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Chumbo e Pátria: rebelado, povo colombiano sofre violações de direitos humanos

O Brasil de Fato RS e a Rede Soberania realizaram uma live ouvindo quem está acompanhando de perto a situação no país

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Colômbia vive onde de protestos desde 28 de abril e manifestantes são violentamente reprimidos pela polícia - Juan Barreto/AFP

A Colômbia vem passando, desde o dia 28 de abril, por intensas manifestações, uma onda de protestos em massa contra o governo e contra os excessos cometidos pela polícia. As jornadas de luta dos trabalhadores na Colômbia iniciaram quando o presidente, Iván Duque, enviou um projeto tributário ao Congresso, que pretendia aumentar 19% dos impostos sobre serviços públicos, como gás e energia, atingindo sobretudo os mais pobres.

Desde que os protestos começaram, relatos de repressão policial, violência sexual, tortura e desaparecimentos são noticiados na Colômbia. O país já contabiliza 47 assassinatos, durante a greve nacional, sendo 36 deles no departamento de Valle del Cauca. 

Retirada da pauta, a reforma tributária foi o estopim de uma situação que se agrava ao longo do tempo. Conforme apontou o Coletivo de Colombianos em Porto Alegre, em artigo recentemente publicado, o inconformismo da população não se limita apenas à reforma tributária, mas também a outros fatores que oprimem continuamente a população colombiana. Desde os anos 1990 governada pela direita neoliberal, o país convive com o precário acesso à saúde e aposentadoria dignas e a falta de acesso à educação universitária pública e de qualidade.

Na terra do escritor Gabriel García Marquez, conforme afirma Luz Angela Rojas, comunicadora popular e militante do Congreso de los Pueblos (Colômbia), nunca houve  democracia, situação que leva ao escalamento da violência no país. Ela destaca que desde o acordo de Paz entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o governo colombiano mais de mil líderes sociais foram mortos


Live debateu situação na Colômbia / Reprodução

Na live do Brasil de Fato RS e da Rede Soberania, conduzida por Katia Marko e Matheus Quevedo, que debateu os protestos na Colômbia, a comunicadora iniciou sua fala citando trecho do poema Los Heraldos Negros, do escritor peruano Cesar Vallejo.

“Hay golpes en la vida, tan fuertes
¡Yo no sé!
Golpes como del odio de Dios; como si ante ellos
La resaca de todo lo sufrido
Se empozara en el alma
¡Yo no sé!

Son pocos; pero son
Abren zanjas oscuras
En el rostro más fiero y en el lomo más fuerte
Serán tal vez los potros de bárbaros Atilas
O los heraldos negros que nos manda la Muerte”. 

Para Luz Angela o que está acontecendo agora é a dor da morte, um sentimento de barbárie e de muita dor. Acontecimentos que, segundo reforça a comunicadora, vêm de algum tempo, agora agravados pelos efeitos da pandemia. 

Para entender o presente, um olhar sobre o passado recente 

Doutor em sociologia e antropologia e professor da Universidad de Nariño y Universidad Cooperativa de Colômbia, Mauricio Chamorro Rosero abriu a live destacando que o que ocorre na Colômbia não é um feito isolado, mas está diretamente relacionado com outros acontecimentos no continente. Como por exemplo no Chile, que acabou com uma nova constituição, assim como o que passou na Bolívia, após o golpe de estado dado em Evo Morales, e que agora se recupera, com a nova eleição. “São acontecimentos que estão relacionados no continente e a Colômbia não é exceção”. 

De acordo com ele, para entender o que vem passando no país é preciso voltar no tempo para se ter uma perspectiva histórica sobre o assunto. “Os ânimos na Colômbia e esse protesto social começam a se manifestar justamente após o processo de paz entre o governo do país e as Farc. A partir disso, os grandes meios de comunicação começaram a falar de polarização no país, que ele estava dividido em dois, e apresentaram como se fosse algo negativo”, aponta. 

Na avaliação de Maurício o que os meios de comunicação chamam de polarização é justamente a possibilidade de manifestar posturas distintas abertamente no cenário político, o que antes não se podia fazer. “A partir do acordo de paz, os movimentos sociais que têm uma larga trajetória no país (movimentos indígenas e campesinos, por exemplo), começam emergir, configurando-se em novos movimentos sociais ou a se recompor aqueles que haviam de alguma forma perdido espaço”, sinaliza. 

Conforme expõe o professor, em 2019, já no governo de Duque, começam as manifestações, onde o movimento estudantil tem um papel muito importante. Se vê um movimento social quase sem precedentes, que é cortado pela pandemia.

