Rio Grande do Sul

MEIO AMBIENTE

Prefeitura de Porto Alegre quer liberar aumento de 70% na população de Belém Novo

A estimativa da Smamus é que população do bairro planejado para a Fazenda do Arado seja de 7.942 habitantes

Sul 21 |
Trecho do vídeo apresentado pelo empreendedor traz a região da Fazenda do Arado dividida em áreas que serão divididas para a construção de um bairro planejado - Reprodução

Pela terceira vez na década, está prestes a tramitar na Câmara de Vereadores de Porto Alegre um projeto que muda as regras do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PPDUA) para a área conhecida como a Fazenda do Arado, no bairro Belém Novo, região extremo-sul da Capital. Nas últimas semanas, Prefeitura e técnicos responsáveis pelo empreendimento, que busca transformar parte da área de 426 hectares em um bairro planejado, apresentaram à população do bairro e ao Conselho Municipal do Plano Diretor (CMDUA) as bases do projeto que busca ampliar a possibilidade de densificação no local. Contrárias à proposta, que ainda não foi formalmente transformada em projeto de lei, entidades de defesa do meio-ambiente alegam que a Prefeitura está tentando adequar o Plano Diretor aos interesses do empreendedor e atropelando a discussão sobre o projeto.

A proposta de construção de um bairro planejado na antiga Fazenda do Arado, propriedade que pertenceu a Breno Caldas, e-proprietário da Companhia Jornalística Caldas Júnior, data, ao menos, da primeira metade da década passada. Em 2015, a Prefeitura apresentou um projeto de lei (nº 780/2015) buscando alterar o regime urbanístico previsto no Plano Diretor para adequar a área ao empreendimento. O projeto foi aprovado pela Câmara, mas barrado por uma liminar na Justiça, conquistada pelo Ministério Público em 2017, sob o argumento de que tramitou sem prévia consulta à população.

Em 2020, o vereador Wambert Di Lorenzo (PTB) apresentou um novo projeto de lei complementar (PLC 016/2020) recuperando a proposta anterior, que foi aprovado em 17 de dezembro de 2020 pela Câmara. Contudo, o projeto acabou vetado pelo prefeito Sebastião Melo (MDB) em razão de entendimento que tinha vício de origem, uma vez que alterações de regime urbanístico seriam de prerrogativa do Poder Executivo municipal. Contudo, Melo já havia adiantado que iria reapresentar o projeto.

De acordo com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus), pasta responsável pelo planejamento urbanístico da cidade, o novo projeto ainda está sendo construído e será apresentado formalmente após cumprir todas as etapas de participação popular. No dia 1º de junho, a proposta de alteração urbanística da área da Fazenda do Arado foi apresentada ao Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA) pelos arquitetos Rodolfo Fork, responsável técnico pelo empreendimento da Fazenda do Arado, e Gisele Coelho Vargas, assessora técnica da Diretoria de Planejamento Urbano da Smamus. Três dias depois, no dia 4 de junho, a mesma apresentação foi repetida à comunidade de Belém Novo durante encontro da Região de Planejamento 8, que representa os bairros do Extremo-Sul da cidade no CMDUA. Uma audiência pública aberta à participação de toda a população estava prevista para o dia 25 de junho, mas teve a data atualizada pela secretaria para o dia 7 de julho. Posteriormente, a Prefeitura deve formalizar a apresentação do projeto.

Em ambas ocasiões, Fork apresentou um vídeo (ver abaixo) elaborado pela empreendedora em 2016, mas atualizado com informações atuais, que indica que a ideia é construir um bairro planejado na área de 426 hectares que compreende o antigo terreno da Fazenda do Arado e a área de preservação ambiental da Ponta do Arado, com 92 hectares da área sendo destinados a serem transformados em uma unidade de preservação privada, que terá acesso público. Segundo a empresa responsável, o sítio arqueológico indígena que existe na área de preservação também será mantido, mas não há uma explicação clara se as famílias guarani-mbya que participam da retomada indígena no local estarão contempladas nessa proposta de preservação.

