A pandemia do novo coronavírus afetou todas as esferas da sociedade brasileira. Não foi diferente com os movimentos sociais populares, que em suas mais distintas realidades precisaram ajustar as estratégias de atuação junto a suas bases para evitar contato físico e aglomerações. O digital, com todas as suas implicações positivas ou negativas, tornou-se uma alternativa, como é para grande parte da população. Este processo está bem documentado através de um estudo realizado pelo Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP), ainda em 2020, que resultou em um e-book e uma websérie, disponíveis em um hotsite do CEAP.
Denominada “Travessia: Covid-19 e os movimentos sociais populares”, a websérie dividida em oito episódios já era um dos produtos pensados desde o início do estudo, explica a diretora-geral do CEAP, Elenice Pastore. “O formato teve essencialmente o objetivo de traduzir a reflexão e problematização do estudo em vídeos curtos de cerca de 8 minutos e que pudessem ser assistidos sequencialmente ou separadamente. Poderiam ser usados para as redes sociais, onde as pessoas iriam assistir e produzir uma reflexão sobre ou ser utilizado para espaço de formação de grupos sociais”, ressalta.
A websérie, ou os webdocumentátios, como prefere chamar o seu realizador, o cineasta, diretor e roteirista Guilherme Castro, mostra que a pandemia acelerou as possibilidades da virtualização. “O que os filmes mostram é um momento, apesar de todo o sofrimento e riscos, ameaças da iminente chegada ao poder do fascismo, em que a necessidade e a oportunidade fizeram os movimentos sociais se jogaram pras bases e a usar intensamente, finalmente, as possibilidades da comunicação virtual”, avalia.
Estudo inédito
O estudo que deu origem aos materiais, denominado “O impacto da Covid-19 na ação dos movimentos sociais populares”, foi coordenado por Paulo César Carbonari, membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Ele conta que foram ouvidos dirigentes de 23 organizações nacionais e que chamou a atenção como as subjetividades estavam atravessadas pelos elementos fortes dos acontecimentos da covid-19.
“Pareciam mais propensas a ajustar-se do que à abertura para o mergulho, em razão das recorrentes referências a exaustão, cansaço, por vezes referentes ao uso de equipamentos, mas também diante da dificuldade de dar conta de uma situação de longa duração e que trazia pouco conforto e ‘tranquilidade’”, afirma. “As mulheres, particularmente, percebiam práticas opressivas aumentadas, como a violência, a sobrecarga de trabalho, o cuidado com filhos e familiares, entre outros aspectos, no geral, mas especialmente para as mulheres militantes e que atuam nas organizações dos movimentos sociais populares”, complementa.
Ele destaca ainda que o “mundo digital”, já conhecido e com alguma atuação da maioria das organizações, apresentou-se quase como a única alternativa de “sobrevivência política”. “Apesar dos riscos serem percebidos, as considerações sobre as questões de segurança da informação/comunicação implicadas no uso de uma ou outra ferramenta, e a adesão quase que irrestrita e acrítica às ferramentas convencionais e comerciais, tanto de videoconferência quanto de redes sociais e de uma visão bastante “monotecnológica” ficaram muito repetidas, mostrando quanto esta questão ainda é necessidade de pauta política e pedagógica”, constata.
Elenice conta que quando a pandemia chegou, em março de 2020, o CEAP precisou suspender as atividades presenciais em andamento. Foi nesse contexto que surgiu o debate sobre como, enquanto Centro de Educação Popular, poderiam “produzir reflexões que fossem além da enxurrada de lives que estavam acontecendo”.
“Até fomos questionados sobre porque o CEAP não fazia lives. Não queríamos fazer mais do mesmo. Queríamos produzir uma reflexão analítica do momento e dos acontecimentos. Não para dar respostas, mas problematizar e talvez gerar ainda mais perguntas sobre o que estávamos vivendo e quais os desafios colocados. Desafios estes, para refletir junto com as organizações e os movimentos sociais populares de todo o Brasil”, destaca a diretora do CEAP.
