No dia 16 de maio, o governo do estado do Rio Grande do Sul mudou sua forma de monitoramento do avanço da pandemia, substituindo o modelo das bandeiras pelo intitulado Sistema 3As. O novo formato vem recebendo críticas de órgãos públicos e especialistas que o avaliam como ineficiente. Somado a isso, há o desgaste causado pela longa duração da pandemia e o crescente afrouxamento da população na manutenção dos cuidados básicos. Destaca-se o baixo índice de uso de máscaras de proteção pela população, incentivado, em parte, pelas manifestações de Jair Bolsonaro, no momento em que o país se aproxima da marca de meio milhão de vidas perdidas para a covid-19.
“Hoje a gente estaria em bandeira preta em praticamente todo o estado e as pessoas não estão se dando conta disso. Isso é muito ruim em termos de comportamento porque a gente depende fundamentalmente agora do comportamento das pessoas”, afirma a médica e professora de epidemiologia Lucia Pellanda. Ela é reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro do comitê científico criado pelo governo estadual durante a crise sanitária.
Nesta semana, o Rio Grande do Sul ultrapassou as 30 mil vidas perdidas em função do novo coronavírus. Já são mais de 1,16 milhão de pessoas infectadas no estado desde o início da pandemia. Está entre os estados brasileiros mais atingidos, sendo o quarto em número de mortes e de contágios.
Até o momento, da população vacinável, que tem mais de 18 anos, já imunizou 45,4% com a primeira dose e 18,4% com a segunda. Apesar de ser um dos índices de vacinação mais altos do Brasil, ainda é insuficiente para que se tenha uma abertura generalizada das atividades e, mais ainda, para que as pessoas saiam sem máscaras. E o que se vê pelas ruas e locais públicos na Capital e Interior, e até mesmo em estabelecimentos comerciais, é o desrespeito a esta prática de cuidado pessoal e com os outros.
Fim das bandeiras prejudicou comunicação com população
O novo modelo foi anunciado pouco mais de um mês após o pior momento da pandemia no estado, entre o final de fevereiro e início de abril, quando os gaúchos testemunharam o colapso hospitalar e recordes diários de mortes. O governador Eduardo Leite (PSDB), no dia 27 de abril, chegou a comentar em sua rede social que o modelo até então adotado, o Distanciamento Controlado, que tinha as bandeiras, havia cumprido importante papel ao longo de um ano. “Pioneiro no Brasil, nos ajudou a administrar a crise da pandemia, com protocolos e regionalização. Fragilizou-se diante de um ciclo atípico da covid-19 e da interferência via judiciário”, escreveu.
Para Pellanda, o novo modelo supriu uma deficiência do modelo anterior, que deixava de fora indicadores mais precoces. Agora, destaca a reitora, estão sendo avaliados indicativos como número de casos novos, atendimentos, sintomas, e a avaliação é diária em vez de semanal. “Esses fatores são muito importantes para detectar o início das ondas. Acho que a qualidade de informação é muito boa”, afirma. “No entanto, a informação é como um diagnóstico, precisa se tomar uma ação e eu acho que nesse ponto talvez o modelo não esteja sendo suficiente.”
Ela também ressalta o que considera o principal problema do modelo: má comunicação com a população. “A comunicação de risco tem que ser uma coisa fácil, que as pessoas se relacionem bem. E as pessoas se relacionavam muito bem com as cores das bandeiras. Era mais fácil da gente explicar que uma bandeira vermelha era situação de alto risco, uma bandeira preta era situação de muito alto risco, situação crítica, e isso influenciava mais no comportamento das pessoas”, avalia.
O médico, doutor em Saúde Coletiva e professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Alcides Silva de Miranda, é crítico ao modelo anterior das bandeiras. Porém, mesmo com as insuficiências de monitoramento e de fiscalização, com os equívocos e precipitações decisórias em termos de regulação do rigor de medidas protetivas, entende que a divulgação dos estatutos de risco sob a forma de cores de bandeiras eram de mais fácil compreensão pela população. Além disso, serviam para alertar as outras instituições da sociedade civil.
“Quando o governo estadual anunciou que iria alterar essa estratégia e sistemática, minha expectativa era de que haveria correções, ajustes e aprimoramentos, mas não, sua substituição foi por algo pior”, pontuou. Para ele, a nova estratégia institucional mantém as insuficiências e ineficiências de monitoramento e de fiscalização da modelagem anterior e estabelece uma dinâmica inócua, com reatividades fragmentadas, descoordenadas e tardias.
“Embora a Secretaria Estadual de Saúde esteja produzindo informações e indicadores que, além do monitoramento retrospectivo, possibilitariam análises prospectivas com a antecipação de tendências, tais informações só têm servido para ativar um sistema inócuo de alertas, sem a necessária regulação, coordenação e consubstanciação de intervenções efetivas em tempo hábil para evitar recidivas e a progressividade intensiva de novos casos, complicações e óbitos evitáveis. Os impactos estão claramente evidenciados, o Rio Grande do Sul apresenta, principalmente em 2021, piores indicadores de incidência e de mortalidade do que a média nacional”, afirma Miranda.
Pellanda reforça que mesmo com algumas regiões do estado já tendo recebido cinco alertas do Gabinete de Crise neste um mês de novo modelo, os indicadores não mudaram muito. “O fato é que a gente gostaria de estar vendo uma redução bem mais significativa do que a que está acontecendo nas regiões. A situação continua sendo de muita atenção porque os indicadores de internação estão muito elevados, a mobilidade muito elevada, e o comportamento das pessoas é como se realmente não houvesse pandemia”, expõe.
Liberação das atividades é antecipada
O Brasil vive uma espécie de ansiedade pela liberação das atividades e aglomerações, que por pressões de segmentos econômicos se refletem em flexibilizações antecipadas. “No Brasil sempre houve essa ideia de liberar, de ganhar uma imunidade coletiva às custas de infecção e não de vacinação, e isso é praticamente impossível. Desde cedo a gente sabia que essa estratégia representaria uma carga de sofrimento enorme para a sociedade”, comenta a reitora.
Miranda destaca que os países que liberaram seletivamente o retorno de algumas atividades têm operado com sistemas eficazes de Vigilância Epidemiológica, o que, infelizmente ocorre de forma insuficiente no Brasil e no Rio Grande do Sul. “Se avançarmos e aprimorarmos os meios, os modos e as medidas de Vigilância Epidemiológica, de progressão da vacinação, se ampliariam as margens de salvaguarda e, consequentemente, seria possível a retomada seletiva de muitas atividades.”
Complementando, Pellanda destaca que os países que liberaram as atividades são aqueles que fizeram medidas mais restritivas e vacina mais rápida de forma associada. “Somente a vacina nós vemos que não funciona, porque aumenta muito o número de casos se não houver medidas não farmacológicas de mais restrição”, afirma, exemplificando com o caso do Chile, que mesmo com vacinação avançada, precisou decretar quarentena, com UTIs à beira do colapso.
Para ela, deixar de tomar os cuidados indicados para evitar o contágio é muito perigoso, pois além de mais pessoas doentes, aumenta o risco de desenvolvimento de novas variantes do vírus. Já Miranda pontua que, fora os maus exemplos governamentais para a população, há algo ainda pior, “que são as péssimas atitudes de negligência intencional e as omissões criminosas da parte do atual presidente da República”.
Quando será possível enfim tirar a máscara?
Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro, em mais uma manifestação contrária à ciência, seguindo sua linha negacionista, voltou a desdenhar o uso de máscara pela população. Em um evento, afirmou que iria desobrigar o uso de máscara para pessoas já vacinadas ou que já tenham contraído a doença.
“O referido incentivo do atual presidente não somente é epidemiologicamente contraproducente e altamente arriscado, como se constitui em atitude criminosa, por incentivo ao risco evitável, coerente com o seu pendor necropolítico”, afirma Miranda.
Para ele, o uso de máscaras, assim como a utilização de meios virtuais e remotos de reunião, se configura em um desconforto necessário. “De modo genérico, essa imprescindível imposição situacional poderá ser desnecessária quando atingirmos uma proporção de cobertura vacinal suficiente para o controle dos circuitos mais abrangentes de transmissibilidade pandêmica”, opina, sem trazer números genéricos. “Em se tratando de um contexto tão abrangente e complexo como o território e o caso brasileiro, é necessária uma análise de situações particulares.”
Miranda destaca que os países que estão dispensando o uso obrigatório de máscaras, como os Estados Unidos, além de terem atingido proporções mínimas de imunização coletiva, operam com sistemas de Vigilância Epidemiológica minimamente eficazes para lidar com a nova fase de controle do coronavírus. Há uma ágil identificação de riscos e surtos localizados, com medidas mais específicas de bloqueio e controle para casos particulares. “Infelizmente ainda não é o nosso caso”, lamenta.
No país norte-americano, a vacinação está avançada, diferentemente do Brasil. Lá a imunização ultrapassa os 53% de vacinados com a primeira dose e 45% com a segunda, o que permitiu ao Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) flexibilizar as medidas de controle da pandemia. Por usa vez, o Brasil vacinou apenas 28,51% da população com a primeira dose e 11,37% com a segunda dose.
“Como a gente vai saber quem foi vacinado e quem não foi vacinado?”, questiona Pellanda sobre a situação brasileira. “Temos uma proporção muito pequena de pessoas vacinadas e tem uma sociedade que por várias falhas de comunicação não está predisposta a usar máscara. Então como vai saber se a pessoa estiver de máscara ou não, se ela é vacinada ou não, a pessoa vai andar com certificado na mão? É muito difícil de controlar. Então nesse momento era melhor que todo mundo continuasse usando máscara para cuidar de si, para diminuir o seu próprio risco mesmo se vacinada e, principalmente, para cuidar dos outros”, opina.
Segundo frisa a reitora, a vacina “é maravilhosa, muito boa, e reduz o risco de uma forma bastante importante”. No entanto, pondera, ela reduz o risco a partir de um risco inicial que no Brasil é muito alto. “É diferente se vacinar na Nova Zelândia, nos Estados Unidos, em Israel ou no Brasil”, aponta.
“Quem está vacinado aqui ainda continua com um risco muito alto, porque o vírus está circulando, a transmissão está descontrolada. Então é preciso da proteção em camadas: vacinas + máscara + distanciamento + ventilação, e mais não aglomerar, porque nesse momento o risco coletivo é muito alto. A gente só vai poder tirar a máscara, só vai poder deixar de ter os outros cuidados quando todo mundo estiver vacinado e a gente conseguir interromper a transmissão”, adverte.
Vacinação no estado
Recentemente, o governo do estado anunciou que pretende vacinar até setembro, com a primeira dose, toda a população maior de 18 anos.
Na avaliação de Miranda, no que se refere às vacinas, o governo estadual está atuando de forma adequada, considerando as limitações estabelecidas e a dependência para com a política nacional de imunizações. “Compete ao governo federal a maior irresponsabilidade pela não antecipação de iniciativas imprescindíveis para a aquisição e a distribuição das vacinas, que teriam evitado muitos óbitos ocorridos”, afirma.
Para Pellanda, o RS tem estrutura, experiência e capacidade para vacinar toda a população rapidamente, como planeja o governo estadual, o que falta são as doses. “Vai depender muito da disponibilidade de doses, da produção do Butantan, da Fiocruz e das doses vindas de fora. Na disponibilidade das doses é bem possível que sim e até antes. Acho que a melhor coisa que poderíamos fazer nesse momento era vacinar rapidamente.”
O que esperar de 2022
Com relação a pandemia em 2022, Miranda avalia a possibilidade da sociedade lidar com o problema do coronavírus em um outro patamar, “não de uma situação crítica e pandêmica emergencial, mas de controle em médio e longo prazo”. Destaca que o mais importante é aprender a partir dos erros cometidos.
“De forma mais abrangente, o país poderá retomar a anterior ‘normalidade’, cronicamente adoecida, o que inevitavelmente nos conduzirá para outras crises (ambiental, social etc.). Ou renovar os termos de ‘normalidade’, em busca de inclusão, mais equidade, de desenvolvimento sustentável, de mínima salvaguarda epidemiológica, de proteção ambiental. Ainda não nos livraremos do coronavírus, mas poderemos nos livrar de outros males também deletérios e letais”, opina.
Pellanda afirma não ser sua área e é cautelosa em avaliar o próximo ano. “Alguns cientistas, os virologistas, acham que sim. Eu ainda tinha esperança de que fosse possível interromper totalmente essa transmissão, mas parece cada vez mais difícil”, afirma. No atual momento, para ela, o mais importante é “focar em interromper a transmissão”.
Comitê Científico alerta para situação no estado
Em nota divulgada recentemente, o Comitê Científico ressalta que o estado voltou a observar um aumento de internações, seguido de estabilização em um patamar elevado. “Neste momento, das sete macrorregiões do estado, quatro (Centro-Oeste, Missioneira, Norte e Sul) apresentam ocupação de leitos clínicos semelhante ao último ciclo de crescimento. Quando analisamos a ocupação das UTIs, nessas quatro macrorregiões quase não é possível separar o ciclo atual do anterior, pois a ocupação se manteve alta em todo período”, destaca o texto.
A nota também salienta que as pessoas vacinadas, mesmo após a segunda dose, devem manter os cuidados para evitar a transmissão da covid-19 até que a maioria da população esteja vacinada (cerca de 70%, segundo a OMS).
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Edição: Katia Marko