Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

"A sociedade civil precisa ser protagonista do enfrentamento à pandemia"

Presidente da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19, Gustavo Bernardes fala dos objetivos do grupo

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Gustavo Bernardes, um dos fundadores da Associação, ainda hoje sofre as consequências de um caso grave de covid em 2020 - Arquivo pessoal

A fim de prestar apoio a familiares das mais de 500 mil vítimas da covid-19 e a milhões de brasileiras e brasileiros que sobreviveram à doença, dois defensores dos direitos humanos criaram, em Porto Alegre, no dia 8 de abril, a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (AVICO).

Gustavo Bernardes, que chegou a ser intubado no final de 2020 e ainda hoje sofre as consequências da doença, e Paola Falceta, infectada enquanto cuidava de sua mãe, que pegou a doença ao ser hospitalizada para uma cirurgia de emergência e faleceu de covid em março de 2021, se inspiraram em uma iniciativa semelhante já existente na Itália.

De pronto, o interesse pelo tema e a necessidade de apoio levaram a entidade a se expandir. Hoje, a AVICO conta com associados em diversos estados brasileiros. Nasceu acreditando na potência da mobilização social e no enfrentamento comunitário da pandemia.

Seu objetivo principal é fazer o controle social, ou seja, envolver pessoas atingidas pela doença nos debates de condução da pandemia, que ficam restritos a governo e entidades. Com mais de 100 voluntários de diversas áreas, a Associação oferece grupo de apoio a enlutados e orientação jurídica para sobreviventes e familiares.

O advogado Gustavo Bernardes, 46 anos, presidente da AVICO, destaca a indignação das famílias com a gestão da pandemia no país. “As famílias estão indignadas, pois percebem que seus familiares poderiam ter sobrevivido a pandemia se o governo Bolsonaro tivesse agido prontamente, adequadamente e com responsabilidade diante desta tragédia. Muitas mortes poderiam ter sido evitadas se os contratos com as fabricantes de vacinas tivessem sido assinados lá em agosto de 2020”, exemplifica.

Em busca de justiça, seus integrantes estiveram nos protestos contra o presidente Jair Bolsonaro e por "vacina do braço e comida no prato" dos dias 29 de maio e 19 de junho, bem como no ato em homenagem às mais de 500 mil vítimas realizado nesta terça-feira (22).


AVICO presente na manifestação em Porto Alegre no dia 19 de junho / Arquivo pessoal

No início de junho, a AVICO protocolou junto à Procuradoria-Geral da República uma representação criminal contra o presidente Jair Bolsonaro por negligência em relação à pandemia. “Precisamos fazer justiça para as vítimas da covid-19. Essas pessoas não apenas foram vítimas de um vírus, mas também foram vítimas do descaso criminoso, da sabotagem às medidas de prevenção, da falta de interesse na vacinação da população. Precisamos mais do que nunca de memória e justiça no Brasil e a AVICO lutará por isso”, afirma Gustavo.

Ele, que durante muito tempo foi voluntário da Ong SOMOS, em Porto Alegre, trabalhou em um projeto de assessoria jurídica gratuita para pessoas vítimas de discriminação em razão da sorologia positiva para o HIV/aids e para pessoas discriminadas em razão da orientação sexual ou identidade de gênero. “Essa experiência me permitiu entender a importância do enfrentamento comunitário à epidemia de aids”, conta.

Em entrevista ao Brasil de Fato RS, Gustavo compartilhou sua história - que é a de muitos nesse país - de superação da covid-19 e os problemas que ainda sofre em decorrência da infecção. Falou sobre os objetivos e avanços da AVICO e sobre a importância da sociedade civil ser protagonista no enfrentamento à pandemia. Confira:

Brasil de Fato RS - Como e quando surgiu a AVICO e quais são seus objetivos?

Gustavo Bernardes - Eu havia ficado cerca de 30 dias internado no final de 2020 com covid-19. Cheguei a ser intubado e desenganado. Quando estive internado pude testemunhar famílias inteiras em estado grave, percebi o quanto a situação era dramática tanto para os doentes quanto para os profissionais de saúde. Percebi ao vivo o drama que se desenrolava.

