Às vésperas do Dia da Mata Atlântica, 27 de maio, e diante de acontecimentos recentes, a serem abordados na sequência, temos que exaltar uma das suas principais qualidades: ser conhecida como "a mata que dá água". Somos água (ou constituídos por água), igual a tudo o que existe no planeta, mas a correlação da Mata Atlântica conosco não vem garantindo a sua preservação e conservação. Ao contrário, é o bioma mais ameaçado no país, mesmo sendo o lar de 72% dos brasileiros e constituir o território de onde é gerado 70% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional (Sosma, 2020)[1].
É neste amplo contexto que a importância da existência da Área de Proteção Ambiental (APA) Morro de Osório está inserida: de garantia de preservação da biodiversidade ao proteger os remanescentes de Mata Atlântica ou 6,6% do bioma original, que possam estar conectados aos demais ainda existentes no Litoral Norte; e de garantia de água, recurso hídrico essencial para a população, além de ser território de nascentes de rios que abastecem vários centros urbanos, como é o caso das nascentes do Rio dos Sinos.
Por isso, a criação desta Unidade de Conservação municipal em 1994[2], para proteger os remanescentes de Mata Atlântica existentes em Osório[3], deve ser enaltecida. Caso contrário, os problemas rotineiros de abastecimento hídrico, nas comunidades que vivem no interior da APA, seriam ainda mais críticos. Porém, a sua não efetivação e restrita valorização, a transformou numa “unidade de conservação de papel”. Isto porque, o Plano de Manejo foi elaborado só em 2008 e, poucas diretrizes do documento foram consideradas pelas gestões municipais. Tão grave como, é a não existência de um Conselho Gestor específico da APA, ainda que o Conselho Municipal de Meio Ambiente (Condema), venha cumprindo este papel institucional desde 1994. Assim, uma proposta de criação do Conselho Gestor da APA - COMAPA[4], foi protocolada na prefeitura em março de 2020, uma das principais reivindicações do Fórum da APA Morro de Osório[5].
A ausência de gestão real da APA colaborou para o surgimento e o agravamento de conflitos em seu território, principalmente ocasionados por interesses incompatíveis com a própria existência da UC, como o loteamento sem planejamento do solo, fruto da especulação imobiliária, principalmente nos últimos 15 anos. Como consequência, o Ministério Público Estadual (MPE) ajuizou uma Ação Civil Pública[6], deferida pela Justiça devido a constante degradação ambiental no Morro da Borússia, situado na APA. Segundo dados e documentos levantados pelo Gabinete de Assessoramento Técnico do MPE, a administração municipal foi omissa e ineficaz na fiscalização da área, culminando em altos níveis de degradação ambiental e crescimento urbano desordenado, constatados por um parecer técnico com imagens de satélite do período de 23/05/2003 até meados de 2018. Em dezembro de 2020, ocorreu um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre MP e prefeitura sobre a fiscalização e o licenciamento no Morro da Borússia[7].
Outro conflito presente é a tentativa de implantar linhas de transmissão de energia no interior da APA, abordada no artigo “Boiadas no caminho: a passagem das licenças de linha de transmissão pela APA Morro de Osório”[8]. Atualmente, a UC já é impactada por quatro linhas de transmissão. Não obstante, o projeto para uma quinta linha foi apresentado pela Eletrosul, em 2016, mas teve a anuência negada em função do traçado, que afetaria uma área sensível, de vegetação primária e, de vegetação secundária em estágio avançado de regeneração em alto grau, e com alto grau de preservação da Mata Atlântica. A apropriação dessas informações se deu a partir da organização e mobilização dos moradores, apesar de todas as dificuldades, da falta de transparência e da violação de direitos humanos básicos, como o acesso à informação.
Contudo, a renitente incompreensão sobre a importância da APA, ficou evidente apenas dois anos depois da negativa acima referida, quando um novo traçado, porém, ainda dentro da APA, foi apresentado pela empresa CPFL Energia (chinesa Stade Grid) e aprovado em leilão. Novo traçado, velhos problemas: os mesmos do projeto da Eletrosul. Novamente, a mobilização social foi necessária, e acionado o Ministério Público Federal (MPF) através da Procuradoria da República no município de Capão da Canoa, para garantir o cumprimento dos ritos legais constitucionais e da legislação ambiental.
Entre os vários impactos socioambientais previstos a partir do projeto atual, mais de 400 famílias podem ser atingidas e não têm acesso às informações como a respeito das mudanças propostas para o território onde vivem, exceto de modo superficial e através de propaganda sobre os supostos benefícios econômicos. Além disso, tem ocorrido a prática estratégica, das empresas do setor elétrico brasileiro, de fazer negociações individualizadas e oferecer indenizações com valores irrisórios. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de diferenciar duas situações em que se encontra essa população: de pessoas atingidas, que acabam aceitando a proposta de sair ou a saída ocorre por meio judicial e com custos maiores que o próprio valor da indenização; e de pessoas afetadas, que sequer são reconhecidas, tanto devido a mudança da paisagem pela obra e a instalação permanente das torres e fios, como pela mudança do ambiente, do microclima e das relações ecológicas locais.
A execução da obra implica desmatar, ou seja, suprimir a flora e, consequentemente, os habitats dos animais. É assim que são abertas estradas e clareiras de acesso, para a construção das torres e das faixas de segurança e servidão, e que ficarão ao longo do tempo abertas, para receberem a manutenção conforme a necessidade. São “veias abertas”[9] no meio da Mata Atlântica e que ao “rasgar” os remanescentes do bioma na APA, vão causar profundas consequências negativas para a biodiversidade.
As “veias abertas” são responsáveis por provocar impactos indiretos, entre eles: fragmentação da paisagem e quebra do contínuo florestal, isolando e seccionando os remanescentes florestais. O resultado vai ser a interrupção do fluxo gênico das espécies. A alteração dos habitats interfere na fauna, ameaça as diversas espécies, principalmente aquelas que necessitam de áreas florestais maiores. Dos animais, há um grupo conhecido como “especialistas”, porque possuem dieta e habitats muito restritos. Essa característica os torna mais sensíveis às perturbações no ambiente, e por isso, tendem a ser encontrados em trechos de florestas de vegetação primária e de vegetação secundária em estágio avançado de regeneração.
A abertura das clareiras vai causar o “efeito de borda”, impacto que inicia com o aumento da incidência de raios solares, o que vai alterar a umidade e o microclima do sub-bosque, e assim, desencadear efeitos sobre a constituição e a estruturação da flora, entre os exemplos, formando outros habitats e prejudicando a circulação e o fluxo da fauna local. Como se essas alterações não fossem suficientes, vai diminuir a evapotranspiração da mata, ou seja, sua capacidade de formar nuvens localizadas. São essas nuvens que, frequentemente, vemos saindo da mata, se retroalimentando com a alta pluviosidade e distribuindo água no ambiente. É essa característica que nomeia um dos tipos de vegetação do bioma Mata Atlântica, predominante na APA Morro de Osório: a Floresta Ombrófila Densa[10],[11] (“ombrófila” de origem grega significa “amigo das chuvas”).
A incompreensão sobre a importância da APA Morro de Osório, expressa através da insistência no traçado do atual projeto, decorre da observação isolada e, mal contabilizada ou nem isso, dos impactos ambientais que descrevemos. Seja na gestão da APA seja pelo órgão responsável do “planejamento” na avaliação técnica (Empresa de Pesquisa Energética - EPE), e na viabilidade socioambiental de novos projetos de linhas (órgãos ambientais licenciadores)[12]. Na prática, os impactos têm sido considerados em cada linha de transmissão, mas se estes fossem somados, não resultam um simples somatório de cada uma das atuais quatro linhas (1+1+1+1=4). E não para por aí: além da quinta linha, novas estão sendo projetadas para passar na APA devido aos novos parques eólicos no Litoral Norte.
Os impactos cumulativos sinérgicos das linhas de transmissão de energia por uma APA precisam ser considerados e avaliados. Este é o ponto central desde o traçado proposto pela Eletrosul até o traçado atual “escolhido” pela CPFL. Aliás, a falta de estudos mais aprofundados, transparentes e de conhecimento público, igualmente do porquê da escolha de traçados “alternativos” em detrimento de outros, inclusive por fora da UC, continuam secretos, sem respostas claras por parte da empresa CPFL tampouco do órgão licenciador (Fepam). Todavia, os principais interessados deveriam ter esse conhecimento: executivo e legislativo municipal, com destaque a Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Agricultura e Pecuária e o Condema, conselho ainda responsável pela APA.
Assim como a falta, cada vez mais rotineira de água para as comunidades da APA, as “veias abertas” já “sangram” o pouco de Mata Atlântica existente no município. A ameaça sobre a biodiversidade, única e que compõe o nosso patrimônio natural, se reflete como uma ameaça à existência das gerações presentes e, mais ainda, às futuras. A herança que deixaremos poderá ser tão diferente daquela que recebemos, ou seja, de uma APA cada vez mais seca, com uma paisagem fraturada por inúmeras linhas e, tudo isso para o acúmulo de lucros privados para algumas empresas apesar dos prejuízos para a coletividade e o meio ambiente. Por isso continuamos na luta e na defesa da APA, dos seus moradores, da água, da biodiversidade local e da Mata Atlântica.
* Professor da rede pública estadual, biólogo, especialista em Biodiversidade e Meio Ambiente (UERGS), mestre em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS) e integrante do Fórum da APA Morro de Osório.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
[1] Conheça a Mata Atlântica: https://www.sosma.org.br/conheca/mata-atlantica/
[2] Área de Proteção Ambiental Morro de Osório: https://sema.rs.gov.br/area-de-protecao-ambiental-morro-de-osorio
[3] Dados da ONG SOS Mata Atlântica disponíveis na ferramenta “Aqui tem mata: https://www.aquitemmata.org.br/#/” indicam 4.419 hectares do Bioma Mata Atlântica em Osório divididos em 3.545 ha de mata, 167 ha de dunas, 372 ha de banhados e áreas alagadas e 333 ha de vegetação de várzea. Importante destacar que "os resultados incluem apenas a vegetação nativa acima de 3 hectares".
[4] Proposta de Criação de um Conselho Gestor da APA - COMAPA: https://www.ufrgs.br/morrodeosorio/download/proposta-criacao-conselho-gestor-comapa-2020/
[5] Fórum criado em 2019 para debater os desafios e oportunidades que atingem a Área de Proteção Ambiental do Morro de Osório, localizado no município de Osório, Rio Grande do Sul.
[6] Ação Civil Coletiva nº 5001764-93.2020.8.21.0059/RS: https://www.ufrgs.br/morrodeosorio/tag/acao-civil/
[7] Osório: MP e Município fazem acordo sobre fiscalização e licenciamentos no Morro da Borússia. https://www.mprs.mp.br/noticias/52338/
[8] “Boiadas no caminho: a passagem das licenças de linha de transmissão pela APA Morro de Osório” http://www.ecoagencia.com.br/?open=noticias&id=VZlSXRlVONlYHZFSTxmWaNGbKVVVB1TP
[9] Além da analogia em relação às “veias abertas” do corpo humano que “sangram” frente à degradação da Mata Atlântica, também traz referência do livro clássico “As veias abertas da América Latina” do escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano (1940/2015), que aborda a exploração econômica, social, política e ambiental da América Latina pelos europeus e mais tarde pelos estadunidenses.
[10] Floresta tropical pluvial com altos índices pluviométricos, com distribuição de chuvas bem distribuídas durante todo o ano com situação bioecológica com períodos secos curtos.
[11] A Floresta Ombrófila Densa é um tipo de vegetação que se caracteriza por uma mata perenifólia (sempre verde) com dossel que chega a 50 metros unindo a copa das árvores como se fosse um tapete e que podem ter várias tonalidades de verde e coloridas na época de floração. As árvores emergentes de 30 a 40 metros de altura, além de possuir vegetação nos sub-bosques composta por samambaias, palmeiras, trepadeiras e epífitas como bromélias e orquídeas.
[12] Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler (FEPAM).
Edição: EcoAgência