Para o músico Dona Conceição, “a resistência já era importante quando a gente estava em uma situação melhor, agora muito mais”. Natural de Alvorada, Região Metropolitana de Porto Alegre, o compositor, percussionista, poeta, cineasta, ator e performer canta em suas músicas a história de resistência do povo negro e periférico, reunindo a força do batuque do Rio Grande do Sul com timbres da contemporaneidade musical e elementos da cosmovisão africana.
Seu primeiro disco, Asè de Fala, lançado em 2018, traz composições que o músico compreende como uma “volta para casa”. Após anos trabalhando em outros lugares, ainda não tinha feito seu próprio trabalho. "E o Asè de Fala veio para me trazer essa possibilidade de me tornar um artista, de me reinventar através da arte”, explica.
O disco recebeu diversos prêmios e indicações. Foi eleito o sexto melhor disco de música rock e MPB do Brasil em 2018, pelo site Embrulhador de Música. Ganhou o prêmio Carolina Maria de Jesus, pela Festa Literária das Periferias no Rio de Janeiro, e o prêmio e troféu Memória de Resistência, também pelo Rio de Janeiro. E foi indicado ao Açorianos de Música em 2019, na categoria melhor espetáculo.
Uma das músicas deste disco homenageia seu pai, que faleceu pouco antes do lançamento. “Tanto meu pai quanto minha mãe são responsáveis por isso, por eu enxergar minha casa como um lugar de acolhimento, como um lugar de potência. Tanto que meu nome artístico é uma homenagem aos dois: o Dona é da minha mãe, que é Dona Vera; e o Conceição é do meu pai, que era o Seu Conceição.”
Em entrevista ao Brasil de Fato RS, Dona Conceição, nome artístico de John Conceição, hoje com 31 anos, traz em suas palavras, além da resistência, respeito à ancestralidade. Entre as tantas parcerias renomadas que participaram da gravação do seu disco, a primeira que ele citou foi sua tia, “mulher de religião de matriz africana” que “tem uma voz maravilhosa” e sempre o motivou a seguir aquilo que acreditava.
Em abril deste ano, Dona Conceição lançou seu trabalho mais recente, o videoclipe de "Psicografia popular”, que conta com a participação especial dos músicos Gutcha Ramil e Fabricio Gambogi. Gravado no campo Panamá, na vila Bom Jesus, bairro de maioria negra da periferia de Porto Alegre, fala da questão do afastamento da população negra das cidades, “que cientificamente chamamos de gentrificação e que em diversos momentos na história foram realizados de maneira violenta, negligente com a população negra e pobre do nosso país”.
Também em 2021, no Dia de Iemanjá, lançou um EP chamado “Amor e Água”, resultado de um projeto do coletivo "Tem Preto no Sul", financiado pela Natura Musical. “O Amor e Água foi essa possibilidade de eu falar sobre outras coisas também, sobre afeto, sobre finitude da vida, sobre essa complexidade e essa diversidade que é o sentir." Ainda para este ano, prepara o lançamento de seu primeiro longa-metragem. O documentário já tem nome, “Figueira Negra”, e vai contar a história da construção de Alvorada através das pessoas negras. Ele conta que realizou o filme com uma equipe muito grande de pessoas, que também são de periferias, em sua maioria negras, da própria cidade.
Seu olhar para o social não é de agora. Na verdade, tornou-se artista em função de projetos sociais, como educador. Aos 15 anos, iniciou ao lado de dois amigos o projeto chamado Nação Periférica, que por sete anos ensinou percussão a adolescentes de sua cidade. A iniciativa veio após ele ter aprendido música no projeto Ouvir a Vida, da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre em parceria com o governo do estado e a prefeitura de Alvorada. Na troca de governo, o projeto foi encerrado e ele então sentiu-se na “obrigação de devolver de alguma maneira isso pro lugar de onde eu vinha”.
Sobre o atual momento da luta do povo negro, avalia que são temáticas contemporâneas mas sempre estiveram presentes no Brasil. “Essa questão das chacinas, esse genocídio planejado e muito bem executado pelo Estado, isso não é de agora, isso é de muito tempo. O que acontece é esse requinte de crueldade que a polícia e que o racismo estrutural cometem e que nos deixa assustados, abismados, apavorados com essa naturalização da morte e da dor das pessoas negras.”
Para Dona Conceição, o fato do Brasil “ter um presidente genocida, racista, homofóbico, que representa todo um atraso na construção de uma pessoa humana com intelecto para entender e aceitar e compartilhar a diversidade” é um agravante para a escalada da violência e do racismo no país.
Em uma conversa de 40 minutos por telefone, o artista falou sobre sua trajetória, projetos, resistência, lutas e conquistas do povo negro, trazendo uma mensagem “de amor, de afeto, de respeito, de evolução”. E fez questão de lembrar que essa pandemia, que está massacrando principalmente a periferia do Brasil, “vai passar e que a gente vai estar aqui para poder reconstruir de novo essa esperança”.
Abaixo, a entrevista completa:
Brasil de Fato RS - Vamos começar falando do seu último lançamento, o clipe da música "Psicografia popular". De início ele já mostra a que vem, tratando das complexidades do Brasil de uma forma poética. E ambientado numa periferia. Comente os temas abordados nessa música, a escolha do local de gravação e o que tu traz com isso.
Dona Conceição - O Psicografia Popular toca em diversos temas, mas o principal que me movimentou a escrever, fazer a poesia dessa música, foi a questão do afastamento, que cientificamente chamamos de gentrificação e que em diversos momentos na história foram realizados de maneira violenta, negligente com a população negra e pobre do nosso país. Aonde eu moro, a cidade onde eu nasci, ela é muito fruto desse processo todo de afastamento, de exclusão dessas pessoas dos centros das metrópoles.
A minha família era oriunda da “Pequena África”, que hoje é onde é a Cidade Baixa. E a gente foi colocado, teve que se deslocar para Alvorada, para um lugar mais distante pela grande elevada dos aluguéis e pelos incêndios criminosos que foram acontecendo durante o século XIX. Isso tudo aí foi só com Alvorada, que também é uma cidade que abrigou pessoas que vieram do Interior, mas outros bairros de Porto Alegre. Como no bairro Bom Jesus, que foi onde eu gravei o clipe, no campo Panamá, que também é um bairro de maioria negra na cidade de Porto Alegre, e que também é um lugar invisibilizado justamente por essa maioria da população ser negra.
BdFRS – O teu primeiro disco, o Asè de Fala, traz muita referência à resistência do povo negro. Como tu comentou agora, essa questão da gentrificação é um dos tantos problemas enfrentados na história. Nos fale um pouco desse disco, quando ele foi gravado, qual a tua mensagem e qual foi a repercussão dele desde o lançamento.
Dona Conceição - O Asè de Fala é um projeto que começou no início em 2017. Mas as gravações foram finalizadas em 2018. E o lançamento foi no dia 27 de novembro de 2018. O decorrer desse processo todo e a realização desse trabalho eu já considero como um prêmio, porque ele foi um disco gravado a 32 mãos, contando com músicos, compositores, pessoas que fizeram participações especiais, produtores. Foi um grande exemplo de mobilização, que quando a gente tem um objetivo em comum a gente consegue realizar essas coisas.
O Asè de Fala, eu digo que é meu disco de volta pra casa. Durante muito tempo eu fui uma pessoa que trabalhava em outros lugares, viajei o mundo, toquei muito para outros músicos, cantoras e cantores, compositoras e compositores, mas não tinha feito o meu próprio trabalho. E o Asè de Fala veio para me trazer essa possibilidade de me tornar um artista, de me reinventar através da arte.
Esse disco foi eleito, em 2018, o sexto melhor disco de música rock e MPB do Brasil, por um site que é referência, que é o Embrulhador de Música, e eu fiquei muito feliz por ser o meu primeiro trabalho a ser lançado, meu primeiro disco. Também fui indicado pro Açorianos de Música, de melhor espetáculo, ganhei o prêmio Carolina Maria de Jesus, pela Festa Literária das Periferias no Rio de Janeiro, o prêmio e troféu Memória de Resistência, também pelo Rio de Janeiro, e todas essas indicações e participações que o disco teve pós-lançamento. Foi tudo recebido com muita gratidão por quem sabe o quanto é difícil fazer um trabalho autoral e completamente independente, sem patrocínio, e conseguir chegar em tantos lugares.
BdFRS – Neste disco tu trouxe diversas parcerias. Como foi esta experiência e o quanto isso foi engrandecedor?
Dona Conceição - Então, eu tive muitas parcerias, de compositores, cantores, instrumentistas. Todo mundo foi importante nesse processo, mas o que me deixou muito feliz é a participação da minha tia, que é uma senhora de 70 anos que chama Lia Mara e foi uma das primeiras cantoras que eu ouvi na minha vida. Porque é uma mulher de religião de matriz africana, uma mulher do batuque, e que em todos os rituais ela tava lá cantando. Ela tem uma voz maravilhosa e sempre foi uma pessoa que me motivou muito a seguir aquilo que eu acreditava. Ter ela nesse disco para mim foi uma honra. São pessoas que eu sei que infelizmente o tempo acaba levando, como a todos nós, e ela por ser uma pessoa idosa, eu gostaria muito que tivesse a sua mensagem nesse mundo, a influência que ela teve na minha vida traduzida naquele disco.
Eu também tive o prazer de ter o Sirmar Antunes, que é um ator e que também foi uma pessoa que me inspirou muito a seguir em outras áreas além da música, porque eu também sou ator, trabalho com performance. O Sirmar Antunes, junto com a Vera Lopes, foram duas pessoas que me motivaram muito a isso, e ele participa da faixa Madrugada, e a minha tia Lia Mara participa da faixa Pássaro Azul.
Eu também tive a participação da Paola Kirst; da Pâmela Amaro; do Dionísio Souza, da Kiai Grupo; do Thomas Orlt e a Juliane Jihé, que são dois franceses que participaram do disco e acabei gravando com eles quando fui fazer um trabalho na França. Conheci eles nesses encontros que a música nos possibilita e toparam gravar a primeira faixa do disco, que é Saudação a Exu; os músicos Bruno Vargas; Dhi Neques; Gutcha Ramil; a Andressa Ferreira; foram todas pessoas que já tiveram ligação comigo há muito tempo e que tive a possibilidade de convidá-las a participar desse processo todo com os arranjos e três músicas do querido amigo Pedro Dom, que foi um dos principais motivadores pra realização desse trabalho.
E toda a produção, mixagem e masterização do Wagner Lagemann, do estúdio Pedra Redonda, que foi o espaço que abriu as portas pra realização desse trabalho, que acreditou. Inicialmente ia ser um EP e o Wagner disse que era para gravar um disco mesmo, que o disco ia ser muito necessário. E vários alunos que acabaram virando amigos e colegas de trabalho, como o Kelvin Oliveira, o James Oliveira, Vitor, são três irmãos que participaram desse processo todo.
Parceiros de composição como Bruno Amaral, Daniel de la Vusca, Rafel Pipa, que são jovens compositores e que tive o privilégio de ter acesso, conhecer e poder trabalhar junto também. É muita gente. Teve Emílie Lapa, Alexandra Pessoa, que são de Salvador; Diogo Martins, que é de Brasília, mas mora no Rio; Luciane Dom, que é de Minas e tem trabalho no Rio. Então, muita gente. A minha esposa, que estava como produtora na época, que é a Josiane Arruda.
BdFRS – Muito interessante tu começar pela tua tia. Inclusive, uma das músicas é em homenagem ao teu pai, e me veio à mente a questão de ancestralidade e toda essa temática. O que você tem a dizer sobre isso?
Dona Conceição - Como eu falo que meu disco é uma volta pra casa, era uma das primeiras coisas que eu gostaria de falar. O “Asè de Fala” justamente é porque o asè, essa energia, é para poder falar sobre isso, sobre a volta pra casa. E a casa é uma metáfora poética para falar das pessoas, o espaço físico nos remete a várias lembranças, mas o espaço físico tem essas pessoas que tornam o espaço um elemento potente de narrativa.
Tanto meu pai quanto minha mãe são responsáveis por isso, por eu enxergar minha casa como um lugar de acolhimento, como um lugar de potência. Tanto que meu nome artístico é uma homenagem aos dois: o Dona é da minha mãe, que é Dona Vera; e o Conceição é do meu pai, que era o Seu Conceição. É como eles eram conhecidos, e muito famosos no lugar de onde eles vêm justamente por serem duas pessoas muito comunicativas, que sempre foram muito respeitadas. O meu pai, um pouco antes de eu lançar o disco, veio a falecer e algumas coisas que ele me dizia enquanto estava aqui reverberaram muito durante o processo da gravação do disco, e acabei compondo o Dabudé, que é uma homenagem a ele.
BdFRS - Neste ano, no Dia de Iemanjá, tu lançou um EP. Nos fale sobre ele.
Dona Conceição - Esse trabalho foi uma grata surpresa durante um ano que a gente não sabia o que ia acontecer, o ano de 2020 na pandemia. Eu fui selecionado em um projeto chamado Tem Preto no Sul, que era financiado pelo Natura Musical, e tive a possibilidade de exercitar outras estéticas. Outras maneiras que também sou eu e que o Asè de Fala, como é um disco muito forte, muito combativo, as pessoas acabam associando muito a estética do Dona Conceição àquilo.
O Amor e Água foi essa possibilidade de eu falar sobre outras coisas também, sobre afeto, sobre finitude da vida, sobre essa complexidade e essa diversidade que é o sentir. E eu tive esse desejo de lançar justamente no dia do orixá que é um dos mais antigos, que é Iemanjá, a grande mãe, justamente por esse elemento que é de transformação. Talvez seja o meu desejo para o mundo também, que o mundo se transforme para além desse momento tão triste que a gente está vivendo.
BdFRS - É interessante pensar a questão da resistência, não só como protesto, mas como a própria vivência do carinho, da relação. Além de cantor e compositor, tu atua em outras frentes. Eu queria que tu contasse um pouco dessa tua trajetória. Como foram teus primeiros passos desde jovem, que conquistas e prêmios tu já teve?
Dona Conceição - Eu sempre fui uma pessoa muito inquieta, tenho uma maneira de enxergar o mundo muito sinestésica mesmo. As informações visuais, sonoras, sensoriais chegam e eu tento traduzir elas de alguma forma, ora por som, ora por imagem. Então, eu acabei tentando entender esse lugar experimentando outras artes além da arte da música. Então, eu fiz teatro, participei de vários grupos de formação para atores, muito focado na questão do teatro popular e político. Eu fui formado pelo Centro de Teatro do Oprimido no Rio de Janeiro, também participei do processo de formação da Terreira da Tribo de Atuadores, o Ói Nóis Aqui Traveiz de Porto Alegre. Aonde tinha coisas sobre teatro que eu pudesse aprender eu tava inserido, então, isso me fez conhecer outras pessoas e enxergar a arte de uma outra maneira.
Também a partir disso veio o desejo de escrever, muito ligado à construção de uma história, de uma narrativa, e nessa época eu não estava nem tanto pensando na questão do negro em si, mas muito mais pensando em conseguir criar uma história de início, meio e fim que pudesse ser entendida por outras pessoas. Com o processo do final da adolescência, eu comecei a fazer performance, pensar esse corpo enquanto um corpo político. Realizei alguns trabalhos de performance muito também instigado pela questão do teatro do oprimido e consegui, realizei, ganhei alguns prêmios nesse processo, como o Troféu João Cândido, o prêmio de Diversidade do estado do Rio Grande do Sul.
Todos esses prêmios pensando esse meu trabalho enquanto artista, educador, agente cultural e tudo mais, mas ainda assim muito tentando me situar muito mais como educador do que como artista. Porque é muito difícil se assumir artista no Brasil, é algo muito desafiador, então é mais fácil você dizer que é professor do que dizer que é artista - as duas profissões são desvalorizadas, mas ainda professor tem algum certo prestígio. Então, eu tava nesse processo também de me assumir enquanto artista, mas eu já tinha indícios de que o trabalho que eu realizava tinha algum valor pelo recebimento desses prêmios e tal.
BdFRS - Com que idade tu está agora e quando tu começou o projeto Dona Conceição?
Dona Conceição - Eu estou com 31. O Dona Conceição foi exatamente em 2017. Foi bem no primeiro ano do falecimento do meu pai, quando fez um ano, que eu decidi: “meu nome artístico vai ser esse, meu trabalho é esse”. Foi isso.
BdFRS - Esse teu trabalho de educador com música, fala um pouco dele. Que projetos tu já desenvolveu e, ainda, tu está em alguma frente ou pretende de alguma forma trabalhar com isso, ou agora está mais com foco na poesia e na carreira artística?
Dona Conceição - Eu me tornei artista muito em função de ter projetos sociais. Acho que não só eu, mas muitos artistas das periferias começaram porque tiveram acesso a projetos sociais e o meu caso não foi diferente. Quando tinha 10 anos entrei em um projeto social chamado Ouvir a Vida, que era um projeto da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre em parceria com o governo do estado e a prefeitura de Alvorada. Nesse projeto eu estudei durante cinco anos e no final o governo trocou e eles acabaram com o projeto, tiraram mais de 500 crianças que tinham aula de música durante a semana, que ficaram sem atividades.
Naquele processo eu descobri a música, me descobri uma pessoa com facilidade pra música, passei pro teste da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e comecei a estudar música de uma maneira mais convencional, mas quando eu vi que o projeto tinha acabado eu me senti na obrigação de devolver de alguma maneira isso pro lugar de onde eu vinha. Então, com 15 anos, eu e mais dois amigos iniciamos um projeto chamado Nação Periférica, que durou sete anos e atendeu mais de 5 mil pessoas diretamente, alunos e famílias, fez mais de 200 apresentações na Região Metropolitana, viajou, foi pra Bahia, foi pro Rio de Janeiro, ganhou prêmios também. E esse projeto me deixou muito marcado como um jovem educador.
Então, depois desse processo todo eu comecei a me ligar muito mais com a questão artística do que com a questão de fato da educação, justamente porque é muito complicado ser educador e ser artista, porque quando você quer ser um artista de ponta e quer se dedicar integralmente é muito difícil. Então, eu trabalho em projetos mais pontuais relacionados à educação e muito mais focados na questão da arte agora.
BdFRS – Tu anunciou a estreia do teu primeiro longa-metragem, previsto para 2021. Pode nos adiantar que projeto é esse, temática, previsão de lançamento?
Dona Conceição - A ideia é ele ser lançado no segundo semestre agora de 2021, e chama “Figueira Negra”. É um documentário que eu realizei em Alvorada, em 2017, junto com uma equipe muito grande de pessoas, que também são de periferias, em sua maioria negra, da cidade de Alvorada. A gente realizou esse filme com o patrocínio da Universidade São Carlos junto com a Fundação Baobá e foi um projeto que me deixou muito orgulhoso porque a gente está contando a história da construção da cidade através das pessoas negras com uma narrativa documental e da mesma forma poética, não deixo de fugir da questão da poesia.
BdFRS - Com relação à pandemia, ela afetou drasticamente o setor artístico no geral. Como tu está lidando com essa situação sem fazer shows, se virando com projetos, como é que está isso para ti?
Dona Conceição - Agora esse ano a gente tem uma perspectiva um pouco melhor com a questão das leis de incentivo que foram aprovadas, a própria questão emergencial pra cultura, isso tudo fez com que o setor da cultura se movimentasse um pouco mais. Eu, no ano passado, trabalhei muito mais com a questão da produção de cinema do que com shows e tudo mais porque realmente não tinha muito o que fazer e a gente tava meio sem saber como lidar com toda essa situação também.
BdFRS - Foi um momento que tu focou mais em fazer teus videoclipes?
Dona Conceição - Sim. Eu lancei em 2020, no início da pandemia, o Azul, em parceria com a Luciane Dom, que foi um single e o clipe, e gravei esse disco, que é o Amor e Água, que foi lançado agora esse ano.
BdFRS - As temáticas que tu aborda, eu vejo elas muito conectadas com alguns debates atuais do momento social no Brasil em relação à luta do povo negro. A luta do povo negro tem ganhado destaque no mundo inteiro, a exemplo dos protestos contra a morte do George Floyd nos EUA. Bem mais perto de nós, teve o caso do Beto, assassinado no Carrefour. Temos ainda uma primeira bancada negra na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Como você entende este momento da luta do povo negro?
Dona Conceição - Então, essas temáticas que são tão contemporâneas agora, que se colocam como temáticas tão atuais, elas sempre foram pautadas em um país como o Brasil. Essa questão das chacinas, esse genocídio planejado e muito bem executado pelo Estado, isso não é de agora, isso é de muito tempo. O que acontece é esse requinte de crueldade que a polícia e que o racismo estrutural cometem e nos deixa assustados, abismados, apavorados com essa naturalização da morte e da dor das pessoas negras.
O que parece é que eles conseguiram aprimorar esse instrumento de dor e tortura. O que eu penso em relação a isso: eu acho que a minha arte é mais para anunciar e denunciar e eu levo isso como um mantra nos trabalhos que eu me proponho a realizar, porque a gente está em uma sociedade que estruturalmente é racista e a gente está em um país onde as pessoas conceitualmente são racistas. A gente fala muito de pré-conceitos, as pessoas já conceituaram que pessoas negras merecem ser subjugadas. Durante esse processo todo eu tento utilizar da minha arte para tratar justamente a arte como um antídoto, um remédio para essa doença que é o racismo.
Em relação a esses avanços, eu acho que é muito importante uma bancada negra na Câmara de Vereadores de Porto Alegre porque em outros lugares no Brasil onde a população negra também é mais acentuada já teve antes pessoas que trataram dessas temáticas, o próprio Abdias Nascimento foi vereador no Rio de Janeiro. Então essas pessoas que já ocuparam esses espaços de poder e que propuseram transformações que sejam de forma contundente na vida das pessoas, transformações reais nas vidas das pessoas, que é justamente o que eu espero que todas essas pessoas que ocuparam esses espaços façam.
Eu fiquei muito feliz porque uma das vereadoras que foi eleita eu fiz a campanha audiovisual dela, que foi a Bruna Rodrigues. Então, fiquei muito contente também de ver ela lá, uma mulher negra da Cruzeiro, que foi mãe cedo e que entrou na universidade, que passou por diversas questões. A gente sabe muito bem que se para um homem negro no Brasil é difícil, pras mulheres negras é o dobro. Então, é bacana, é importante, é necessário a gente ver essas pessoas nesses lugares.
BdFRS - Ouvindo tu falar, me veio algo no sentido de que essas lutas, esses resultados, eles não são algo que veio de uma hora para outra, são parte de todo um processo, de uma luta que nunca deixou de existir. Por exemplo, recentemente rememoramos a abolição do trabalho escravo, a Lei Áurea, onde se dá destaque à questão da princesa, mas não se coloca em foco a luta do povo negro. O que tu entende sobre isso?
Dona Conceição - Eu acho que às vezes é meio que proposital tu tirar o foco do assunto que realmente é importante. A gente tá falando de reparação social, de cotas, essas coisas que são um mecanismo de reparação, mas as pessoas ficam desfocando desse assunto justamente porque falar de reparação social para o povo negro no Brasil é algo que deixa a estrutura do poder muito furiosa, para não dizer outra coisa.
BdFRS – Entrando um pouco nessa questão que tu tocou de como esses movimentos sacodem as estruturas. Em meio a essa pandemia, temos um governo federal negacionista, que trabalha para retirar direitos, questões de reparação que existiram de uma certa forma e estão sendo extintas. Ao mesmo tempo a gente tem uma parcela da população brasileira que se abraçou, ou que já era abraçada, mas que mostrou a cara, nas ideias conservadoras. Nesse sentido, eu te pergunto: como é que tu enxerga a importância da resistência, seja na arte, na militância ou mesmo no dia a dia?
Dona Conceição - A gente teve no Brasil, durante muito tempo, um governo que tratava de maneira progressista essas questões. Não é pelo fato de ser um governo de esquerda, que tratava a vida e a construção do país de uma maneira progressista, que a sociedade deixava de ser racista. O racismo existia porque ele é estrutural, é inerente a quem tiver lá no poder. Mas com certeza o fato de ter um presidente genocida, racista, homofóbico, que representa todo um atraso na construção de uma pessoa humana com intelecto para entender e aceitar e compartilhar a diversidade, ele representa tudo oposto disso.
Ele é uma pessoa desprezível e pelo fato dele estar lá outras pessoas desprezíveis como ele que não querem aceitar que o mundo precisa evoluir, e o mundo quer evoluir, estão aí. E é muito difícil aceitar isso, que “eu sou uma pessoa atrasada, que não tolero o diferente e o mundo está querendo mudar”. Isso tudo leva essas pessoas a essas atitudes extremas, violentas, e isso era evidente que aconteceria se ele ganhasse.
A resistência já era importante quando a gente estava em uma situação melhor, agora muito mais. Então, a resistência agora é manter a gente vivo e manter o fôlego. Eu sou uma pessoa otimista que coloca as mangas para cima e vai trabalhar, vai ajudar, vai compartilhar, vai incomodar, sou esse tipo de otimista. E eu sei que outras pessoas como eu, no Brasil inteiro, também estão se conectando e resistindo a esse momento porque o Brasil vai precisar da gente. Negros e negras no Brasil, que ainda nem nasceram, vão precisar da gente, das nossas histórias, de tudo que a gente construiu durante esse tempo. Então, é isso.
BdFRS – Para encerrar, tu quer deixar uma mensagem pra quem vai nos ler, fazer um convite ou falar sobre alguma coisa que tu acha importante dar um toque?
Dona Conceição - Eu queria agradecer, para mim é sempre um prazer, uma gratidão poder comunicar a minha história, o que eu produzo para outras pessoas, para que mais pessoas tenham acesso, levem essa mensagem e multipliquem. Essa que é uma mensagem de amor, de afeto, de respeito, de evolução, porque o afeto e o amor são ferramentas fundamentais para a nossa revolução. Também deixar o meu abraço para todas as pessoas que perderam seus entes queridos para essa doença que está massacrando principalmente a periferia do Brasil e dizer que esse momento vai passar e que a gente vai estar aqui para poder reconstruir de novo essa esperança.
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Edição: Katia Marko