Eis o problema: pessoas inteligentes que eu conheço dizem estar revendo suas críticas à ciência moderna para não serem confundidas com negacionistas nem dar argumentos a eles. Sabe, dizer que os negacionistas são críticos da ciência e das verdades científicas é uma generosidade nossa, e talvez até uma armadilha. Na história da filosofia e da própria ciência, muitos gigantes do pensamento já desceram a lenha nas verdades científicas, sem nunca terem passado perto do negacionismo.
Nietzsche apontou seu martelo contra o que ele considerava a idolatria da ciência e da razão; pragmatistas como William James e Richard Rorty desdenharam das verdades científicas, e diziam que a única coisa que validava a ciência era a sua utilidade; Michel Foucault vaticinou que os enunciados científicos só criavam “efeitos de verdade”, mesmo não sendo nem verdadeiros nem falsos, e que a principal consequência do desenvolvimento da ciência não era ampliar o nosso conhecimento e sim criar e institucionalizar novas formas de poder; Thomas Khum propôs que as verdades científicas eram relativas e só valiam dentro dos critérios do paradigma em que foram cunhadas; Karl Popper reprovava qualquer pretensão à “comprovação científica”, e cravou ser impossível chegar à verdade por meio da ciência. Decolonialistas como Boaventura de Souza Santos denunciaram o “epistemicídio” que a ciência moderna produziu em países colonizados, eliminando toda e qualquer forma de conhecimento ancestral baseado em experiências históricas locais. Pós modernistas de toda a ordem rejeitaram peremptoriamente a ideia de verdade e as generalidades científicas, atribuindo à ciência uma espécie de mistificação do mundo, e ao seu uso grande parte das mazelas de nosso tempo.
Além disso, muitas das mais inovadoras, progressistas, democráticas e inclusivas iniciativas populares da atualidade, como a agroecologia, a pesquisa participativa, as práticas integrativas em saúde e a extensão rural dialógica, não poderiam existir nem abrir espaços próprios de ação sem uma crítica contundente à ciência moderna e às “verdades científicas” vigentes, que dominam os currículos escolares, os conselhos profissionais, as agências reguladoras e as políticas públicas, exercendo um poder coercitivo contra tudo o que não se alinhe a elas.
A lista é longa e poderíamos prosseguir com ela pedantemente. Mas basta dizer que se excluíssemos toda e qualquer forma de crítica à ciência e às verdades científicas que conhecemos, a história do pensamento do século XX praticamente desapareceria.
Nenhum dos autores acima mencionados são marginais ou marginalizados na história do pensamento, ao contrário, muitos deles são o próprio mainstream. Mas apesar de desacreditarem das verdades científicas, tampouco eram negacionistas. Porque os negacionistas não são apenas críticos da ciência, eles negam toda e qualquer forma de discurso intelectual, e negam os próprios fatos. É isto que tentarei mostrar aqui.
Portanto, simplesmente negar a negação da ciência dos negacionistas, além de impreciso pode ser perigoso, porque se corre o risco de colocar no mesmo barco o negacionismo e o pensamento crítico, inviabilizando um debate acerca dos efeitos perversos da hegemonização de uma forma única de pensamento científico.
Da mesma forma, combater o negacionismo simplesmente colocando-se ao lado da ciência moderna, que já conta com o poder da maioria das instituições ao seu lado, pode ajudar ainda mais a cercear uma série de iniciativas de construção de conhecimentos inclusivas e participativas que emergem em campos populares, e que precisam de alguma forma de crítica da ciência para serem reconhecidas e legitimadas.
Assim, o objetivo deste texto é conciliar o combate ao negacionismo com a necessária crítica à ciência e à hegemonia da ciência moderna, que tem sido feita pelo menos nos últimos 150 anos. E assim, continuar apoiando um pensamento crítico que visa tornar o conhecimento mais plural, inclusivo e democrático, sem com isso ter de aceitar ou dar argumentos ao negacionismo. A questão é como fazer isso?
Bem, a meu ver há basicamente duas soluções para este problema, uma moral e outra epistemológica.
A solução moral: quando a intenção é a métrica de distanciamento
Se formos analisar o conteúdo das críticas à ciência moderna e à razão produzidas na filosofia e nas ciências sociais, veríamos que a maioria delas denuncia o caráter autoritário e determinista da ideia de “verdade científica”, e o ímpeto normalizador e coercitivo da racionalidade moderna, em grande medida patrocinada pelo conhecimento científico. De certa maneira, denunciam que a ciência nos tornou objetos da técnica, destituindo nossas características de sujeito. De outro lado, propugnam que a hegemonia de uma única forma de fazer ciência funciona como antolhos a limitar nossa visão de mundo; então, de certa forma, e paradoxalmente, o método científico também serve para limitar o nosso conhecimento, não apenas para ampliá-lo.