Após esse tempo hospitalizado voltei para casa e precisei de três meses para me recuperar das sequelas mais graves da covid-19. Percebi o quanto era complicado lidar com as sequelas, muitas delas não aparecem em exames, e comecei a pensar como os trabalhadores lidavam com essa situação - seja para buscar um auxílio no INSS, seja para justificar uma ausência no trabalho.

Um dia eu estava assistindo a um documentário sobre a covid e vi que na Itália havia sido criada uma associação de vítimas da doença. Aquilo ficou na minha cabeça. Logo após, fui procurado por uma amiga, Paola Falceta, que havia perdido a mãe e que queria tomar alguma providência contra a tragédia que estávamos vivendo. Então sugeri que criássemos a associação. Começamos com cinco pessoas. Hoje temos mais de 100 voluntários e um Comitê Nacional com representantes de diversos estados da federação.

A AVICO surgiu para oferecer apoio para sobreviventes e familiares de vítimas da covid-19. Nosso principal objetivo é fazer o controle social, mas também estamos oferecendo grupo de apoio a enlutados e orientação jurídica para sobreviventes e familiares.

BdFRS - Nascida em Porto Alegre, a AVICO já tem membros em outros estados brasileiros?

Gustavo - Como eu disse anteriormente, temos um Comitê Nacional da AVICO que reúne voluntários de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Ceará, Maranhão, Alagoas, Goiás e Brasília.

BdFRS - Você teve um caso grave de covid-19, chegando a ser intubado. Pode compartilhar sua história conosco e como ela motivou a criação da AVICO?

Gustavo - Eu fiquei hospitalizado 27 dias. Desses, 10 dias eu fiquei intubado. Foi muito traumático, a falta de ar não te deixa dormir, não te deixa comer e não te deixa nem segurar o celular para mandar mensagem para a família. Você não tem força para nada. Em um determinado momento disse para o médico que se ele não fizesse nada eu iria desistir. Foi nesse momento que ele disse que iria me intubar. Eu aceitei, pois aquela situação estava insustentável.

Quando fui de maca para a sala onde seria intubado me despedi da minha irmã por um tablet de um psicólogo. Foi muito difícil. Depois disso eu só me lembro de acordar na UTI com a equipe retirando o meu tubo e aspirando meu pulmão. A partir dali começou um longo período de reabilitação, pois eu não mexia mais minhas mãos, meus braços e minhas pernas. Recebi apoio de fisioterapeutas, fonoaudiólogos e psicológico.

Quando recebi alta e voltei para casa, achei que estivesse recuperado, embora continuasse com fisioterapia, mas foi apenas uma ilusão. Logo senti as consequências da covid-19: dores nas articulações esporádicas que me deixavam de cama (uma sensação de morte), queda de cabelo, lapsos de memória, palpitações cardíacas e taquicardias. Eu sentia que meu corpo não era do mesmo jeito.

Eu até hoje sinto as sequelas da covid-19, não tão fortes e com tanta frequência, mas elas ainda são presentes. Por isso que não entendo quando falam em recuperados da covid-19. Que recuperados são esses que seguem sentindo sintomas?


"Percebi o quanto era complicado lidar com as sequelas, muitas delas não aparecem em exames, e comecei a pensar como os trabalhadores lidavam com essa situação" / Arquivo pessoal

BdFRS - Qual sua experiência anterior no enfrentamento à epidemia de HIV e quais os aprendizados nesta trajetória?

Gustavo - Eu sou advogado e durante muito tempo fui voluntário da Ong SOMOS em Porto Alegre. Na Ong eu coordenava o Projeto Libertas. Era um projeto de assessoria jurídica gratuita para pessoas vítimas de discriminação em razão da sorologia positiva para o HIV/aids e para pessoas discriminadas em razão da orientação sexual ou identidade de gênero. Essa experiência me permitiu entender a importância do enfrentamento comunitário à epidemia de aids. Eu trouxe essa experiência para a AVICO.