A ideia é que as demais área da região sejam subdivididas em uma área de exploração comercial e de serviços e outras quatro que irão abrigar empreendimentos habitacionais distintos, conformando assim um bairro planejado com previsão de construção de 1.650 casas, número sujeito a alteração posterior. A ideia é que a atual área a ser destinada para a construção de habitações, que hoje está está localizada em uma área de zona rural e de preservação ambiental, tenha uma ocupação maior nas proximidades da Av. Lami e menor densidade à medida que se aproxima da área que será transformada em reserva natural. Segundo o vídeo, o projeto prevê que sejam criados espaços residenciais de “diversas faixas de preço” e para “diversos estilos de vida”.

O projeto prevê ainda a duplicação das avenidas do Lami e Heitor Vieira, que contornam a Fazenda do Arado, nos trechos que ligariam o empreendimento à região central do bairro Belém Novo, além da substituição da estrada da fazenda por uma nova via interna ao empreendimento, além de outras intervenções em avenidas da região para adequar ao aumento do trânsito. O antigo casarão da Fazenda será transformado em hotel e centro de eventos e os demais prédios com valor histórico seriam preservados e restaurados.

Como contrapartida, a empresa prevê a doação de uma área de 9,4 hectares ao Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) para a construção de uma Estação de Tratamento de Água (ETA), o que ajudaria a enfrentar o problema de falta de água na região. Outra área seria doada para a criação de uma escola de agroecologia e estudos climáticos e um terreno de 40.000 m², junto à Av. Lami, seria destinado para a instalação de indústrias e empresas de tecnologia. O vídeo diz ainda que, além da reserva natural, outra área de morro seria preservada, totalizando 140 hectares que não sofreriam mudanças urbanísticas.

Após a exibição do vídeo, Fork explicou que o Plano Diretor divide atualmente a região em uma área de preservação natural (Apan), uma área de ocupação rarefeita (AOR) e uma área de ocupação intensiva (AOI), próxima à avenida Heitor Vieira, que, segundo ele, não propiciava a criação de um centro urbano e, por isso, o empreendimento necessitava da mudança de regime urbanísticos.

Tanto na reunião do CMDUA quanto na apresentação em Belém, a arquiteta Gisele Coelho Vargas, técnica da Prefeitura, fez a apresentação da proposta de alteração de mudanças no Plano Diretor apenas após a fala do representante do empreendimento. Apesar disso, Gisele destacou que, no momento, o que está sendo discutido é justamente a questão do regime urbanístico e que, apenas posteriormente, os projetos do empreendimento, de forma separada, terão o mérito analisado pela Prefeitura e serão submetidos a consultas à população de Porto Alegre.

Gisele destacou que a discussão sobre as mudanças na região tramitam na Prefeitura desde 2011, quando a Comissão de Análise Urbanística e Gerenciamento (Cauge) emitiu diretrizes para a elaboração de um termo de referência para o Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) do projeto, que viria a ser aprovado pelo CMDUA em 2012, mas que a discussão sobre o EVU foi paralisada devido à disputa judicial em relação ao projeto de 2015 e só foi retomada em 2019.

A arquiteta afirmou que, pelo regime urbanístico atual, a área da Fazenda do Arado permitiria a construção de apenas 1.323 unidades habitacionais. A proposta é que a área de ocupação intensiva que existe próximo à Avenida Heitor Vieira, permitindo uma densidade de 140 habitantes por hectare, seja ampliada, permitindo a construção de 542 economias, entre unidades habitacionais e estabelecimentos comerciais. Já a área de ocupação rarefeita, que hoje permite a realização de atividades de produção primária e uma densidade de 2 hab/ha, seria mantida, mas teria aumentada a possibilidade de ocupação até uma densidade de 42 hab/ha nas proximidades da Av. Lami e de 28 hab/ha na parte inferior da AOR. Já na área da antiga Fazenda, localizada em uma Apan — também de ocupação rarefeita –, cuja densidade permitida atualmente era de 0,5 hab/ha, passará a permitir densidades entre 7 hab/ha e 11 hab/ha.


Proposta da Smamus para densificação das áreas de ocupação rarefeita da região da Fazenda do Arado / Reprodução

“Não se alterou radicalmente a configuração do regime urbanístico, se deu uma flexibilizada. Com isso, a gente vai chegar a 1.807 unidades na área rarefeita e, no total, contando rarefeita com intensiva, vamos ter 2.353”, disse Gisele em uma das apresentações.