“Os movimentos sociais e os protestos diminuem na Colômbia somente e exclusivamente porque aparece a pandemia. Este momento e esta realidade o governo não consegue ler. Um governo totalmente desconectado das bases sociais não pode entender isso, e havia pensado que os protestos sociais haviam terminado. E justamente por essa razão, propõe, em um contexto como o da pandemia, em que a Colômbia foi muito impactada, essa reforma”, ressalta, pontuando entre os impactos o aumento do índice da pobreza, a informalidade laboral e uma intensa crise econômica, onde a proposta de uma renda básica, como adotada em outros países, foi rechaçada.  

“O justo protesto social que estamos vivendo está acompanhado de outras demandas. Por exemplo, da não apresentação de uma reforma na saúde, de uma não reforma da pensão, de uma exigência da renda básica, inclusive uma lei anticorrupção”, exemplifica. 

Por fim, sobre o uso da força policial, ele diz que o Estado colombiano esqueceu que o uso das forças é a última alternativa, e está utilizando como a primeira. “Um dos pontos que mais me preocupa é que a maior parte dos policiais que estão atuando nas ruas estão fazendo no anonimato, com uniformes policiais, mas sem identificação.”

Luz Angela acrescenta que na última década começa a desenvolver outro tipo de organização que vai ter uma independência e uma organicidade, mais comunitária e que vai reconstruir o tecido social depois do impacto que teve o paramilitarismo, conhecido no Brasil como milícia. “A partir de 2010 vai se desenvolver um tipo de organização mais territorial e mais comunitária, mas também vai se aprofundar todas as características do neoliberalismo gerando indignação.”

Ela pontua que em 2019 foi possível localizar algumas reivindicações em relação aos direitos humanos. “Não podemos esquecer que teve um processo de paz com as Farc, um intento de diálogo com o exército de libertação nacional, e tudo isso não foi cumprido por parte do governo. Junto com essa situação aprofundou todas essas problemáticas nos territórios, começando com as disputas pelos territórios entre os paramilitares, que têm relação direta com o tráfico e narcotráfico, as comunidades que queriam se desenvolver em seus territórios e também o Estado tentando ter uma soberania inexistente, e por isso faz o uso da força. Um uso histórico que se expressa em mais de mil líderes sociais, homens e mulheres que foram assassinados em menos de três anos”, aponta. 

Além das questões apontadas por Maurício, Luz Angela acrescenta um outro fator que acontece no país, a volta do uso do uso de glifosato. A aplicação do agrotóxico impacta a economia dos camponeses, assim como o desenvolvimento ambiental. 

Junto a tudo isso, complementa a comunicadora, ainda se soma o uso da força policial. “Na pandemia, a forma que o Estado faz o controle foi a partir do uso da força policial, que controla quem saía ou não. Nesse processo tinha muito abuso policial, toque de recolher. Ano passado um cara que não cumpriu o toque de recolher foi morto a golpes pela polícia. Isso foi gerando indignação nas cidades. Quem leva 14 dias na rua, 14 dias resistindo, não são só os movimentos sociais, é o povo não organizado que está nas ruas, indignado, que está com essa alegre rebeldia.”

Segundo ela, o governo tem uma incapacidade de aceitar o escalonamento do conflito e uma atitude repressiva, culpabilizando a sociedade civil de que é ela que está armada e atirando na população. “Não é a sociedade civil. São os paramilitares que normalmente funcionam deste jeito. E nós, como comunidades, que estamos nos territórios, sabemos que eles se apresentam 'como sociedade civil' e que agora são os que estão atirando nas pessoas.”

Luz Angela destaca que é preciso, além da denúncia da situação dos direitos humanos, construir uma articulação das lutas no continente. “É essa articulação que vai conseguir algumas transformações”, avalia.

Situação em Cali

Por sua vez, Carlos Oviedo, doutor em Administração pela UFRGS e Membro do Coletivo de Colombianos em Porto Alegre, que está no Rio Grande do Sul desde 2015, falou sobre a situação da cidade de Cali, de onde ele veio. Conforme aponta, Cali tem sido a cidade na qual os protestos são mais fortes e, ao mesmo tempo, a cidade na qual a repressão é mais violenta por parte da polícia colombiana. 

“Cali é a terceira cidade mais importante do país. É uma cidade que tem uma mistura cultural muito interessante, e uma cidade que tem um histórico de mobilização e de protestos. Ela foi a primeira cidade a declarar independência perante o império espanhol e a partir daí tem tido protagonismo nas lutas e nas organizações dos movimentos sociais. A partir da década de 90, com a implementação de reformas neoliberais no país, Cali tem sido uma cidade que está em um processo de desindustrialização”, aponta. 