Iniciativas de construção de conhecimentos no campo popular que pululam em toda a parte como citei acima, partem destas críticas para poder investir em formas de produção de conhecimentos que emerjam dos contextos em que serão usados, que sejam apropriados pelas pessoas que serão beneficiadas, e que atuem sobre os problemas que deverão dar cabo. Assim, professando uma visão emancipadora não apenas do acesso, mas também da construção do conhecimento, esta crítica da ciência moderna busca tornar o conhecimento mais inclusivo, democrático e plural, combatendo as estruturas e instituições que transformam a ciência e a verdade científica em forças repressivas e concentradoras de poder e de renda.
Já os negacionistas negam a ciência e o discurso intelectual apenas para que sua visão ideológica do mundo possa ter espaço como uma narrativa legítima, e para que se empodere a fim de impor a vontade própria e de seu grupo sobre os demais.
Do ponto de vista moral, a intenção do negacionista com a negação é dar legitimidade e justificação aos seus atos de vontade, às suas visões pessoais de mundo e aos seus instintos mais primitivos. Negacionistas negam os dados sobre o desmatamento para continuar desmatando, negam o aquecimento global para continuar queimando combustíveis fósseis, negam as causas sociais da violência urbana para continuar matando as populações periféricas na “guerra às drogas”, negam a ausência de correlação entre o armamento da população e a redução da criminalidade para poder alimentar seu fetiche por armas, negam a eficácia das vacinas para que as doenças possam ser usadas como mecanismo de controle.
Negando a validade da ciência e do discurso intelectual, os interesses, desejos e ideologias do negacionista finalmente encontram um lugar no mundo, e só precisarão de vontade e poder para que se imponham sobre os demais.
Então, a negação da ciência dos negacionistas não é uma atitude voltada ao conhecimento em si, e sim voltada à legitimação de suas próprias ideologias, interesses e desejos, a despeito da coletividade da qual fazem parte e da história da qual são herdeiros.
Porém, embora esteja claro que há um distanciamento moral enorme entre os críticos históricos da ciência moderna e os negacionistas, não devemos parar por aqui, precisamos continuar destrinchando o negacionismo, tanto porque a questão moral não esgota a compreensão deste fenômeno no Brasil, quanto porque ela exige recorrer a ideias metafísicas como Bem e Mal, que são como bumerangues que a qualquer momento podem se voltar contra quem atirou.
Por isso temos que desdobrar também os limites epistemológicos do negacionismo, e desmascarar a falsidade que é aquilo que eles chamam de narrativas.
A solução epistemológica: quando a narrativa é a falsificação da realidade
Para aclarar essa ideia, eu iniciaria estabelecendo três níveis de conhecimento: a evidenciação dos fatos, a interpretação dos fatos e a teorização. A evidenciação dos fatos representa a reunião e organização dos dados que permitam reconhecer, descrever e correlacionar objetivamente fatos concretos. Interpretação é a atribuição de sentido aos fatos, de forma que permita a sua compreensão. E a teorização é a inscrição destas interpretações numa estrutura cognitiva maior, que permita generalizá-las para outros contextos e fatos semelhantes.
Vou dar aqui um exemplo bem simples sobre isso, de um fato amplamente conhecido. Há alguns meses um homem negro foi morto por espancamento no estacionamento de um supermercado pelos seguranças do local. Toda a ação foi filmada em vídeo e áudio. Não houve dúvidas sobre a evidência do fato, foi uma morte brutal por espancamento, a vítima era um homem negro e os agressores eram seguranças do local. Após evidenciado o fato, a primeira interpretação que circulou na internet foi de que se tratava de um crime de racismo, e havia alguns indícios para isso, embora não se pudesse cravar esta versão como definitiva. Por fim, a teoria mais contundente para sustentar este tipo de interpretação é a do racismo estrutural, que diz haver um racismo tácito impregnado na cultura e nas instituições sociais do país, que torna a discriminação racial invisível e faz com que muitos atos racistas nem sejam percebidos como tal.
Não interessa aqui discutir se esta interpretação e teoria são válidas para este caso ou não, mas sim estabelecer uma linha divisória entre o conhecimento objetivo e o subjetivo, entre aquele sobre o qual se pode falar em verdade e falsidade, e aquele em que se pode falar no máximo em validade, por ser subjetivo e contingente.