Virtualização dos encontros
O que as organizações entrevistadas dizem é que uma parte das ações da sua rotina passou a ser virtual e não vai mais deixar de ser por funções logísticas, de economia, de viabilidade, aponta Guilherme. “O que eles estão dizendo na série Travessia Covid é que estão fazendo muitas reuniões e muitas atividades de base pelo meio virtual. Isso eu vi com reuniões com as comunidades, centenas de pessoas, mesmo comunidades pobres e lugares longes, deram jeito de arrumar a conexão com a internet.”
Na perspectiva de pessoa envolvida e realizador, ele identifica uma certa adaptação das pessoas. “Um dos temas dos documentários é o estresse causado na vida, a possibilidade de um lado, mas o não limite do outro, todos nós vivemos isso no ano passado, muitas horas na frente de um lap top e tal. Então o que eu tô percebendo, pelo menos o que eu vejo perto de mim é que a gente foi adaptando, criando rotinas um pouco mais saudáveis, isso é uma coisa importante.”
Sociedade hipermidiatizada
A partir da temática, Guilherme propõe uma reflexão sobre a evolução da produção audiovisual, desde o cinema e a televisão, passando pelos vídeos, links e transmissões ao vivo. Radicalizada pela transformação digital o processo de massificação da comunicação trouxe um “contexto de imersão de uma sociedade hipermidiatizada, superpovoada de imagens, com uma produção simbólica muito intensa”. O que não quer dizer que as pessoas estejam melhor informadas.
“Temos que ser crítico com relação a isso, muitas vezes isso representou desinformação”, afirma. A exemplo, traz a questão das fake news, da pós-verdade, “porque a gente deixa de ter referência no mundo real, não precisa mais ter prova, basta ter imagem, o produto, e todo mundo pode veicular o material. Então esse é um caldo de confusão que a gente está imerso”. Na sua avaliação, o campo da disputa e da comunicação digital tem sido da direita. “O avanço do fascismo, movimentos supracionistas, o golpe no Brasil, isso se deu através do uso das redes sociais, muito mais que a resistência democrática.”
Travessia na pandemia
A incerteza marcou profundamente as falas dos entrevistados e das entrevistadas, mas também da coordenação e os pesquisadores e pesquisadoras, relata Paulo. “Não no sentido de que não subsistam posicionamentos ou possibilidades, mas no sentido da dificuldade de perceber garantias. A imprecisão, a indeterminação, associadas à percepção de ampla interconexão e complexidade, davam aos/às entrevistados/as uma percepção de que a consolidação de posicionamentos sobre o que ocorre, seja em termos de realização, de atualização ou até de virtualização, indicava mais para possibilidades, do que para definições”, aponta.
No final do trabalho, segundo o coordenador da pesquisa, ficou considerado que “a travessia é a epistemologia que guia a quem tem poucas certezas, quiçá muito poucas; ainda que quem se ponha em travessia, sempre anseia uma nova margem, que, certamente, será muito outra daquela que for esperada e até anelada como desejo de chegada. Não há chegada para quem está em travessia, há nada mais do que uma margem a mais na qual se pode ancorar para descansar o pensamento e as lutas, por algum tempo. A pandemia é uma escola de travessia, pois requer, como a vida, nada mais do que coragem, paciência e alegria”.
Repercussão
O estudo teve repercussão significativa, afirma Elenice, por se tratar de um dos primeiros estudos a analisar os impactos da pandemia na ação dos movimentos sociais. “Desde o processo analítico, antes do lançamento, o estudo envolveu estudiosos interessados na temática, como Oscar Jara, do Conselho de Educação Popular da América Latina e do Caribe (CEAAL), da Costa Rica, e Boaventura de Sousa Santos, do Centro de Estudos Sociais de Coimbra (CES), de Portugal, ambos estudiosos dos movimentos sociais, que deram contribuições importantes no seminário de lançamento e atividades posteriores.
Inúmeras atividades com os movimentos sociais foram realizadas para discutir o tema, visto que a pandemia se intensificou e essas problematizações instigaram debates sobre perspectivas de ações dos movimentos. “Recebemos também muitos retornos positivos com avaliação dos materiais, especialmente no uso de atividades formativas virtuais que passaram a se intensificar no último semestre”, conta.
Passado quase um ano das entrevistas, realizadas em julho de 2020, a avaliação do CEAP é que as reflexões seguem atuais. “Até porque a pandemia da covid-9 segue de forma desenfreada no Brasil e as ações político-organizativas e formativas dos movimentos ainda são tentativas adaptativas e de reinvenção metodológica ao contexto. Mas, muitas provocações do estudo, desafiaram organizações a pensar processos metodológicos organizativos e formativos no ambiente virtual, já que a presencialidade tão cara e importante para a ação social, ainda é algo distante”, afirma Elenice.
A diretora do CEAP afirma que o estudo provocou uma reinvenção pedagógica e metodológica para as formações. A avaliação é que o virtual veio para ficar, porém não substituirá os momentos de trocas de saberes de interação e de afetos da presencialidade. E que o acesso à tecnologia deve ser considerado um direito de todos. “As experiências formativas que temos desenvolvido mostram o limite de acesso, pelo custo e pela disponibilidade de redes e equipamentos. Portanto enfrentar essa pauta como uma reivindicação do conjunto dos movimentos sociais é urgente e necessária.”
Nesse sentido se insere o “Sistematização de Práticas Metodológicas de Formação na Educação Popular em Ambiente Virtual/Digital no contexto da Covid-19”, desenvolvido pela entidade, que busca analisar as metodologias utilizadas na pandemia em 10 organizações sociais populares. “Nos desafiamos também a continuar e ampliar o estudo do impacto da covid-19, agora especificamente, no controle social do SUS, analisando como a ação dos conselhos estaduais de saúde foram impactados neste último ano”, afirma.
Documentário totalmente online
Guilherme Castro é autor de diversos documentários abordando temáticas sociais, entre eles “SUS - em defesa da vida” e Golpe. Alguns de seus filmes estão disponíveis no site: www.guilhermecastrofilmes.org.
Para ele, o insubstituível na realização de um documentário é a presença da gravação, porém a produção da websérie com entrevistas de forma online foi uma experiência enriquecedora. “Tanto tempo entrevistando com uma câmera num set, num ambiente, para mim é totalmente diferente. Mas ao mesmo tempo isso não quer dizer que fale melhor ou pior de questões sociais. A questão é se tu consegue apreender bem, compreender bem e transformar em uma boa narrativa a questão social que tu tá tratando”, aponta.
“Audiovisual sempre é isso, como resolver, como trabalhar com as circunstâncias, com a limitação material, então do ponto de vista do momento, da situação pandêmica, dentro desse contexto 2020 e 2021, não falta nada para esses”, avalia. “E agora nós estamos finalizando uma outra série, aproveitando também essa linguagem. Esta, também de webdocumentários, fala do relatório de direitos humanos no Brasil, também uma pesquisa do CEAP, e nessa a gente aprofundou a questão de como fazer um webdocumentário, como produzir através da internet.”
Tempos desafiadores para a luta
“São tempos difíceis. A luta das ruas é necessária, e hoje cada vez mais defendida por vários movimentos nacionais e internacionais. É o caso, por exemplo, do povo colombiano que faz a luta contra o neoliberalismo nas ruas”, afirma Elenice Pastore. Porém avalia que a rua ainda é espaço de aglomeração e risco de contaminação.
Ela reafirma que os movimentos sociais entendem que somente o distanciamento social e a vacina são formas de controle da pandemia. Diante disso, inúmeras iniciativas de mobilização virtual foram desenvolvidas neste período, e muitas delas exitosas. "Ações de categorias e grupos específicos, ações locais de combate a pandemia e de solidariedade no combate a fome, são visíveis. Claro que, não se igualam a ações articuladas de mobilização de rua, tão fortes e representativas do conjunto das organizações sociais populares brasileiras”, completa a dirigente.
“Um dos desafios por exemplo que um dirigente do MST coloca nessa entrevista, nesse outro trabalho que estou fazendo agora, é justamente esse, que eles são craques em rua, mas agora em 2021 eles têm que definitivamente usar o que aprenderam trabalhando em rede social, trabalhando comunicação virtual. E as ruas eu fico na torcida, tô louco pra sair pras ruas também, aí acho que é vacina né”, conclui Guilherme Castro.
Para conferir o estudo e assistir à websérie, acesse:
https://estudocovid.ceap-rs.org.br/
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Edição: Katia Marko