Publicação que será lançada nesta quarta (19) resgata história de Vicente Morelatto, o poeta, professor e militante que registrou em versos o linchamento ocorrido em Chapecó, no oeste de Santa Catarina, na década de 50, um fato político que a elite local sempre quis esconder e que virou notícia nacional e internacional na época.
1º
“Eu quero fazer ciente,
A todo bom cidadão
Vou reproduzir em versos
E peço ler com atenção
O caso de Chapecó
Que se acha em narração”
(verso de Vicente Morelatto)
“O poeta de cordel - a publicação”, traz um conjunto de materiais, como um pen card com o documentário, reedição do livreto de poemas e textos atuais sobre o tema, embalado em envelope antichamas, em alusão à queima da primeira edição do livreto “História do incêndio da igreja de Chapecó e o linchamento dos quatro presos”, de Morelatto, em 1954. O “modo coronelista” de poder nunca deixou de dar o tom na região oeste catarinense.
“O linchamento de Chapecó” era o título da matéria da Revista O Cruzeiro, dos Diários Associados, naquele novembro de 1950. Com textos de José Leal e fotos de Flávio Damm, deslocados do Rio de Janeiro para cobrir os fatos ocorridos no distante oeste catarinense, assim abria a narrativa, na ortografia da época: “Os quatro presos acusados de crimes de terem incendiado o igreja foram mortos a tiros e depois cremados no pátio da cadeia por um bando armado - Um dêles baleado 12 vêzes; outro, 8 vêzes - Narração completa dos bárbaros acontecimentos de Santa Catarina”. Os acusados foram mortos sem nenhum julgamento. Dois deles eram comprovadamente inocentes. Uma pequena multidão, para o tamanho da cidade naqueles anos, acompanhava.
5º
“Dia onze de Novembro
De Novembro e Cincoenta
O numero desta Revista
Que aqui nos apresenta
Em suas bôas colunas
Aquela cêna sangrenta”.
(verso de Vicente Morelatto)
Quatro anos depois, em 1954, em situação nunca profundamente investigada, morria Vicente Morelatto, aos 26 anos, um professor com perfil de liderança, militante político e pensador crítico da região que havia escrito e impresso com recursos próprios um livreto em versos de cordel no qual contava a “História do incêndio da igreja de Chapecó e o linchamento dos quatro presos”. Morelatto chegou a imprimir 400 exemplares e distribuiu 100 deles. Logo após sua morte, os outros 300 foram confiscados pelas “autoridades” da região e queimados, conforme contam testemunhas que “ouviram falar”. Os exemplares que restaram tornaram-se um objeto de segredo entre os amigos do professor que haviam recebido. Pareciam, pelas circunstâncias envolvidas em toda a história, desde tudo que levou ao linchamento de 1950, perigosos. A história ficou assim. Parte morta e queimada. A outra parte, escondida e com medo.
Reencontrar a trajetória escondida e proteger do fogo da história “oficial”
Nesta quarta-feira, 19 de maio, às 19 horas, será lançado em Chapecó um conjunto de produções sobre Vicente Morelatto e os acontecimentos naqueles primeiros anos dos 1950. Os documentaristas Ilka Goldschmidt e Cassemiro Vitorino, que em 2019 estrearam o curta-metragem “O poeta de cordel”, sobre a história de Morelatto, agora trazem a público, junto com a editora Gabi Bresola, da Editora Editora, uma publicação em formato de kit que aprofunda ainda mais a relação do passado com o presente.
“O poeta de cordel - a publicação” é composta por um pen card com o documentário de curta-metragem O poeta de cordel; um fac-similar do livro “História do incêndio da igreja de Chapecó e o linchamento dos quatro presos”, de Vicente Morelatto, impresso em tipografia; um livreto com textos da equipe e de convidados e a versão sonora do livro de Morelatto, e um vídeo de making of da produção em tipografia, intitulado "A Gráfica", embalados em um envelope antichamas. “Antichamas como alegoria para afastar o fogo — esse artifício que em inúmeros momentos foi usado para consumir testemunhos da história”, conta Gabi Bresola, criadora do projeto gráfico, da Editora Editora.
A história marcada pelo coronelismo
De acordo com Monica Hass, jornalista, professora e escritora, autora do livro “O linchamento que muitos querem esquecer” (Editora Argos/Unochapecó/3ª edição em 2013), o crime teve a marca do poder dominante na então pequena cidade madeireira de Chapecó. “O linchamento teve ampla repercussão, tanto no âmbito estadual como no nacional e até mesmo internacional. Num período em que o mandonismo local, com resquícios do sistema coronelista, utilizava-se, basicamente, da violência e da fé religiosa no seu processo de dominação, verifica-se a participação ou conivência dos principais poderes da cidade no crime: o policial, o judicial, o político e o religioso”, aponta Hass em texto escrito especialmente para publicação que será lançada nesta semana.
De acordo com a pesquisadora, eram anos de embate entre o Partido Social Democrático (PSD), comandado por Serafim Enoss Bertaso, filho do coronel Ernesto Francisco Bertaso, dono da Empresa Colonizadora e Industrial Bertaso, responsável pela colonização daquela parte de Santa Catarina, e os partidos de oposição, na época PTB e UDN. Era um momento em que colonizadores e madeireiros perdiam espaço político e eleitoral para novos sujeitos que chegavam ao oeste catarinense: comerciantes, profissionais liberais, professores, médicos, muitos se organizando em torno do PTB, da UDN e outras agremiações políticas.
Eram tempos de disputa. Dois dos linchados eram do PTB, partido que havia vencido as eleições de 1950 dias antes do linchamento, em 3 de outubro. O incêndio da igreja foi na noite do dia 4 de outubro, mudando completamente o jogo e colocando a população contra os chamados “forasteiros” que ameaçavam o coronelismo institucionalizado. Mudava o cenário político e social. Os impactos na região foram profundos. “Do total de envolvidos, apenas 48 foram julgados, a partir de 1952, e sete pessoas condenadas, dentre elas o delegado, absolvido em 1956 quando o PSD retorna a comandar o poder político local”, conta Hass.
94º
“O Snr. Ernesto Bertazo
Cidadão de muita idade
Dos primeiros moradores
Daqui desta cidade
Disse apenas essas palavras
Foi uma barbaridade”
(verso de Vicente Morelatto)
“Ele tirou a própria vida”, disse a história oficial em 1954 e também em 2011
E foi entre 1950 e 1953 que Vicente Morelatto escreveu os versos de cordel que descrevem aqueles dias de barbárie. Morelatto tinha relações com o PTB e lideranças da sigla. Logo depois de impressos os livretos, ele morre em situação nunca esclarecida, mas para a justiça local e para a história oficial: “ele tirou a própria vida”. Os livretos desaparecem, contam que foram queimados. A história de Morelatto some.
Em 28 de novembro de 2011, na mesma Chapecó, o então vereador Marcelino Chiarello, também professor, foi encontrado morto em sua casa. A primeira versão dava conta de que “ele havia tirado a própria vida” por enforcamento. Chiarello tinha uma atuação combativa e denunciava indícios de corrupção no transporte público do município, por exemplo. As evidências encontradas no lugar onde foi localizado o corpo de Chiarello, inclusive com apontamentos da Polícia Civil, dão indícios de que ele não se enforcou. Ele foi assassinado, afirmam ainda e quase 10 anos depois, a família, lideranças de Chapecó e região que continuam em busca da verdade e dos responsáveis pela morte de Chiarello, inclusive já tendo realizado um processo de julgamento popular simbólico.
O processo para chegar à publicação “O poeta de cordel”
“Passados 65 anos, trazer à tona essa história que foi reprimida e reprimiu sentimentos, relações e o desejo de justiça, desafiou o projeto de documentário a ser mais do que um filme. A proposta que com essa publicação se concretiza é resultado do desdobramento de uma narrativa fílmica em outras linguagens artísticas, o “vir à tona” trouxe mais do que a história e registro da da existência da obra do poeta, trouxe a obra em si, a poesia de cordel de Vicente Morelatto, as palavras que tentaram apagar, a existência que resiste às chamas do apagamento coletivo das memórias”, explicam os documentaristas Ilka e Cassemiro, que assinam o filme.
Foi a partir do diretor de teatro Jovani Santos, também de Chapecó, que eles tiveram acesso a um dos exemplares do livreto de Morelatto. Jovani, que descobriu o material na década de 90, publicou em 1999 o livro “O poeta da chacina”, resultado de longa pesquisa. A caminhada até o curta-metragem lançado em 2019 e o conjunto que chega agora ao público, com 200 exemplares, começou em 2016.
E encontrar a família de Vicente Morelatto: a viúva Beatriz, o filho Getúlio e a neta Luciana, foi crucial para que a equipe do documentário caminhasse para conhecer a figura que se foi aos 26 anos e deixou um legado histórico, o livreto “História do incêndio da igreja de Chapecó e o linchamento dos quatro presos”, e também uma marca muito profunda nas escolas rurais onde deu aula em sua vida tão breve. Getúlio era criança quando o pai se foi. No documentário, ele caminha ao encontro do passado junto com a filha Luciane, fundamental para o reencontro com Morelatto. O documentário tem três atos: a busca da história de Vicente (família), a gráfica (acompanhamento de todo o processo de impressão tipográfica do livreto com as mesmas fontes de época), a praça (a leitura dos poemas de cordel de Vicente na mesma praça central pelo Grupo Vertigem de Ações Poéticas de Chapecó).
Uma publicação cuidadosa traz textos da pesquisadora Monica Hass, dos documentaristas Ilka Goldschmidt e Cassemiro Vitorino, da editora Gabi Bresola e, com análise da linguagem usada por Morelatto, de Fernando Vojniak e Thiago Cinti Bassoni Santana. “Sempre importante dizer que essa publicação foi possível através de recursos públicos oriundos das lutas por políticas públicas na área da cultura. Neste caso, com recursos do Prêmio Edital de Fomento e Circulação das Linguagens Artísticas de Chapecó/2020”, destaca Ilka.
Como conseguir a publicação
A publicação será distribuída gratuitamente. Os 200 exemplares da versão impressa vão para acervos, bibliotecas e instituições públicas de diferentes regiões brasileiras. A versão digital de todos os itens da publicação estará disponível, a partir do lançamento, no dia 19, para acesso e download gratuitos no site: margotfilmes.com.br/opoetadecordel
120º
"Adeus para todos
Muito obrigado meus senhores
Aqui deixo bem esclarecido
Para os homens e doutores
Desculpas de minhas pétalas
E credes nos valores”.
(verso de Vicente Morelatto)
Serviço
Lançamento de “O poeta de cordel - a publicação”
Quando: quarta-feira, 19 de maio, às 19 horas, pelo youtube da Margot Filmes, de Chapecó:
https://www.youtube.com/watch?v=QhKQg6YQqZs
Mais informações: Margot Filmes
https://www.facebook.com/margotfilmes
https://www.margotfilmes.com.br/
https://www.instagram.com/margotfilmes/
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Edição: Marcos Corbari