Pois bem, o nível da evidenciação dos fatos é o da objetividade; aqui é o lugar da verdade e da falsidade. Aqui não se pode dizer o que não é sobre algo que é, ou o que é sobre algo que não é. Face à evidência dos fatos, dizer que o homem não era negro, que a morte não foi por espancamento, que não foi um ato covarde e extremamente violento, que os assassinos não eram seguranças do local seria falso. Porém, é admissível questionar a interpretação de que foi um crime de racismo ou que tenha sido fruto do racismo estrutural.
Fatos bem evidenciados como este não dão lugar a versões divergentes, então no nível dos fatos não se pode falar em narrativas ou interpretações. Só se pode falar em verdade ou falsidade. Mas, nos níveis da interpretação e da teoria é perfeitamente válido se ter olhares divergentes, narrativas dissonantes, enunciados controversos sobre os mesmos fatos.
Nas diferentes ciências, há pouca divergência quanto à evidencia dos fatos, mas muitas disputas e controvérsias entre interpretações e discursos teóricos diferentes. Nenhuma teoria econômica negava o fenômeno da hiperinflação brasileira nos anos de 1980 a 1994, mas havia muitas interpretações e teorias divergentes sobre como explicá-lo e como superá-lo. Marxistas e neoliberais não discordam sobre ter havido uma brutal concentração de renda capitalista no século XX, mas discordam sobre o seu fundamento, se é fruto da ausência do Estado na economia ou do excesso de intervenção.
Sociólogos e especialistas em segurança pública não discordam sobre o aumento da violência urbana nas últimas décadas, mas há muita discordância sobre sua interpretação e explicação, se é fruto do aprofundamento das desigualdades sociais e das próprias políticas de repressão, ou se, ao contrário, se deve ao afrouxamento de mecanismos repressivos que geram impunidade e mais violência.
Então, o nível da evidenciação dos fatos é o lugar da verdade e da falsidade (é aqui que se situam as fake news, por exemplo), enquanto que os níveis da interpretação e da teorização são lugares das narrativas, das divergências científicas legítimas e dos diferentes discursos teóricos.
Negacionistas não negam apenas a ciência, eles negam também os fatos
A grande questão aqui é que os negacionistas não negam apenas a ciência, eles negam também os fatos. Desde os terraplanistas até os cloroquiners, os antivacinas ou os antiaquecimento global, todos, em algum nível e em algum momento, negam a própria “realidade dos fatos”, por mais evidente que ela seja. Por mais que se evidencie o aumento médio da temperatura do ar e da água, a esfericidade da Terra, a eficácia da vacinação em debelar doenças que assolavam o mundo há séculos ou a ineficácia da Cloroquina, os negacionistas continuarão virando as costas para a realidade dos fatos.
E aqui reside uma questão muito importante para distinguir os negacionistas dos verdadeiros críticos da ciência. É que muitos enunciados científicos que os negacionistas negam afirmando terem uma outra narrativa ou uma outra interpretação a respeito, na verdade não estão nos níveis da interpretação ou da teoria, estão no nível dos fatos, mesmo sendo enunciados científicos. E como pode isso? Ora, é que a ciência não apenas estuda os fatos, boa parte da atividade científica se dedica a produzir os próprios fatos, os “fatos científicos”.
Um experimento por exemplo, como a administração de vacina e placebo em 30.000 pessoas para testar a sua eficácia é um fato objetivo. Quando se constata que as 15.000 pessoas que receberam a vacina tiveram 75% menos contágio que as não vacinadas e 98% menos mortes que as 15.000 do grupo do placebo, por exemplo, isso é a evidenciação de um fato, não está no nível da interpretação ou da teoria. A única interpretação que este fato permite é de que a vacina é eficaz para reduzir o contágio e a morte. Então, para este fato não cabem narrativas, porque a ciência, aqui, está ela própria produzindo um fato científico.
Neste tipo de caso, negar a ciência é negar os próprios fatos, então este negacionismo não é uma questão de narrativa ou interpretação, é uma questão de falsificação da realidade.
Da mesma forma, sair da órbita da terra para poder ver, fotografar e filmar a sua evidente esfericidade é um fato científico, só possível com o advento dos foguetes, da câmera fotográfica e da filmadora. O mesmo ocorre com o termômetro que permite medir e registrar séries históricas de temperatura da Terra, e assim por diante.
