Rio Grande do Sul

ENDEMIA

Com quase 7 mil casos confirmados em 2021, RS tem recorde de infectados por dengue

Em Porto Alegre, agentes de combate a endemias criticam desvio de função que os impedem de fazer visitas de prevenção

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Na Capital, número de casos de dengue autóctones em 2021 é 916% maior que no mesmo período de 2020
Na Capital, número de casos de dengue autóctones em 2021 é 916% maior que no mesmo período de 2020 - Agência Brasil

Além da pandemia do novo coronavírus, o Rio Grande do Sul passa por outro problema que requer ação governamental e cuidados da população: a infestação do mosquito Aedes aegypti e o consequente aumento de casos de dengue. Em meio a isso, na Capital, os Agentes de Combate às Endemias, que deveriam fazer trabalho de busca ao mosquito e prevenção à doença junto à população, denunciam estarem trabalhando em desvio de função, dentro de unidades de saúde, em vez de realizarem as visitas domiciliares.

Conforme dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES), 83,3% das cidades gaúchas registram infestação pelo mosquito e o número de casos de dengue contraídos no estado desde o início de 2021 já é o maior desde que o levantamento começou a ser feito, em 2010. O Informativo Epidemiológico da Semana Epidemiológica 21, com informações até o dia 29 de maio, aponta 10.826 casos suspeitos da dengue no estado, com 6.962 casos confirmados, sendo 6.760 casos autóctones, ou seja, contraídos no território gaúcho. Somente na última semana, foram 561 novos casos confirmados. Dos 497 municípios gaúchos, 196 já notificaram casos suspeitos. Oito mortes foram confirmadas pela doença.

O médico infectologista Keny Colares, consultor em infectologia da Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP-CE), chama atenção para a gravidade da dengue, que pode evoluir para uma doença potencialmente letal em alguns pacientes. “A dengue está no nosso país como uma endemia e vez por outra aumentam muito os casos, se transformando numa ocorrência epidêmica. Regiões de clima mais temperado, como no Rio Grande do Sul, na Argentina, tinha pouco acometimento por dengue e estão passando a ter mais”, afirma.

“Aí tem toda uma discussão relacionada a mudanças climáticas, aquecimento global, o mosquito também tem a capacidade de se adaptar a climas mais frios. O fato é que é uma doença com tendência de crescimento no mundo e que merece ser levada a sério”, destaca. Segundo ele, em meio à pandemia do novo coronavírus, é um risco negligenciar o combate a outras doenças.

Porto Alegre: aumento de 916% em comparação com 2020


Quadras com registro de dengue contraída na localidade em 2021 circuladas em vermelho / Arte sobre mapa da SMS

O boletim epidemiológico do Centro de Vigilância em Saúde de Porto Alegre do dia 4 de junho informa 69 casos confirmados de dengue no decorrer de 2021, sendo 55 contraídos no município. Chama atenção o comparativo com o ano anterior, quando até o mesmo período do ano haviam 39 casos da doença na cidade, mas somente seis haviam sido contraídos na Capital - um aumento de 916% nos casos autóctones.

No site Onde está o aedes, da Secretaria Municipal de Saúde, é possível ver as localidades com maior número de casos a partir da coleta de fêmeas do mosquito em 121 armadilhas espalhadas pela cidade. São as regiões dos bairros Partenon, com 31 casos confirmados, e Humaitá / Navegantes, com 23 confirmados. Entre os dias 23 e 29 de maio, as armadilhas capturaram 244 fêmeas do mosquito.


Mapa da Semana Epidemiológica 20: os pontos são armadilhas espalhadas pela cidade (verde é sem captura, amarelo é uma, laranja duas e vermelho mais de três); pintado de amarelo estão os bairros não monitorados / Arte sobre mapa da SMS

O Sindisaúde-RS, em comunicado no seu site, expôs a situação de “explosão” de casos da doença na capital gaúcha. A nota compara os números das Semanas Epidemiológicas 15 e 17 de 2021, que apresentou um aumento de 525% nos casos em duas semanas. Em meio a isso, um outro problema. Diretora do Sindisaúde-RS, Rosângela Souza explica que o Sindicato tem recebido repetidas denúncias de que os Agentes de Combate às Endemias estão em desvio de função.

Agentes em desvio de função

Ela afirma que os casos são relatados por trabalhadores que atuam em diversos bairros e unidades de saúde da Capital. Porém os agentes têm medo de represálias, “ainda mais agora que a maioria dos postos foram cedidos através de contratos para alguns hospitais”.

Ainda segundo a dirigente, os dados sobre a dengue da prefeitura estão subnotificados e os bairros apresentam mais casos do que informa a Secretaria Municipal de Saúde. Ela explica que na maioria do país, a cada quatro meses, é feito um Levantamento Rápido de Índices para Aedes aegypti, o LIRAa. São visitas com coletas em todos os bairros da cidade, por amostragem, de quatro em quatro imóveis em quarteirões sorteados para visita.

“Aqui ele não é mais feito, desde que foram implantadas as armadilhas, onde são feitas as coletas uma vez por semana de possíveis larvas do Aedes. Um dos problemas em questão é que não são em todos os bairros que estão as armadilhas e em alguns deles estão sem o registro de coletas até mesmo por falta de pessoal”, diz Rosângela. “Por exemplo, não existem dados de armadilhas nos bairros Santo Antônio, Santa Tereza e Humaitá”, complementa.

Em vez de visitas de prevenção, trabalho burocrático

A reportagem do Brasil de Fato RS conversou com um Agente de Combate às Endemias (ACE) de Porto Alegre, que concordou em falar sob sigilo de sua identidade. “Em plena pandemia, os ACEs não podem fazer a prevenção e busca ativa de dengue porque são obrigados a cumprir as escalas dentro das unidades de saúde”, relata.

Ele explica que os desvios ocorrem desde 2017, quando passaram a fazer meio turno em visitas domiciliares e meio turno nas unidades. “O combinado pela Atenção Primária de Saúde seria 50% do trabalho dentro do posto fazendo e organizando nossas demandas referentes ao nosso trabalho, e 50% em visitas domiciliares. Mas de 2018 até hoje estamos 100% nas unidades. Só saímos da unidade quando temos que acompanhar as técnicas para vacinar acamados ou quando um paciente falta uma consulta, mesmo com uma nota técnica aprovando a saída dos agentes novamente para as visitas domiciliares.”

No posto de saúde onde ele trabalha são oito ACEs, que estão desempenhando variadas funções internas e burocráticas. Desde receber pacientes com sintomas de covid-19 a entregar equipamentos, receitas e resultados de exames. “Na área de campanha da vacina contra a covid, os ACEs foram obrigados a trocar o horário de almoço do meio dia para as 11h ou 13h, para que acadêmicos possam almoçar ao meio dia. Sendo assim temos que fazer desde carteira de vacina covid até colocar no sistema, atividades que antes eram feitas só por técnicos e acadêmicos”, exemplifica.

Segundo ele, desde que a mudança ocorreu, o trabalho de visitas à população para prevenção à dengue ocorre “muito raramente”. E só quando a coordenação passa ouvidorias de dengue, “que são reclamações de pátios isolados que vizinhos denunciam pro número 156 e a Coordenadoria Geral de Vigilância em Saúde (CGVS) repassa para as gerências mais próximas”.

“Quando saíamos pras ruas para fazer nosso trabalho, nós não só eliminávamos os criadouros, mas também orientávamos sobre os sintomas e qual a unidade de saúde de referência para procurar. Também orientávamos sobre o escorpião amarelo, tuberculose e outras endemias. Esse trabalho de prevenção, busca ativa e orientação com o tempo vem se perdendo”, afirma.

O agente chama atenção para o crescimento de casos de dengue na cidade, mesmo em período mais frio, quando a ocorrência do mosquito tem tendência a baixar. “No boletim anterior eram 40 casos confirmados e agora são 66 confirmados (referente à Semana Epidemiológica 20), entre autóctones e importados. No Humaitá, por exemplo, são 19 casos confirmados e todos os agentes da Zona Norte deveriam ser deslocados para lá. Deveríamos ter ido nas casas dessas pessoas pra ver se teria mais gente da mesma família contaminada, já que são casos autóctones, ou seja, o mosquito contaminado está circulando entre essas famílias”, ressalta.

Um trabalho que não pode ser interrompido


Agente em vistoria ao Parque Farroupilha (Redenção) no dia 12 de maio, em ação de identificação e eliminação de criadouros de mosquitos Aedes aegypti / Cristine Rochol/PMPA

O infectologista Keny Colares destaca a importância do trabalho dos agentes de endemias de visita às comunidades. Ele avalia ser até compreensível que o serviço tenha sido interrompido na fase inicial de enfrentamento à pandemia de covid-19, já que a rede teve que se readequar e priorizar. “Depois de um ano não é razoável não estar fazendo essas atividades. Já passou mais de um ano de enfrentamento e é preciso que a rede seja preparada, com treinamento e recurso, para que consiga enfrentar esse problema”, avalia.

Keny destaca que deixar de enfrentar a dengue com prevenção e assistência por causa da covid pode causar ainda mais pressão no sistema de saúde. “O aumento de casos pode causar uma dificuldade adicional de manter a saúde das pessoas e inclusive comprometer o atendimento à covid, se as unidades começarem a se encher de pessoas com dengue.”

Agentes correm risco de demissão

Os ACEs, da mesma forma que os agentes comunitários de saúde (ACS), são categorias que faziam parte do Instituto Municipal da Estratégia da Saúde da Família (IMESF), que está em processo de extinção, iniciado pela Prefeitura de Porto Alegre ainda na gestão de Nelson Marchezan Jr (PSDB). Segundo o trabalhador ouvido pela reportagem, nas últimas mediações entre os sindicatos e o município, foi dito pela Secretaria Municipal de Saúde que os agentes seriam incorporados pelo município em um cargo de extinção. “Mas não foi respondido como e nem quando isso pode ocorrer. Então estamos no limbo”, comenta.

Com a nova gestão, o governo Sebastião Melo (MDB) encaminhou que os sindicatos formassem um grupo de trabalho (GT) para resolver essa questão do IMESF. O agente destaca que este GT provou que manter os trabalhadores custaria menos da metade que contratar empresas terceirizadas, “mas mesmo assim o município demitiu os técnicos de enfermagem, os enfermeiros e o pessoal da odonto. Com os médicos foi feito um acordo.”

“Então nós agentes não confiamos nesse prefeito que não tem palavra. Tanto ele pode nos assumir, como pode chamar concursados para por no nosso lugar. Só que os concursados não vão suprir a demanda. Porque foram poucos que passaram. Tem postos de saúde em que não passou nenhum agente”, afirma.

O último concurso foi realizado em agosto de 2020, em meio à pandemia, e teve uma grande abstenção: 40% dos inscritos não fizeram a prova. O edital, porém, abriu vagas para apenas um ACE, e para 137 ACS. “Aquele concurso foi um fiasco. Muitos agentes se negaram a fazer. Muitos não acharam o local das provas. Chovia torrencialmente no dia da prova em plena pandemia. Muitos inscritos chegaram em seus lugares de prova e não tiveram seus nomes homologados. Em muitas unidades de saúde nenhum agente passou”, critica.

A diretora do Sindisaúde-RS afirma que o sindicato está tentando, primeiramente, através do diálogo com a Vigilância em Saúde, resolver esse problema “que começou a ocorrer desde que os ACEs foram para Atenção Básica do município e se tornaram um faz tudo dentro das unidades”. Rosângela também destaca que o IMESF ainda não foi extinto, “pois se isso tivesse acontecido não estaríamos trabalhando e recebendo do instituto em questão”. Lembra ainda que existe a lei 11.350/2006, que regulamenta os agentes em geral e “os mesmos não podem ser contratados sem ser via concurso público ou processo seletivo com vínculo na administração direta do município”.

Segundo o agente ouvido pela reportagem, na última semana um profissional da Vigilância em Saúde visitou unidades para conferir a situação. “Logo em seguida ele ligou pra gerência e perguntou por que a coordenadora não estava liberando os agentes pra fazer visitas domiciliares de dengue. Ela respondeu que precisava dos agentes porque estava faltando mão de obra na unidade. O responsável da Vigilância achou isso um absurdo e logo em seguida lançou uma norma técnica pros agentes serem liberados nem que seja 50% pras visitas”, conclui.

A reportagem do Brasil de Fato RS contatou a Secretaria Municipal de Saúde e enviou questões a respeito das denúncias feitas pelo sindicato e os trabalhadores. Até o fechamento desta reportagem, a pasta não havia retornado com as informações. Caso haja retorno, o conteúdo será atualizado.


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Edição: Katia Marko