O Estado mínimo é o sonho de consumo dos que querem manter e aprofundar a concentração de renda
Sempre que escuto alguém defendendo a redução do Estado social e a privatização das políticas públicas, eu me pergunto: de que lugar será que essa pessoa está falando?
No Brasil, a imensa maioria da população vive em condições absolutamente precárias. Mais de 60 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza, e quase 20 milhões já estão abaixo da linha da extrema pobreza e esta situação está se agravando com a pandemia. Os principais países e organizações especializadas no mundo já reconhecem a importância das políticas públicas, mas, por aqui, apesar de já termos ultrapassado a meio milhão de mortes, pela covid-19, ainda tem gente que continua defendendo projetos de esvaziamento do Estado e do serviço público.
Como seria a vida da maioria da população com um Estado ainda mais reduzido do que esse que temos?
É verdade que o Estado, por vezes, tem sido usado como um instrumento de violência, de opressão e de exclusão social, mas também é verdade que o acesso à saúde para mais de 75% da população se dá apenas pelo SUS. A educação pública atende mais de 80% das crianças em idade escolar. O seguro-desemprego, a Previdência Social e o acesso à justiça, por exemplo, são, todas, políticas de Estado.
A ideia de “menos Estado”, defendida por alguns, não está vinculada a de um Estado menos violento ou menos opressor, mas sim, a de um Estado menos protetor. Com certeza, os defensores do Estado socialmente mínimo não estão nestes grupos majoritários da população brasileira, mas sim, no seleto e privilegiado grupo dos 1% da população que concentram mais de 30% de toda a renda nacional, ou, talvez, em grupos ainda mais reduzidos.
Por trás da apologia de redução do Estado social há sempre um discurso ideológico de modernidade, de eficiência, de aumento dos investimentos privados, de promessas de geração de empregos e, com isso, supostamente, de melhoria das condições de vida da população, num claro esforço de cooptação da maioria para a defesa de uma pauta que interessa apenas a uma minoria, os muito ricos.
A verdade é que não há exemplos na história ou na experiência internacional que nos permitam associar Estados mínimos com desenvolvimento econômico. O contrário, sim, e os exemplos são abundantes. Estados bem estruturados que atendem as necessidades básicas da população, bem como, de infraestrutura, são os preferidos na atração de investimentos, exceto daqueles investimentos predatórios que só fazem aumentar a pobreza e a miséria por onde andam. Estados sem distribuição minimamente justa da renda não têm mercado interno, logo, deixam de ser atrativos para os investimentos produtivos.
A defesa intransigente da redução do Estado, portanto, não se justifica no desenvolvimento econômico nem na ampliação dos direitos sociais, mas pode estar associada a outras razões, que nem sempre são claramente expostas, por serem impopulares. Há muito tempo, o economista Celso Furtado já nos ensinava que o aumento da desigualdade social e a redução do Estado podem não ser apenas consequência de um modelo específico de desenvolvimento, mas um desejo das classes dominantes que decorre, justamente, da sua opção deliberada pelo subdesenvolvimento econômico, pois são movidos apenas por seus interesses pessoais.
Estas classes, politicamente empoderadas, preferem manter a economia permanentemente num estágio primário exportador a investir no desenvolvimento industrial e, encontram para isso, os mais diversos argumentos. Contentam-se com a manutenção de um padrão de consumo semelhante ao das classes mais abastadas dos países centrais, mesmo sabendo que, para isso, será necessário manter e ampliar a concentração de renda e riquezas. Um projeto nacional de desenvolvimento passa ao largo dos interesses desses setores da sociedade, que sempre irão se opor a qualquer tentativa de planejamento neste sentido.
O Estado socialmente mínimo é funcional para o interesse dessas minorias super-ricas, mas, para a maior parte da população, significa restrição de acesso à saúde, à educação, à Previdência Social, à segurança, ao saneamento, ao emprego etc. Esse modelo ganha contornos muito mais precisos a partir da intensificação desta onda de reformas neoliberais, que começa com o congelamento dos gastos públicos, promovido pela Emenda Constitucional 95, em 2016, e que aponta para um novo ciclo de privatizações das políticas públicas, que culmina com a própria mercantilização dos direitos sociais.
Isso fica visível na ideia de considerar, por exemplo, a Administração Pública como subsidiária do mercado, um princípio que estava previsto no texto original da Reforma Administrativa (PEC 32/2021), proposta pelo governo federal. Também a PEC 188/2019, que descansa, solenemente, no Congresso Nacional, aguardando apenas uma oportunidade, traz uma armadilha muito perigosa quando propõe a subordinação dos direitos sociais, previstos no Artigo 6º, da CF/1988, ao equilíbrio fiscal.
A privatização das políticas públicas significa uma ruptura com a ideia de universalidade na prestação dos serviços essenciais, inaugurada pela Constituição federal, em 1988, ou seja, é um retrocesso ao período anterior à Constituição.
Quando escuto alguém defendendo a redução do Estado social, me pergunto, também, para quem esse Estado seria reduzido?
É evidente que as políticas públicas, por um lado, significam a garantia de acesso aos direitos à maioria da população, mas, por outro, significam redução de espaço para o mercado privado. Imaginem se já tivéssemos conseguido implementar uma educação pública gratuita e de qualidade para todos, tal como nos orienta a Constituição federal, qual seria o atrativo para o ensino privado? Se já tivéssemos conseguido implementar um sistema de saúde de excelência para toda a população, o que seria dos planos de saúde? E se a Previdência Social fosse transferida para o setor financeiro, como estava sendo proposto na versão original da Reforma Previdenciária?
Sempre haverá disputa entre o Estado e o mercado, pois onde o Estado social se fortalece, o mercado perde espaço e o inverso também é verdadeiro. Portanto, a redução do Estado significa também a ampliação de espaços para negócios privados.
O Estado socialmente mínimo é o sonho de consumo tanto daqueles que querem manter e aprofundar a concentração de renda e riquezas, como forma de preservar seus próprios privilégios pessoais, quanto daqueles que veem nas políticas públicas uma concorrência para a ampliação de seus lucros. Mas há também um outro atrativo não menos importante: Estados mínimos não cobram tributos de SUPER-RICOS.
Essas motivações ajudam a explicar as recorrentes e milionárias campanhas midiáticas de depreciação de tudo o que é público e de valorização de tudo o que é privado, a que a sociedade é submetida há muito tempo e o tempo inteiro, mesmo agora, durante a gravíssima crise sanitária que estamos enfrentando e que tanto tem demandado do Estado e das suas instituições e das políticas públicas.
Precisamos, portanto, estar muito atentos às armadilhas que se escondem por trás dos discursos, que são, normalmente, carregados de muitas falácias. A redução dos gastos públicos não significa aumento de recursos para a economia, pelo contrário, são os gastos públicos que injetam os recursos que circulam na atividade econômica.
Cortes de gastos em períodos de crises não amenizam as crises, pelo contrário, apenas ampliam os seus impactos. A redução dos tributos não melhora a qualidade de vida da população, pelo contrário, significa redução de políticas públicas essenciais, como saúde e educação, por exemplo.
O serviço público não concorre com os direitos sociais, pelo contrário, os direitos são concretizados pelo serviço público. A concentração de riqueza não contribui para crescimento econômico, pelo contrário, o que amplia as condições para a sustentabilidade do crescimento e do desenvolvimento econômico é a distribuição das riquezas.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko