Trabalhadores com rendas mais baixas pagam cada vez mais imposto que contribuintes de altas rendas
Estamos na época da declaração do Imposto de Renda e eu gostaria de propor uma reflexão sobre a função deste imposto e como ele vem se tornando um instrumento de aprofundamento das desigualdades sociais. Para começar, podemos afirmar com muita segurança que, se você for um trabalhador e tem uma renda mensal inferior a R$ 5 mil, o seu imposto, em valores corrigidos pelo IPCA, aumentou quase 12 vezes entre 2007 e 2018. Mas se você for daqueles que recebe mais de R$ 300 mil por mês, pode ficar mais tranquilo, pois, ao longo deste mesmo período, você vem pagando cada vez menos.
Para entender melhor esse assunto, precisamos voltar um pouco na história para contextualizar. Em 1988, quando, finalmente, estabelecemos as bases para a construção do nosso Estado social, com a promulgação da Constituição Federal, estava definido que seria necessário ampliar a arrecadação dos tributos sobre as classes mais ricas para poder financiar a proteção social, como fizeram todos os principais países que serviram de referência aos nossos constituintes.
A tributação, portanto, deveria ser aplicada respeitando a capacidade econômica dos contribuintes. A lógica dos dispositivos constitucionais estava alinhada ao princípio da solidariedade que implicava cobrar mais de quem tem mais condições de contribuir e promover políticas públicas voltadas mais para quem tem mais necessidades, reduzindo, assim, as desigualdades sociais.
Dentre todos os tributos, o Imposto de Renda é o que melhor traduz essa premissa basilar de qualquer sistema progressivo, pois ele incide justamente sobre a principal manifestação econômica dos contribuintes, ou seja, sua renda. Com o Imposto de Renda é possível ir aumentando as alíquotas na medida em que a renda vai se elevando. A isso, chamamos de progressividade, pois o efeito produzido é o de reduzir as desigualdades após a tributação.
Em 1988, o Imposto de Renda das pessoas físicas tinha sete alíquotas, sendo que a maior delas era de 45%, ou seja, atendia esta condição de progressividade e estávamos bem alinhados com o que se praticava nos principais países do mundo. Em 1989, no entanto, no ano seguinte à promulgação da Constituição, aprovou-se uma Lei, reduzindo para apenas duas alíquotas, sendo que a superior passou a ser de apenas 25%.
Em 1995, mais um ataque. Com a Lei 9.249, os rendimentos oriundos de lucros e dividendos distribuídos passaram a ser considerados isentos do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF). Ora, os lucros e dividendos são parcelas preponderantes dos rendimentos dos contribuintes de altas rendas, logo, o que houve foi uma desoneração muito expressiva dos setores com maior capacidade econômica.
Assim, esse imposto, passou a responder por uma parcela muito pequena da arrecadação total. Em 2018, o IRPF representava apenas 2,4% do PIB, enquanto a média de participação deste tributo nos países da OCDE era de 8,5% do PIB. Com essas medidas, as classes mais ricas passaram a contribuir cada vez menos para o financiamento dos direitos sociais. Não é demais lembrar que estas classes mais ricas nunca se conformaram com os avanços sociais conquistados na Constituição de 1988. A ampliação dos direitos sociais sempre foi um assunto sujeito a muitas resistências por parte destes setores.
A desidratação do Imposto de Renda faz parte, portanto, deste esforço planejado para inviabilizar a construção do Estado social, que precisou ser financiada cada vez mais por tributos indiretos, que oneram mais os mais pobres, conhecidos também como tributos sobre o consumo. Oneram proporcionalmente mais os mais pobres porque estes se obrigam a gastar toda a sua renda no consumo.
A resistência à implementação do Imposto sobre Grandes Fortunas também pode ser explicada por este verdadeiro “lavar as mãos” dos mais ricos. É como se estivessem sempre nos dizendo: vocês inventaram todos esses direitos, então paguem o custo.
As medidas adotadas na década de 1990 fizeram com que os contribuintes de rendas mais elevadas passassem a estar sujeitos a alíquotas efetivas do Imposto inferiores às alíquotas efetivas dos trabalhadores em geral. Alíquota efetiva é calculada dividindo todo o imposto pago pela renda total do contribuinte.
Em 2018, por exemplo, uma pessoa com rendimento superior a R$ 300 mil por mês estava sujeita a uma alíquota de 1,91% enquanto os contribuintes com rendas de até R$ 30 mil pagavam uma alíquota efetiva de 6,10%.
Mas é importante também perceber que, no processo histórico, os trabalhadores com rendas mais baixas vêm pagando cada vez mais imposto enquanto os contribuintes com rendas maiores estão pagando cada vez menos. Não se trata, portanto, de um episódio estanque, mas sim de um processo de redução da progressividade do imposto que acontece, principalmente pela não correção da tabela de incidência.
Em 1995, quem ganhava até oito salários-mínimos era isento do Imposto de Renda. Hoje quem ganha dois salários-mínimos já está sujeito ao imposto. Considerando o período de ganho real do salário-mínimo a partir de 2006, a equivalência do limite de isenção de 1995 seria hoje algo como quatro salários-mínimos mensais. Nas declarações de 2019[i], tínhamos aproximadamente 13 milhões de contribuintes com rendas inferiores a quatro salários-mínimos.
A não correção da tabela de incidência produz, portanto, a inclusão, a cada ano, de novos contribuintes com rendas cada vez mais baixas. Quando analisamos a evolução das alíquotas efetivas por faixas de renda, fica muito claro que as classes mais ricas, além de estarem sujeitas a alíquotas menores, veem suas alíquotas sendo reduzidas ano a ano. Já as classes mais pobres sofrem a incidência de alíquotas efetivas cada vez maiores.
Este é um processo lento, mas extremamente danoso aos mais pobres que já são mais onerados pela tributação sobre o consumo. Os contribuintes com rendas de até cinco salários-mínimos estavam sujeitos a uma alíquota efetiva de 0,07% em 2007 e passaram para uma alíquota de 0,82% em 2018, ou seja, 12 vezes maior. Já os contribuintes com rendimentos superiores a 320 salários-mínimos pagavam 2,59% em 2007 e passaram a pagar apenas 1,9% em 2018. As maiores alíquotas efetivas ocorrem na faixa de renda entre 30 e 80 salários-mínimos, mas vem diminuindo de 11,76%, em 2007, para 9,36%, em 2018.
Além de injusto, do ponto de vista social, esse processo é disfuncional, do ponto de vista da economia, pois a cada ano, o Estado deixa de recolher tributos que se entesouram como riquezas acumuladas nas classes mais ricas e retira mais tributos das classes com maior propensão ao consumo, onerando, portanto, a atividade econômica.
Mas qual é o montante destes tributos?
Quem ganha até 30 salários-mínimos de renda, pagaram quase R$ 96 bilhões a mais de impostos entre 2007 e 2018. Já os contribuintes com rendas superiores a 30 salários-mínimos pagaram quase 180 bilhões a menos neste mesmo período. Isso, considerando apenas a variação das alíquotas dentro de cada faixa de renda.
Quando eliminamos o efeito produzido pela isenção dos lucros e dividendos e consideramos que as maiores rendas estivessem sujeitas às maiores alíquotas observadas no período, o valor total que deixou de ser pago de imposto pelos contribuintes com rendas superiores a 80 salários-mínimos foi superior a R$ 630 bilhões.
Estas são as razões pelas quais a campanha TRIBUTAR OS SUPER-RICOS elegeu como principal medida a proposta de revogação da isenção sobre lucros e dividendos distribuídos e a instituição de uma nova tabela de alíquotas para o Imposto de Renda das Pessoas Físicas, que eleva o limite de isenção para as rendas mais baixas e cria novas alíquotas marginais de 30%, 35%, 40% e 45%, para rendas muito elevadas. Com isso, estima-se que seja possível aumentar a arrecadação deste imposto em quase R$ 160 bilhões, onerando apenas os 0,3% mais ricos da população, e reduzir impostos para mais de 90% dos contribuintes (cerca de 13% da população), com rendas de até R$ 15 mil mensais.
[i] RFB (2020) – Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (2019)
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko