“Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros da Colônia. Em sua maioria, elas eram internadas à força. Nos períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam a cada dia, vítimas de inanição e do eletrochoque. Ao morrer, davam lucro, pois seus corpos eram vendidos às faculdades de Medicina. Foram 1.853 corpos vendidos para 17 faculdades de Medicina até o início dos anos 1980. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos foram decompostos em ácido, no pátio da Colônia, diante dos pacientes, e suas ossadas foram comercializadas”, afirmou em entrevista a jornalista Daniela Arbex, autora do livro “Holocausto Brasileiro”. A publicação, de 2013, resgata a história do Hospital Colônia, em Barbacena, Minas Gerais, onde 70% das pessoas internadas sequer foram diagnosticadas com doenças mentais.
Fechado no final dos anos 1980, o Hospital Colônia de Barbacena não foi um caso isolado no país. O encarceramento das pessoas em sofrimento psíquico ou por uso de drogas lícitas ou ilícitas, e o uso de eletrochoques e outras estratégias degradantes, além de presentes na literatura são também temáticas do audiovisual, como o caso do filme Bicho de Sete Cabeças. Neste 18 de maio, Dia da Luta Antimanicomial, o sentimento é de resistência frente a uma nova onda de manicomialização no país.
Conquistas da luta antimanicomial ameaçadas
Militante da luta antimanicomial, psicóloga e integrante do Fórum Gaúcho de Saúde Mental, Fátima Fischer conta que, há três décadas, o movimento começou denunciando essas condições aviltantes em relação a violação de Direitos Humanos nas instituições psiquiátricas no Brasil. “O movimento cresce, começa com trabalhadores, familiares e vai se ampliando com a sociedade e no reconhecimento de que sujeitos em situação de uso de drogas, sujeitos com sofrimento psíquico, devem ter todos os direitos civis garantidos, assegurados, e entre eles uma possibilidade de viver com a sua diferença, sua trajetória em liberdade na sociedade.”
Os avanços resultaram nas leis de Reforma Psiquiátrica, primeiro no Rio Grande do Sul, depois no Brasil, trazendo cidadania e respeito aos direitos das pessoas em sofrimento psíquico. Depois, a conquista de espaço e assento em várias instâncias da sociedade, especialmente naquelas de controle social, como o Conselho Nacional de Saúde e alguns conselhos estaduais e municipais. Nos últimos anos, porém, as conquistas dessa luta, e políticas públicas voltadas para o cuidado em liberdade, têm sido sistematicamente atacadas, principalmente no governo de Jair Bolsonaro.
“Nós avançamos muito na garantia e na criação de rede, no financiamento dos serviços comunitários, atenção básica, estratégia de saúde da família, atendimento à população de rua, CAPs, moradias, geração de renda, e alcançamos uma boa parcela daquelas pessoas que necessitam desses cuidados. Mas vemos que ainda não é uma escolha da sociedade e muito menos uma escolha dos nossos governos estaduais, alguns municipais e sem dúvida do governo federal, genocida que faz uma escolha pela morte, e a nossa luta da saúde mental é uma luta pela vida”, afirma Fátima.
É preciso superar o modelo manicomial
A conselheira vice-presidenta do Conselho Regional de Psicologia do RS (CRPRS) e presidenta da Comissão de Direitos Humanos, Cristina Schwarz, afirma que a Lei 10.216, que instituiu a Reforma Psiquiátrica no Brasil, é um grande marco que materializa a construção de uma nova lógica de atenção à saúde mental no país. “Adota como eixo central da saúde mental a superação do modelo manicomial, de longos períodos de confinamento em hospitais psiquiátricos e de custódia, por meio da oferta de serviços territorializados de saúde mental, opções de tratamento e recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade. Nesse novo enquadre, as internações são previstas somente como recursos extremos e de curto prazo e precisam estar articuladas com a continuidade do cuidado em saúde, com a reinserção das pessoas ao seu meio”, afirma.
“Pessoas em sofrimento psíquico somos todas e todos nós. Agora, em diversos casos esse sofrimento ganha contornos agravados, no caso de pessoas com transtornos mentais graves e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, que podem ter impasses no exercício de sua autonomia, no desenvolvimento de suas atividades cotidianas e na dificuldade em estabelecer laços com o outro”, explica Cristina.
Assim como Fátima, a vice-presidenta do CRPRS aponta que a superação do manicômio enquanto estrutura e enquanto lógica nunca se efetivou de fato. “A lógica manicomial existe também nas práticas de segregação e desumanização associadas ao aprisionamento e à exclusão das diferenças e de sujeitos considerados ‘indesejáveis’.”
De acordo com ela, a exclusão social impõe uma vivência à margem do acesso a direitos básicos, que são essenciais tanto para o desenvolvimento biopsicossocial e a proteção da integridade em diversas etapas do ciclo vital. “Experiências de exclusão sistemática e continuada como as historicamente vividas nos manicômios podem culminar com o aniquilamento da própria experiência subjetiva, a despersonalização, o esquecimento do próprio nome - esse elemento tão fundamental das trocas simbólicas mais essenciais que se dão no campo do que é compartilhado socialmente. Além da prática de violência, de privação da liberdade e de violação dos direitos civis, a exclusão aniquila a vida.”
Desmonte do SUS e retorno da “indústria da loucura”
O cenário de exclusão que alguns setores brasileiros tentam implementar se manifesta na tentativa acelerada de desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) e de políticas públicas em geral, Fátima afirma que tem falado insistentemente que há “um retorno à indústria da loucura, aonde articulam saberes e fazeres dentro deste campo, aonde prevalece os interesses políticos e econômicos, o que se lucra com a doença mental. Nós usávamos essa expressão, indústria da loucura, quando começou o movimento da saúde mental, exatamente contra esse tipo de concepção, política, estatal, de interesses econômicos muito claros”.
Segundo Fátima, a mudança de direção das políticas públicas, que deixa de apontar para a Reforma Psiquiátrica, busca “voltar a um modelo centrado em uma única disciplina, na psiquiatria, incluindo na rede os hospitais e os ambulatórios de psiquiatria. Na concepção da Reforma Psiquiátrica eles estariam fora da rede de assistência. Apresentamos inclusive o retorno sustentado por esse governo do uso, de novo, da eletroconvulsoterapia como um dos melhores aparatos terapêuticos, como tratamento efetivo dito pela própria coordenação de saúde mental, na tentativa de trazer de volta para a rede”.
O CRPRS e o Sistema Conselhos de Psicologia, em conjunto com entidades de defesa da saúde mental e da luta antimanicomial, estão organizados no enfrentamento a diversas ameaças à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), afirma Cristina. “Ameaças que estão em curso desde 2017 e que se agravaram recentemente com a possibilidade de o governo federal, com apoio da Associação Brasileira de Psiquiatria e de grupos religiosos, revogar diversas portarias que, juntas, formam “o esqueleto” do custeio e da manutenção dos serviços de saúde mental em meio aberto, como os Centros de Atenção Psicossocial, Serviços Residenciais Terapêuticos e o Programa De Volta Pra Casa.”
Governo aposta em comunidades terapêuticas
Esta tentativa do governo federal, apelidada de “revogaço”, está barrada, por ora, mas não é o único risco, complementa a vice-presidenta do CRPRS. “O governo federal vem orientando os recursos federais para hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas - as CTs, que não são serviços de saúde propriamente ditos. Não são mantidos pelo poder público e atualmente já recebem mais financiamento no Brasil que os próprios Centros de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras drogas (CAPSad).”
Ela conta que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos realizou duas audiências, em março e abril, sendo esta última em conjunto com o Conselho Nacional de Direitos Humanos, em que isso foi pautado. Nesta última, inclusive, o governo federal anunciou ainda mais investimento em CTs para adolescentes, “afrontando o Estatuto da Criança e do Adolescente e legitimando uma nefasta realidade de encarceramento da população brasileira desde a sua juventude”. Ela destaca que a ênfase no financiamento dos espaços de confinamento como tratamento “desrespeita marcos internacionais da saúde mental como a Declaração de Caracas e gera situações concretas de violações de Direitos Humanos”.
Fátima explica que a luta antimanicomial é contrária não às clínicas em si, mas à estratégia de internação compulsória, em que a pessoa é internada contra sua vontade. “Que ele tenha possibilidade de escolha, inclusive, pela abstinência, e que isso seja construído com o usuário e viabilizado através de uma rede de serviço, de cuidados com uma equipe multiprofissional, baseada na relação de vínculo, na criação de vínculos. Da presença entre o cuidador e o usuário.”
Ela cita o psicanalista referência na Reforma Psiquiátrica, Antônio Lancetti, que fala de uma clínica da ampliação da vida. “O que nós somos contrários é ao financiamento cada vez maior das comunidades terapêuticas, que priorizam abstinência e tratam a questão de uso de álcool e outras drogas como uma doença individual, produzindo uma culpabilização pessoal. E as medidas em geral são coercitivas, submetendo esse sujeito a uma única alternativa da abstinência”, expõe.
“Para que estamos reinvestindo nesse modelo, se não é pelo benefício econômico e político de certos setores da sociedade que têm interesse nestas práticas? Porque, certamente, não é em benefício da população atendida que a ideia das grandes internações é reinvestida. Por isso precisamos refletir sobre essas (nada) “novas” formas de tratar que são veiculadas como soluções”, afirma Cristina.
Luta por Direitos Humanos continua
Fátima destaca que “a luta antimanicomial é uma defesa ética, política da vida, e todas as questões relacionadas com o viver e o habitar na cidade. O que entendemos por Direitos Humanos e garantias de direito, e exercício da cidadania, é que o cuidado em liberdade propõe construir processos de inclusão, na vida, no trabalho, pela economia solidária, processos de protagonismo, de reconhecimento de pessoas com sofrimento, com experiências de sofrimento mental”.
Cristina ressalta que este é um modelo de saúde calcado na promoção de direitos e demanda que a sociedade seja tolerante com as diferenças que existem. “Não se trata apenas de fechar os manicômios de outrora, pois cotidianamente ainda precisamos enfrentar formas de manicomialização fora dos antigos hospícios: desde a Lei da Reforma Psiquiátrica, o Brasil gradativamente deixa de confinar em manicômios, mas triplica a sua população carcerária ao mesmo passo em que constitui uma ‘guerra às drogas’, intimamente mesclada com a política de criminalização e encarceramento da população pobre desde a juventude”, reflete.
“A importância dos Direitos Humanos e o cuidado em liberdade é possibilitar refletir sobre questões relacionadas também ao racismo, violência de gênero, conflito de classe, que estão também relacionados com o sofrimento psíquico, individual e nas coletividades. O cuidado em liberdade leva em conta, faz parte também, pensar estratégias que possam produzir inclusão, cidadania, enfrentando essas questões nos diferentes espaços”, complementa Fátima.
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Edição: Katia Marko