Mas a ciência não só produz os fatos que ela própria usa para confirmar suas hipóteses, ela também produz boa parte da realidade que nos cerca, os medicamentos que nos curam, os aviões que nos transportam, os pixels que registram nossa imagem, e também a forma como vivemos, como educamos nossos filhos, como exercitamos nosso corpo, como nos alimentamos. Num certo sentido, a vida moderna é, ela própria, um fato científico, então, negar a ciência (que não é o mesmo que criticá-la como fizeram inúmeros pensadores), em certa medida, é negar a própria realidade dos fatos.
Assim, aquilo que os negacionistas costumam negar nem deveria estar em discussão. Não é uma questão de narrativa, é uma questão de evidência objetiva, o que me coloca a hipótese de que os negacionistas simplesmente usam o termo narrativa como uma licença para mentir.
Mas, lá no início eu falei que o negacionismo poderia ser enfrentado tanto do ponto de vista moral quanto epistemológico, porque havia algo errado tanto nas suas intenções como na negação do conhecimento em si. Pois bem, chegou o momento de fazer estas duas facetas se encontrarem. Ou seja, onde e como a forma de negação dos fatos e do discurso intelectual encontra as intenções obscuras dos negacionistas?
Negar os fatos para construir uma realidade paralela
Os negacionistas não suportam os fatos porque os fatos desmentem a realidade que eles desejam. Então, eles negam os fatos, e assim vivem em uma realidade paralela que confirma todos os seus desejos, vontades e ideologias. Acho mesmo que muitos desejam tão fortemente que a realidade fosse outra que acreditam nesta realidade paralela que criam.
Mas há um busílis aqui! Note que os negacionistas negam a eficácia das vacinas, as evidências do aquecimento global, do desmatamento, da degradação ambiental, da esfericidade da terra, da ineficácia do armamentismo para a segurança pública, mas não negam o avião com que rasgam o céu em suas viagens de férias, o jetsky que ostentam na praia, a medicina de ponta que salva suas vidas, ou o arranha céu que habitam sobre a orla de Miami. Embora todos sejam frutos do mesmo progresso da ciência, sua negação é seletiva.
E como pode isso? Como podem negar a vacina, mas entregar o próprio corpo para ser devassado numa lipoaspiração, se ambos decorrem dos mesmos avanços na ciência médica?
Para mim esta é uma questão chave para entender o negacionismo a brasileira: é que ele é um movimento reacionário, nostálgico, segregacionista e que se opõe aos avanços civilizatórios.
A realidade que eles negam não é a da sociedade de consumo moderna, é a da sociedade civilizada, do contrato social, da liberdade, mas com igualdade e fraternidade. No fundo, eles desejam modos de vida bárbaros, onde a civilidade e a cultura humana ainda não tivessem dominado nossas pulsões violentas, e onde o contrato social ainda não tivesse colocado o interesse da coletividade à frente da liberdade individual.
Então, boa parte do ethos da sociedade de consumo moderna lhes serve, porque também tem algo de bárbaro em ostentar uma Ferrari ou uma cobertura em Miami quando bandos de crianças famintas pedem comida nos cruzamentos e dormem sobre papelões embaixo das marquises. E aí está a diferença entre a vacina e a lipoaspiração ou os tratamentos de ponta do Albert Einstein: embora ambos sejam fruto da mesma medicina moderna, a vacina é uma estratégia de saúde coletiva, indiscriminada, que impõe limites à individualidade porque só funciona se houver uma adesão massiva a ela, enquanto a Lipo e os tratamentos de ponta, além de servirem à distinção social por serem excludentes, atendem a desejos e interesses individuais. Não há porque negá-los, então.
Por isso o negacionismo sempre se volta a defender barbarismos: desmatamento, degradação ambiental, poluição do ar, armamentismo, nazismo, segregação de doentes infecciosos. E até a folclórica defesa da terra plana, no fundo, é a nostalgia de um tempo em que se morria por desafiar os dogmas tradicionais com conhecimentos novos.
Negar o discurso intelectual para dar voz e vez aos néscios
De outro lado, os negacionistas não negam a ciência em si, eles negam toda e qualquer forma de discurso intelectual. A ciência é apenas um deles, talvez o mais evidente e importante na atualidade, mas eles negam também a filosofia, o direito, a teologia, a história.
E por que negar o discurso intelectual? Ora, para destruir a autoridade que este tipo de discurso naturalmente confere, e assim abrir espaço político e de poder para os néscios, os que não sabem o que dizem, os sem discernimento, os estúpidos, ignorantes, incapazes e ineptos, que é, de certa forma, no que o próprio negacionismo os transforma. Não há como competir com o discurso intelectual no campo dos argumentos, então eles precisam desautorizá-lo previamente, acusando-o de ideológico, parcial, vendido, e associando-o à defesa de abominações morais, a interesses sombrios e à dominação cultural. Assim, não precisam entrar no mérito em si do que dizem.
Em certa medida isto tem dado certo como estratégia política no Brasil, a julgar pelo governo negacionista que temos atualmente e a horda de beócios que aparelham os mais diversos setores do Estado e do governo. Não há um especialista respeitável sequer que responda à altura do cargo nas principais áreas do governo, ocupadas e comandadas por gente tão preparada para estarem ali quanto poderíamos encontrar em qualquer cervejada de amigos após uma pelada de futebol.
Mas isso só foi possível porque, antes, houve o ataque e destruição da autoridade que o discurso intelectual confere. E quando se cria um vácuo de autoridade sobre qualquer assunto, qualquer um que detenha algum recurso de poder pode se investir de autoridade sobre ele.
Por fim, não daríamos cabo de destrinchar o negacionismo a brasileira se não disséssemos que esta destruição da autoridade intelectual só se tornou possível na era das redes sociais, porque foram elas que dissolveram os filtros que existiam para que as pessoas tivessem direito à fala anteriormente. Sim, na época em que a fala pública precisava de palanques físicos e espaços na grande mídia, era preciso acumular algum tipo de autoridade prévia para poder acessar estes meios, e assim poder influenciar pessoas.
Para aparecer na mídia, por exemplo, você precisava ser sindicalista, político, intelectual, líder religioso, empresário ou alguma outra coisa que lhe conferisse certa autoridade e direito de estar ali. Então, havia filtros que geralmente excluíam os néscios e beócios que hoje infestam as redes sociais e os mais diversos cargos públicos do governo brasileiro.
Mas, com o advento das redes sociais eles puderam construir seus próprios espaços de fala, tornando-se influenciadores públicos mesmo que não tivessem nenhuma autoridade prévia pra isso. Ao contrário, sua autoridade advinha exatamente do engajamento que obtinham nas redes, o que não tem qualquer vinculação com o mérito do conteúdo que produziam ou veiculavam.
E assim as redes sociais inverteram a equação, viabilizando o negacionismo: se antes era preciso ter alguma autoridade para romper os filtros institucionais e ter direito à fala, agora, numa internet sem filtros, o engajamento produzido por uma fala de livre acesso é que produz influência e autoridade. E todos sabem como se produz engajamento e influência nas redes sociais, não mesmo? Não tem absolutamente nada a ver com o valor, mérito, assertividade, importância social ou veracidade do que você produz ou faz lá. Ao contrário, normalmente as coisas mais tolas são as mais influentes e populares.
Ligando os pontos
Negacionistas, de certa forma, sempre existiram, e ao menos em relação às vacinas a sua distribuição social pregressa era até bastante democrática, indo de uma esquerda alternativa motivada por uma espécie de desejo de regresso à natureza, até uma extrema direita reacionária movida por uma ideia pré civilizada de liberdade e por um apego dogmático a superstições religiosas.
Mas o que afirmei até aqui é que o negacionismo à brasileira, que é essencialmente reacionário e de extrema direita, é motivado por um desvio moral próprio associado à nostalgia de um mundo incivilizado, onde as suas ideologias, vontades e pulsões primitivas pudessem ser realizadas sem as restrições institucionais vigentes e sem a necessidade de validação pelo interesse público.
Para isso, eles não negam apenas a ciência, negam também os próprios fatos e dentro deles aquilo que chamamos de “fatos científicos”, e fazem isso com vistas à tentativa de dar vida a uma realidade paralela, que embora não confirmada pelas evidências fáticas está mais ao gosto de suas ideologias, vontades e pulsões.
De outro lado, negam todo e qualquer discurso intelectual, inclusive da própria ciência, mas não apenas dela, visando destruir a autoridade que este tipo de discurso confere e com isso abrir espaço para os néscios e beócios que os habitam, dando-lhes direito à voz e à vez na esfera pública.
Não podemos confundir, então, este negacionismo reacionário e perverso com a histórica, legítima e progressista crítica que tem sido feita à ciência moderna e suas deletérias consequências sociais e políticas, nem abrir mão de continuar fazendo esta crítica, tão necessária não só para revisões necessárias sobre o conhecimento no próprio campo acadêmico, como também para a existência de inúmeras experiências de conhecimentos populares, bem mais plurais, democráticas e inclusivas do que o mainstream científico vigente.
* Renato Souza, professor Titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), formado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Pelotas (1992), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004).
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko