Nesta terça-feira, 18 de maio, foi o Dia Internacional dos Museus. O objetivo desta data é incentivar a população ao hábito de visitar e apreciar os museus. Na América Latina, dois museus são visitas obrigatórias, a Casa Azul, museu de Frida Kahlo, no México, e o museu de Violeta Parra, no Chile. Violeta e Frida são contemporâneas e suas obras artísticas são de grande importância para a cultura de seus respectivos países.
No entanto, o Museu Violeta Parra foi alvo de incêndios criminosos em Santiago, capital do Chile, durante os longos protestos que exigiam uma nova Constituição para o país. Desde que iniciaram em outubro de 2019 a março de 2020, quando cessaram com a chegada da pandemia, a sede do museu sofreu três atentados.
O último ocorreu em 28 de fevereiro de 2020. Dez encapuzados lançaram coquetéis molotov e comprometeram a construção na rua Vicuña Mackenna 37, no coração da Capital. Desde então o edifício inaugurado em outubro de 2015 pela presidenta Michele Bachelet está interditado e sem apontar os autores da destruição.
Os chilenos repudiaram os ataques e nos dois dias subsequentes, sábado, 29, e domingo, 1º de março, nas praças e teatros do país inteiro foram realizados shows com músicas de Violeta, reafirmando a identificação com sua obra. Precavidamente, após o primeiro atentado, a família da artista retirou as obras e transladou a um local não divulgado, preservando todo o acervo.
Os movimentos tiveram êxito nas eleições do último domingo (17) e garantiram 2/3 das cadeiras para candidatos independentes e de oposição entre os 155 candidatos que farão parte da Assembleia Constituinte que reescreverá a Constituição nos próximos dois anos.
A atual Carta Magna foi implementada na ditadura de Augusto Pinochet (1973-1989) e retirou as áreas da Saúde, Educação e Previdência como atribuições do Estado, assim como o direito à greve, o reconhecimento pleno da liberdade sindical e a negociação Coletiva Setorial.
Crime ou descontrole?
Há duas versões sobre a autoria do ataque ao museu: uma, a de que os protestos de grandes proporções teriam perdido o controle e bombardeios teriam atingido também o Museu, próximo ao epicentro dos protestos na Praça Baquedano.
Porém, há uma forte corrente defendendo que infiltrados de direita aproveitaram os protestos e atearam fogo num espaço simbólico da artista mais popular do país. Descendente de índios Mapuche, conhecida por sua arte de protesto, Violeta Parra é um ícone de contestação e valorização da cultura latino-americana.
Teve grande reconhecimento pela sua arte e foi a única artista latino-americana a ter uma exposição individual no Museu do Louvre, em Paris, ainda em 1964.
O coordenador das investigações alegou que a pandemia fez cessar as investigações e o inquérito segue inconcluso.
“Sempre ficará a pergunta: quem queimou o Museu em memória à Violeta Parra? Não creio que tenham sido os jovens que protestavam visto que Violeta é a representação do que o povo quer e necessita. Sinto muito pela destruição, mas creio que nada do que a extrema direita ou delinquentes façam acabe com seu legado porque ela é insuperável”, declara a chilena Soledad Hernandes, que conheceu o Museu em janeiro de 2020 com sua família e se emocionou profundamente.
Divergências no enfoque
Após a destruição, a imprensa chilena explicitou divergências entre a direção do Museu e Isabel Parra, filha de Violeta. Ela criticou o fechamento das portas durante os protestos e por não realizar atividades que fortalecessem as mobilizações das ruas.
"O Museu não teve compromisso social durante esta revolução. Não projetou o espírito social de Violeta, jamais”, declarou em entrevista ao jornal Mercúrio. Ela preside a Fundação Violeta Parra e representa a entidade no Conselho gestor do Museu.
A cantora de 82 anos declarou que se depender da sua vontade, o Museu não retornará à sede por ser um prédio dispendioso para manter. Também entende que a herança artística da maior folclorista latino-americana tem outras formas de ser mostrada. Ao solicitar entrevista, a assessoria informou que ela fez esse único pronunciamento e não voltaria a falar do assunto.
A diretora do Museu Cecília García-Huidobro tem se empenhado em reabrir provisoriamente o acervo em outro espaço cultural de Santiago até que o conselho gestor decida sobre o futuro da sede. Cecília adiantou que resíduos do museu, como os restos das árvores queimadas pelo incêndio, serão incorporadas a mostras futuras.
Enquanto não há encaminhamentos definitivos, o Museu segue com intensa programação online por meio do site, com agendas culturais diárias com shows musicais, exposições virtuais e debates sobre arte, cultura e política.
Independente de como venha a ser, a diretora manifestou um desejo. "Espero que o novo museu seja pensado com a comunidade."
“O Chile necessita do Museu Violeta Parra”, sentenciou o amigo e contemporâneo de Violeta, Gastón Soublette, de 93 anos. “Precisamos que este patrimônio esteja ao alcance da mão, dos olhos, dos ouvidos de todos”, concluiu.
Emoção e identidade
Após o suicídio da pluriartista em 1967, aos 49 anos, decorrente de uma profunda depressão, demorou 48 anos para aglutinar sua diversa produção cultural em um único espaço público até sua abertura em 2015. Foi complexo e trabalhoso reunir o acervo. Violeta ia deixando obras aos amigos pelo caminho por onde passava.
O museu é resultado da dedicação de 20 anos, iniciado com o nascimento da Fundação Violeta Parra, em 1995, fruto da iniciativa dos filhos – os cantores e compositores Isabel e Ángel Parra – e dos netos em reunir o máximo possível de sua obra numa única exposição permanente no Chile.
A persistência valeu a pena. “Um museu emocionante”, é uma das expressões comuns da maioria dos visitantes que visitou o espaço durante os cinco anos em que permaneceu aberto.
Desenhado para a artista
O prédio atacado tem forma de uma enorme viola de concreto. Foi elaborado pensando em integrar no mesmo espaço todas as obras da cantora, compositora, folclorista e artista plástica.
Abrigava tanto o acervo musical, como dava destaque também para a obra visual em bordado, tapeçaria, pintura, escultura, cerâmica e papel machê.
A disposição das obras recriava o clima da mítica “barraca dos Parra”, uma espécie de circo folclórico montado fora do perímetro urbano de Santiago, no setor pré-cordilheirano, onde Violeta Parra e os filhos organizavam eventos da família e de outros artistas apresentação musical e a exposição de obras, com diferentes extensões de uma coisa só, como desejava a artista.
Uma das atrações é o Jardim de Violeta com troncos de árvores sonoros, enfileiradas na sala. Com o ouvido colado ao tronco era possível escutar as diferentes melodias das canções de violeta. Era entrar na sala e ver as pessoas abraçadas aos troncos das árvores, com os ouvidos colados numa íntima escuta da cantora e instrumentista.
Contava com uma arborização e ajardinamento oníricos, com variadas espécies apreciadas pela artista, com diferentes espaços para abrigar cada manifestação artística, além de um pátio externo para atividades culturais. Nele ocorriam os bailes de cueca, reunindo novos músicos e a comunidade que chegava para bailar nos sábados de apresentações para rememorar uma das danças folclóricas do país.
Emoção garantida
“Fui uma das primeiras pessoas a visitar o Museu, aberto em 2015 após sucessivos adiamentos. Era um espaço pequeno, mas belíssimo, tanto o prédio como as exposições, que juntava tecnologias modernas com a simplicidade da Violeta. Era um lugar onde as pessoas se sentiam muito à vontade. O lado mais conhecido da Violeta Parra é como cantora e compositora, mas na verdade ela era uma multiartista”, conta a engenheira agrônoma Emma Siliprandi, que viveu em Santiago entre 2013-2018.
“O mais interessante para mim foi conhecer a Violeta arpillera, que bordava a história da cultura popular do Chile em enormes painéis, coloridos, lindos e originais. Espero que o Museu volte logo a ser aberto ao público. Recomendava sempre aos amigos que visitavam a cidade que não deixassem de dar um pulo lá. Era emoção garantida”, registra.
Emma destaca ainda que os turistas brasileiros em geral só querem saber de Pablo Neruda. “Ignoram a riqueza de duas mulheres artistas que foram tão ou mais importantes para a cultura latino-americana: Gabriela Mistral e Violeta Parra. Gabriela chegou a ganhar o prêmio Nobel de Literatura (1948), mas ninguém sabe disso. Não deixa de ser reflexo do machismo das artes. Parece que só o que os homens fazem têm valor”, observa.
Patrimônio das futuras gerações
Violeta Parra foi a mais reconhecida artista chilena e uma das principais folcloristas da América do Sul. Além de autora e intérprete, se destacou como divulgadora da música popular de seu país.
Sua obra serviu de inspiração a vários artistas posteriores que continuaram sua tarefa de resgate da música popular e do folclore do Chile e da América Latina. Na data de seu nascimento, 4 de outubro, é comemorado o ‘Dia da música e dos músicos chilenos’.
O carinho pela artista e seu legado tem grande reconhecimento em todos os segmentos. Os músicos do grupo Los Jaivas, do qual Isabel também fez parte, lamentaram muito o episódio. “Condenamos energicamente o atentado incendiário. Estamos felizes de que seu acervo seja acolhido e mostrado para promover seu legado, fonte inesgotável de inspiração e pedra angular de nossa identidade, da cultura chilena e latino-americana. É um patrimônio artístico e histórico que deve ser preservado a todo custo para as futuras gerações”, declararam.
Ataque ao conhecimento
O curador da mostra Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, fechada após protestos de conservadores no Santander Cultural, em setembro de 2018, em Porto Alegre, Gaudêncio Fidelis sofreu dezenas de ameaças de morte na ocasião.
Morando atualmente em Nova Iorque, o doutor em História da Arte interpreta que o ocorrido foi um ataque ao universo do conhecimento. Mesmo não tendo detalhes do ocorrido no Chile, avalia que atacar o universo simbólico dos costumes é o que está por trás desses episódios. “Quando estes incidentes acontecem temos que nos concentrar na especificidade deles, mas os efeitos retardatários a médio e longo prazo serão sempre no universo dos costumes”.
Para ele, os ataques à arte, à cultura, à academia e à ciência, todos convergem para o mesmo lugar. “Impor uma agenda conservadora (melhor seria dizer retrógrada) é mais fácil quando se ataca sistematicamente o campo (simbólico) do conhecimento. Esta é minha percepção com base em anos vendo isso acontecer, há agora um ataque sistemático em várias frentes”, conclui.
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Edição: Katia Marko