choque” do atual governo.
Por fim, entender a universidade como instrumento de “catequização”, definir, nesse viés, o valor, a diversidade e a complexidade do que se faz no campus da Universidade Federal de Santa Maria só é possível para alguém que desconhece as universidades. Só acredita nisso – além dos paranóicos – aquele que pretende fazer desse discurso (falso, estereotipado, redutor e preconceituoso) justamente um instrumento da “catequização”, insumo à polarização política que o beneficia. Se as universidades fossem um instrumento tão poderoso de “catequização”, como se alega, não existiriam tantos bolsonaristas como Luis Carlos Heinze, um senhor com ótimo senso de oportunidade e curso superior.
É impossível finalizar sem remeter e saudar à memória do professor José Mariano da Rocha Filho. O senador Heinze não tem o direito de sequestrá-la ou instrumentalizá-la para seus propósitos partidários, para embasar ações que visam, no extremo, quando bem-sucedidas, tolher e enfraquecer a importância das universidades públicas na construção de um Brasil democrático, justo e republicano.
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Haveria muito mais o que analisar. Por exemplo: a discrepância entre os motivos para se ter orgulho da Universidade Federal de Santa Maria, variados e grandiosos demais, e os motivos apontados para se ter vergonha, motivos que se reduzem à estatura política, à viseira ideológica e ao peso histórico do próprio senador.
Como alguém com acesso direto ao poder – caberia ainda lembrar –, o senador Heinze, bem como qualquer outro cidadão que se preze, deveria ter a dignidade de lutar incondicionalmente pela universidade pública que o acolheu e o formou. Seria ótimo se soubesse fazer política sem difamá-la.
* Fabrício Silveira é formado em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria.
** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira