José Batista é um mestre da cultura brasileira e gaúcha. Através de seus estudos e trabalho como luthier (aquele que constrói instrumentos) ele ajuda a manter viva a história negra no sul do Brasil. Especificamente, através do grande tambor, o sopapo, instrumento musical que o mestre Batista considera ser uma conexão entre o presente o passado.
Essa afirmação é uma referência direta ao título do livro que o mestre está para lançar, chamado "O Sopapo Contemporâneo – Um Elo com a Ancestralidade". Publicado pela MS2 Editora, o livro narra pela própria voz de José Batista a sua trajetória, na construção de seus conhecimentos, em parte, herdados através de sua família (o clã Batista).
Segundo o próprio mestre, a sua relação com a musicalidade dos tambores o ajudou a se conectar com a história de sua família. O sopapo é um instrumento ancestral que, primordialmente, tinha grande proporção, chegando a ter o tamanho de uma pessoa, o que lhe conferia sonoridade muito grave e única. Era construído a partir de troncos de árvore e couro. Atualmente, o sopapo contemporâneo tem proporções menores, sendo adaptado às apresentações em palcos, estúdios e escolas de samba.
"Os anos solidificaram uma relação estreita e mística com o instrumento, pude assim trilhar alguns anos, novamente, por bandas escolares, como instrutor, mas a tarefa de manutenção do legado do sopapo chamou-me mais forte, num processo gradual", refere o mestre, sobre sua trajetória.
Segundo o mestre, o sopapo não é apenas um instrumento, ele carrega consigo a história dos negros escravizados, bem como a história da própria humanidade. Para ele, os estudos sobre o instrumento não buscam saber necessariamente somente sobre o tambor, mas toda a história que a ferramenta musical carrega consigo.
Às vésperas do lançamento de seu livro, procuramos o mestre Batista para que ele pudesse compartilhar conosco um pouco de sua trajetória e suas experiências. Em função da pandemia, não pudemos fazer essa entrevista pessoalmente, mas de forma virtual. Compartilhamos, aqui, o resultado dessa entrevista.
Na segunda feira (21) ocorre o lançamento, também virtual, do seu livro, em live realizada no Instagram. Já no dia 15 de julho, teremos o prazer de receber o mestre Batista no nosso programa "Arte, Ciência e Ética num Brasil de Fato".
Entrevista com o Mestre Batista
Brasil de Fato RS - Gostaria que o mestre pudesse contar um pouco da sua trajetória, qual foi o envolvimento dele com a cultura e como chegou aos estudos do instrumento.
Mestre Batista - A cultura nasce com a memória genética dos negros, se expande com as raízes familiares, por meio das histórias contadas por seus avós e bisavós, também de negros que ainda mantém as memórias vivas em suas contações de histórias, até mesmo dos tempos do cativeiro. Assim começou minha trajetória, desde os ensinamentos de meus avós, em especial de minha avó materna, Dona Maria José Oliveira Madruga, que me ensinou sobre a espiritualidade e as proteções dos pretos-velhos, orixás, caboclos e o poder da fé e a prática de benzeduras curativas. Pude compreender assim o que ocorria em meu mundo infantil, soube assim que era natural obter intervenção dos poderes da natureza.
O passar do tempo me levou a despertar à música por meio das formas de atração que os tambores exerciam em mim; muito jovem já participava de banda escolar. Fiz uma trajetória até chegar nas baterias da família, desenvolvendo a minha própria bateria-show, viajando por 10 anos para fora do estado, visitando várias cidades nos períodos de carnaval.
O projeto Cabobu me despertou um lado criativo do instrumento, não percebi o que havia ocorrido, mas os anos solidificaram uma relação estreita e mística com o instrumento. Pude assim trilhar alguns anos, novamente, por bandas escolares, como instrutor, mas a tarefa de manutenção do legado do sopapo chamou-me mais forte, num processo gradual.
Percebi que não poderia me deter somente no tambor, mas havia algo mais que sobreviveu ao tempo, estava contido em minhas memórias genéticas, aguçadas pela vontade de interpretação do poder de atração do sopapo. Percorri então a história, percebendo que não se tratava apenas de um tambor, mas de uma energia que acompanha a história dos negros escravizados e da humanidade, ela transmigra de diferentes formas, em diferentes locais. Percebo que quanto mais se busca o tambor, mais nos distanciamos dessas energias, pois não é o tambor, é aquilo que contém no sopapo: energia viva e latente. Por isso, tenho dito, tambor é sopapo sem alma.
BdFRS - Qual a relação do mestre com o Giba Giba? O que se pode dizer da importância dele para a cultura e a música?
Mestre Batista - Sempre usei a expressão “consciência coletiva”; Giba dizia “unidade de conduta”. Por fim é o mesmo, sendo, por incrível que pareça, minha relação com ele, hoje, mais próxima em semelhança do que quando convivi com ele no projeto Cabobu, pois ele é parte, hoje, das energias vivas do sopapo.
Nas falas de Giba, observo que ele não se exaltava, mas carregava em si um linguajar ainda por ser entendido. São as vozes do sopapo. Giba quis mostrar aos negros a sua importância cultural, por meio de suas músicas e de seu jeito simples de ser. Demonstrava sua versatilidade artística e muito além disso, o seu importar-se com o humano, no desejo de aglutinação, de unir e reunir, contrariando o materialismo cultural, interpretado como um anarquista, mas sendo um grande artista, verdadeiro mantenedor do aporte cultural de uma nação. Assim, estava onde achava que deveria estar, marcando a presença da cultura negra em todo lugar, sempre carregando o objeto sopapo consigo, um verdadeiro guardião e revolucionador cultural.
BdFRS - Sobre a questão do sopapo: o mestre afirma que não se encontram na África exemplares semelhantes ao que temos no Brasil, como se o instrumento fosse fruto do desenvolvimento da cultura africana, já no Brasil. Seria correto afirmar isso? O que dizem os estudos do mestre?
Mestre Batista - Seria correta a afirmação de que o africano trouxe o sopapo pronto da África? Ou formatou esse instrumento aqui?! Com os recursos naturais de cada região?! Esse instrumento faz parte de uma expansão das memórias dos cativos, que o formataram pelas regiões pelas quais passavam. Cito um exemplo bem prático: em Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande, chamamos de sopapo três instrumentos com formatos diferentes.
Obviamente que isso denúncia o pertencimento cultural de cada região, a formatação das memórias culturais do fazer e ser dos escravizados, aproveitando o jeito de ser, pensar e de fazer em cada território habitado, sendo em Pelotas o berço nascedouro da prática do tambor charqueador, desde 1780. Deu-se o nascer do Batuque, entre a região de Pelotas/Rio Grande, expandindo-se para outras localidades, misturando-se aos ritmos gaúchos, mas excluído dos registros históricos.
BdFRSRS - Fiz a pergunta anterior para poder questionar também: qual a importância desse instrumento para a nossa cultura? O que ele tem de especial?
Mestre Batista - Posso dizer que a nossa cultura se formatou pelas mãos dos negros, na culinária, na religião, até mesmo na medicina, na construção civil, etc.
Porém, o sopapo formatou o ritmo do Sul, entendendo-se por gaúcho, o negro liberto, campeiro, praticante de sua raiz cultural, o gaúcho de tradição, diferente do gaúcho tradicionalista, vestido dos costumes europeus. Invisibilizado por um modismo, foi assim o negro-gaúcho excluído da base construtiva e formadora da nossa cultura. Tendo o sopapo como o companheiro e formador de ritmos e atabaques, podemos dizer que é o sopapo uma presença a ser respeitada em toda a nossa base cultural.
BdFRS - Porque o tambor de sopapo atual é um elo com a ancestralidade?
Mestre Batista - Por ser fruto de um resgate cultural, dentro do projeto Cabobu. Também por trazer e permitir uma abrangência cultural ampla e mais democrática, restabelecendo o entrelaçamento dos povos que para o Sul foram trazidos, misturando costumes, mas mantendo o pertencimento do protagonismo negro sobre suas raízes.
Enaltecendo também que memória genética não habita dentro de ambientes fechados, mas que carrega cordões invisíveis do tempo, que nos interligam com a formação humana, até mesmo no começo da fala.
BdFRS - Na divulgação do livro feita no Facebook, tem uma fala do mestre Giba Giba: "o tambor típico do nosso lugar, não é do nosso lugar, é de outro lugar". O que se pode falar sobre essa afirmação?
Mestre Batista - Giba fazia um denúncia. Tendo sido o sopapo solidificado em cada região sulista, a partir de Pelotas, se pode cogitar de que ele tenha um trânsito mundial, mas com as características de cada lugar em que os cativos exaltaram o seu fazer de tambores.
A própria fala de Giba exalta a formação da cultura, pelos costumes locais, no jeito de ser de cada cidadão, formatando um coletivo cultural local. Quando falamos em cultura, precisamos ter a noção plural, cultura não pode ser monitorada, ela pode, sim, ser solidificada em locais, porém, ao ser transferida, se submeterá aos costumes da região à qual foi levada. Não podemos perder nossa identidade cultural, sob pena de estarmos, num futuro, tendo que importar o que é nosso.
Povo sem cultura é sub-raça, uma condição a qual submeteram os povos africanos, colocando esse adjetivo inquisitoriamente, para o processo de escravização. Porém sabemos que a cultura africana é rica, pois na África Antiga encontramos conhecimentos que a ciência descobriu recentemente. Basta verificar os restos de papiros da extinta biblioteca de Alexandria. Quem faz cultura é o povo, não se move os valores de um povo de lugar.
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Edição: Marcelo Ferreira