Ela pontuou que as mudanças permitiriam um acréscimo de 77% no número de economias autorizadas para a região em relação ao que está previsto no Plano Diretor. A estimativa da Smamus é que, com ocupação da área, a população da Fazenda do Arado seja de 7.942 habitantes, o que significaria um aumento de 70% na atual população do bairro Belém Novo, hoje estimada em 10.635 pessoas.

A respeito de contrapartidas, a arquiteta confirmou que a previsão de momento é que o empreendedor realize projeto urbanístico e articulação de espaços abertos na Orla de Belém Novo, incluindo locais de interesse histórico, faça a doação antecipada de uma área de 95 mil m² para o DMAE, onde deverá ser construída a ETA, e qualifique equipamentos públicos comunitários, como a implementação de praças. Entre essas melhorias, estaria a ampliação da Unidade de Saúde do Belém Novo.

Discussão atropelada

Michele Rihan, delegada da RP8 e integrante do Movimento Preserva Arado, que atua na defesa da preservação da região como área de preservação natural, afirma que, após o veto do prefeito ao projeto de Wambert, a expectativa dos movimentos sociais era de que a questão da Fazenda do Arado fosse tocada de forma “mais transparente” pela Prefeitura. Contudo, diz que não foi isso que aconteceu.

Segundo ela, desde 2019, quando foram eleitos os novos conselheiros e delegados do CMDUA, não havia sido realizada uma única reunião do Fórum da RP8 sobre quaisquer temas, incluindo a Fazenda do Arado, até que, em 1º de junho, foi surpreendida com uma ligação de Dinar Melo de Souza, conselheiro suplente da RP8 no CMDUA, avisando que havia marcado uma reunião para o dia 4 sobre o projeto da Prefeitura para revisão do Plano Diretor. “Eu soltei os cachorros no cara, né. Eu digo: ‘estou desde 2019 buscando informação sobre o fórum, sobre o espaço de debate da nossa região, e tu me procura terça-feira para uma reunião na sexta para atender o interesse do empreendedor, tu tá trabalhando para eles’. Terminou assim a nossa conversa”.

Na mesma terça-feira, o empreendedor fez a apresentação do projeto no CMDUA. Michele diz que se inscreveu para ter o direito de fala e não teve. “O empreendedor apresentou um projeto que é a mesma coisa que eles sempre quiserem fazer. O Executivo é um mero instrumento do empreendedor, porque nunca quis escutar a população, nunca proporcionou nenhum espaço de debates sobre o que pode ser proposto para aquela área. Eles só pensam em qual o regime urbanístico conforme o empreendedor quer”, diz.

Michele pontua ainda que correm ações e investigações sobre possíveis irregularidades nos processos de viabilidade ambiental e de mudança de regime urbanístico da área que estariam sendo ignoradas pela Prefeitura. “Tem toda uma gama de assuntos que eles estão passando por cima como se estivesse tudo bem”, diz.

Procurado pela reportagem, o promotor Heriberto Ross Maciel, da Promotoria de Justiça e Habitação e Defesa da Ordem Urbanística, confirmou que o Ministério Público segue acompanhando as mudanças propostas para a região da Fazenda do Arado. “Ali é uma área de ocupação rarefeita, um lugar que a gente tem que ter muito cuidado com a expansão da cidade, porque é uma região de vocação rural, faz parte dos caminhos rurais de Porto Alegre, então os empreendimentos têm que ser visto com muito cuidado ali. O Ministério Público tinha entrado com uma ação civil pública em razão da falta de previsão de audiência pública. E esse regime urbanístico que foi alterado foi objeto de uma lei pelo Legislativo municipal, foi vetada pelo prefeito. Agora, o que está se discutindo no local é a realização de audiências públicas e de consulta pública à população em relação ao empreendimento. É uma região também de proteção ambiental, de modo que a questão está sendo examinada sob o ponto de vista urbanístico e ambiental pela Promotoria de Habitação e Urbanismo e pela Promotoria do Meio Ambiente”, disse.


Características da Fazenda do Arado são essenciais para evitar alagamentos na zona sul, alerta ativista / Luiza Castro/Sul21

Mateus Coimbra Gus, membro do Coletivo Ambiente Crítico, também destaca o fato de que a reunião com a comunidade de Belém Novo teria sido convocada às pressas e que foi realizada numa sexta-feira após o feriado de Corpus Christi, que caiu na quinta-feira, 3 de junho. Além disso, critica o fato de que, no encontro em Belém, o empreendedor e a arquiteta da Prefeitura tiveram longas apresentações, enquanto a comunidade pode se manifestar em oito falas de três minutos cada, sendo quatro a favor e quatro contrárias. “Foram 12 minutos para quem está efetivamente acompanhando esse processo, que são os contrários, e duas horas para todo o resto. Então, fica claro que foi um evento para legitimar o processo”, diz.

Ele também pontua que, em março de 2020, a promotora Débora Regina Menegat, também da Promotoria de Justiça e Habitação e Defesa da Ordem Urbanística, encaminhou uma recomendação à Prefeitura de Porto Alegre para que suspendesse as alterações no Plano Diretor enquanto persistisse o estado de emergência e calamidade declarados, uma vez que o PPDUA assegura a participação democrática da população, entre outros motivos. “Não houve até hoje um espaço para um debate técnico. Em vários momentos, as entidades tentaram se contrapor, foi elaborado um dossiê técnico, mas isso nunca foi dialogado”, diz Mateus.

Para o ativista, apesar do empreendedor e da Prefeitura defenderem que o projeto vai mitigar os impactos ambientais, há uma série de questões que estão sendo ignoradas na discussão da ocupação da área. Um dos riscos é de que o empreendimento atinja uma área que hoje é responsável por controlar alagamentos do Guaíba na zona sul de Porto Alegre.

“Uma das questões que é o ponto de partida é que já existe previsão no Plano Diretor para que se construa um empreendimento ali, está autorizado no PPDUA. O que se quer é que esse número seja 75% maior do que permite atualmente, mas, principalmente, tendo três vezes mais economias numa área ambientalmente muito sensível. É uma área de várzea alagável, que tem uma função muito importante para Porto Alegre, porque absorve o aumento do nível de águas do Guaíba, então ela previne para que áreas mais baixas do entorno não se alaguem”, diz, acrescentando também que a área é habitat de animais ameaçados de extinção e pode ter a biodiversidade ameaçada com o empreendimento. “Um pássaro cujo habitat está a dez metros das casas, não vai se distanciar apenas isso, ele vai ir para outro lugar, porque vai existir barulho, vai existir poluição em toda a obra que vai ter que acontecer. Existe um caráter minimamente rural nesse empreendimento, mas a gente não consegue mensurar porque eles não apresentam o projeto, o que eles apresentam é a mudança no plano diretor”.

Mateus avalia que também é preciso haver um debate mais qualificado sobre a proposta de expansão urbana da cidade. “A gente entende que o Extremo Sul não é preparado para receber esse número a mais de economias. Para se ter uma ideia, Belém Novo ia praticamente dobrar a população. Então, toda a malha viária e de infraestrutura, como tratamento de água e esgoto, ela não é hoje preparada para isso. O que o empreendimento propõe para sanar é muito raso. Do nosso ponto de vista, a questão do trânsito, não tem como solucionar. Não existe possibilidade de expandir dessa forma essa região”, diz.

Ele pontua ainda que a construção de um bairro planejado também traz o risco de gentrificação para o bairro. “Esses condomínios criam muros em torno deles e tudo que é tipo de serviço que surge para abastecê-los causa aumento no custo de vida. Se de fato forem morar todo esse número de economias novas na região, isso possivelmente gere um processo de gentrificação, que é quando as pessoas não tem mais condições de bancar o custo de vida da região e precisam se afastar ainda mais de onde elas estão morando”, diz.

A respeito da possibilidade do empreendimento resultar no aumento de alagamentos do bairro, o vídeo apresentado pela empresa traz uma fala do engenheiro Fernando Duarte em que ele argumenta que está prevista a instalação de bacias de amortecimento para controlar o fluxo d’água.

Já a respeito dos questionamentos legais a alterações no regime urbanístico da área, o secretário Germano Bremm, titular da Smamus, disse na reunião do CMDUA do dia 1º de junho que não há nenhuma objeção à tramitação ou encaminhamento das questões relativas ao novo projeto, uma vez que a suspensão da lei de 2015 está mantida e que agora se está discutindo uma nova lei.

Edição: Sul 21