Eu acredito que a sociedade civil não pode ser coadjuvante no processo de enfrentamento à pandemia, pelo contrário, a sociedade civil precisa ser protagonista no processo. Nós vemos gabinetes de crise montados por diversos governos para enfrentar essa crise e não vemos a sociedade civil compondo esses gabinetes. O Ministério da Saúde cria uma secretaria extraordinária para enfrentamento da covid-19, mas não chama a sociedade civil organizada para conversar.

Eu não acredito em soluções de cima para baixo, a sociedade deve se engajar no enfrentamento à pandemia e ser reconhecida pelos gestores públicos, afinal, vivemos numa democracia. E democracia não é apenas votar de 2 em 2 anos, é muito mais que isso, é fazer o controle social, é opinar, discutir, debater, apontar erros, etc.

BdFRS - A AVICO hoje representa mais de 500 mil famílias brasileiras que perderam entes queridos para a covid-19. Muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas se o governo Bolsonaro tivesse conduzido a pandemia com base na ciência. Como as famílias que compõem a associação avaliam as estratégias tomadas pelo presidente?

Gustavo - As famílias estão indignadas pois percebem que seus familiares poderiam ter sobrevivido à pandemia se o governo Bolsonaro tivesse agido prontamente, adequadamente e com responsabilidade diante desta tragédia. Muitas mortes poderiam ter sido evitadas se os contratos com as fabricantes de vacinas tivessem sido assinados lá em agosto de 2020, por exemplo.

No início, eu pensava que as famílias das vítimas não tinham ideia do quanto o presidente da República era responsável pelo agravamento da pandemia no Brasil. São tantas fake news circulando que isso poderia confundir as pessoas. Mas, para minha surpresa, assim que criamos a AVICO, começamos a receber mensagens de parentes e amigos das vítimas pedindo que a Associação fizesse algo para responsabilizar o presidente pelos seus atos. Ou seja, é desejo das pessoas que o presidente seja penalizado pela omissão e pelas respostas ineficientes e equivocadas que foram dadas à pandemia. E nós estamos fazendo isso.

BdFRS - Além de ações de cunho jurídico, que outro tipo de suporte a AVICO presta ou pretende prestar às famílias vítimas da covid-19?

Gustavo - A AVICO tem hoje mais de 100 voluntários atuando em diversas áreas. Organizamos os nossos voluntários e voluntárias em GTs que monitoram políticas públicas, elaboram e disseminam informações corretas (baseadas na ciência) sobre a pandemia e oferecem serviços para as pessoas vítimas da covid-19. Hoje oferecemos orientação jurídica para as pessoas que sobreviveram à covid-19 ou aos familiares das vítimas. Recebemos dúvidas de toda ordem: previdenciárias, trabalhista e cíveis.

Por outro lado, identificamos que muitas pessoas estavam precisando de apoio para lidar com o luto. São muitas perdas ao mesmo tempo e é difícil lidar com isso. O luto nos imobiliza e quando você não pode velar e enterrar os seus mortos, como na maioria dos casos desta pandemia, a dificuldade de enfrentar o luto é maior. Então o nosso GT de Apoio a Enlutados, que conta com mais de 21 psicólogas voluntárias, criou grupos de apoio ao luto. É um serviço de apoio psicológico para pessoas que estão com dificuldade de lidar com as suas perdas. E esse serviço tem sido fundamental para ajudar as pessoas a superar suas tristezas e retomarem suas vidas.

BdFRS - No início de junho, a AVICO protocolou junto à Procuradoria-Geral da República uma representação criminal contra o presidente Jair Bolsonaro por negligência em relação à pandemia. Quais os argumentos e qual o andamento desta denúncia?

Gustavo - Sim, a AVICO protocolou no dia 8 de junho de 2021 (nº. PGR-00201012/2021), junto à Procuradoria Geral da República (PGR), uma representação criminal contra o presidente da República, Jair Bolsonaro, por negligência em relação à pandemia da covid-19, o que levou à morte de mais de 500 mil pessoas.

As principais condutas do presidente que apresentamos à PGR são: reiterados discursos contra a obrigatoriedade da vacinação e lançando dúvidas absolutamente infundadas sobre a sua eficácia e efeitos colaterais; omissão quanto à adoção das providências necessárias para a adequada conformação logística da distribuição de imunizantes pelo país; imposição de obstáculos à produção e aquisição de insumos, como ocorreu no caso de agulhas e seringas; ausência de resposta do governo brasileiro à oferta da empresa Pfizer, em agosto de 2020, para aquisição de 70 milhões de doses de seu imunizante; omissão do governo brasileiro relativamente às três ofertas de vacinas ao Ministério da Saúde partindo do Instituto Butantan para compra da CoronaVac; declarações públicas diversas, inclusive por meio de suas redes sociais, de que não adquiriria a vacina fabricada pelo Instituto Butantan (CoronaVac); desrespeito à recomendação da Organização Mundial da Saúde sobre a necessidade de campanhas eficientes de esclarecimento da população a respeito da imperatividade da máxima cobertura vacinal para eficiência do controle da doença; má utilização de recursos públicos na produção em larga escala, pelo Exército brasileiro, de cloroquina e hidroxicloroquina, contraindicados em muitos casos clínicos por chances de complicações cardiovasculares, e aquisição de insumos com preços até três vezes superiores ao habitual; prescrição, pelo governo brasileiro, do chamado “tratamento precoce” no auge do colapso de saúde em Manaus, inclusive com o pagamento de influenciadores digitais para que defendessem o uso do “kit covid”, acumulada com o aumento do imposto sobre importação de cilindros dias antes do colapso no estado do Amazonas; estímulo a aglomerações e críticas infundadas aos que defendem e fazem distanciamento ou isolamento social, entre outros.

No nosso entender, essas ações do presidente se enquadram em vários artigos do Código Penal Brasileiro, como: 132 (“Perigo para a vida ou saúde de outrem”), 257 (“Subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento”), 268 (“Infração de medida sanitária preventiva”), 315 (“Emprego irregular de verbas ou rendas públicas”) e 319 (“Prevaricação”).

Por esses motivos, entendemos que cabe à Procuradoria Geral da República apresentar denúncia contra o presidente da República junto ao STF. Precisamos fazer justiça para as vítimas da covid-19. Essas pessoas não apenas foram vítimas de um vírus, mas também foram vítimas do descaso criminoso, da sabotagem às medidas de prevenção, da falta de interesse na vacinação da população. Precisamos mais do que nunca de memória e justiça no Brasil e a AVICO lutará por isso.

BdFRS – Qual a importância de uma organização da sociedade civil estar debatendo as questões de enfrentamento à pandemia?

Gustavo - Como disse antes, a sociedade civil precisa ser protagonista do enfrentamento à pandemia. Não podemos assistir impassíveis tudo o que vem sendo feito. Temos que opinar, chamar a sociedade para debater as ações de enfrentamento à covid. A epidemia de aids já nos mostrou o quanto a participação social é fundamental para o enfrentamento de uma epidemia.

A sociedade precisa ser chamada a construir respostas, contribuir com ações de distanciamento social e prevenção e participar dos gabinetes de crise criados pelos governos estaduais e municipais. As vezes fica parecendo que os gestores têm medo de ouvir a população, mas esquecem que isso é fundamental numa democracia. As pessoas precisam se sentir parte do processo para que se engajem no enfrentamento à epidemia.

BdFRS – Qual a mensagem que a AVICO tem para as pessoas que seguem as recomendações de Bolsonaro e defendem tratamento precoce ineficaz, aglomerações e o não uso de máscara?

Gustavo - Eu diria que uma pessoa como Bolsonaro que foi expulso do Exército brasileiro, que ficou 30 anos na Câmara dos Deputados e teve apenas dois projetos aprovados não tem condições de recomendar tratamento de saúde para ninguém. Como alguém com esse currículo pode ser levado a sério? Vindo de Bolsonaro eu não aceitaria nem um chá. Portanto, eu diria para as pessoas tomarem decisões baseadas na ciência, ou seja, mantenha o distanciamento social, lave as mãos, use máscara e tome vacina.

Contatos da AVICO

WhatsApp: (51) 98328-1722

Email: [email protected]

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Edição: Katia Marko