Segundo expõe Carlos, a situação de pobreza em Cali chegou a 36,6% em 2020 e o desemprego a 13,8%. “Perante os protestos muitos analistas estão dizendo que Cali era uma bomba que explodiu, uma espécie de panela de pressão. Cali tem sofrido um processo social muito profundo e complicado. Essa panela explodiu, e segundo muitos analistas, principalmente os jovens foram os que sofreram de maneira mais intensa os impacto da pandemia e da situação social histórica.”

De acordo com ele, esses jovens são descendentes de famílias camponesas, migrantes que chegaram de várias regiões o país e que hoje em dia não têm muitas possibilidades de saúde e educação, e sofrem com o desemprego e o narcotráfico. Segundo Carlos, a oferta das instituições governamentais e não governamentais nos últimos 30 anos êtm sido insuficientes e fracas.

“Muitos jovens têm se mobilizado, estão na primeira linha de frente, foram eles os primeiros a serem atingidos pela violência da policia. Cali é a cidade com o maior número de mortos, especialmente jovens, por parte da polícia”, afirma. 

Neste contexto as práticas de solidariedade dão respaldo aos manifestantes. De acordo com Julián Hoyos, do Colectivo de Ingenieros, em reposta à militarização e a agressão policial, a comunidade se viu obrigada a responder. Essa resposta nos bairros foi através da montagem de “hospitais de Campanha”, hospitais do povo, uma tenda para atender os feridos. Segundo ele, paramédicos, medicas e enfermeiras chegaram solidariamente.

“Depois do terceiro e quarto dia de greve nacional e graças à solidariedade das pessoas, foi possível montar esse hospital de campanha. A partir deste, foram se replicando diferentes lugares de atenção médica pela cidade. Em cada ponto de resistência, que chegaram a 20 pontos diferentes em toda a cidade, se encontravam dois, três, quatro lugares de missão médica, que basicamente atendiam os feridos, e os de alta gravidade eram encaminhados aos hospitais de alto nível da cidade de Cali”. Julian reforça que isso aconteceu de forma espontânea. 

Bloqueio de informação

Ao final da live, os participantes falaram que uma forma de ajudar o povo em luta na Colômbia é continuar dando visibilidade à violação de direitos humanos. "Os grandes meios de comunicação oficiais do país estão invisibilizando o que está acontecendo no país. Em outros casos também minimizando as consequências, não falam das pessoas que estão morrendo. As redes sociais vêm desenvolvendo um papel importante, contudo nos últimos dias redes como Facebook e Instagram estão censurando as transmissões feitas pelas pessoas”, destaca Maurício, acrescentando ser preciso também estratégia, pressão social e ações políticas .

Para Luz Angela, a primeira coisa é saber que a Colômbia ainda está em conflito. Ela aponta que o país saiu da agenda do debate mundial após ser assinado o acordo de paz. “Isso não foi a realidade que todo mundo esperava e temos que colocar a Colômbia, assim como outros países de nossa América, no debate público. Temos que ser mais criativos neste momento e dar aqueles pulos nas reivindicações mais políticas e internacionais, ter uma mídia comunitária a nível internacional. A denúncia internacional é importante, assim como criação de missões internacionais”, finaliza. 

Julian reforça a questão da visibilização. “Claramente, teve uma estratégia para cercar e dificultar a comunicação pelo meio virtual. Precisamos romper o bloqueio comunicativo. Temos que fomentar essa rede de solidariedade. Esses laços é que vão nos fazer mais fortes e dar a volta nisso. Os jovens desse país, os jovens de Cali querem mudar isso já, não aguentam mais a pobreza, a desigualdade. Uma América Latina unida é que nos vai tirar dessa situação.” 

Carlos diz ser preciso divulgar o que a mídia não está divulgando. Segundo ele, a solicitação dos jovens que estão na primeira linha é que parem de os chamar de vândalos. “Esses jovens continuam em uma situação muito complicada porque suas alternativas de vida são muito reduzidas. Eles têm poucas alternativas, uma delas é se integrar com as facções de traficantes e a outra opção é ir lá na luta. Isso leva a pensar em condições econômicas muito concreta desses jovens, esse é o problema que está atingindo não só os jovens da Colômbia, mas a população geral do nosso continente, e de muitos países no mundo. Isso que está acontecendo na Colômbia é a expressão de uma crise que vem acontecendo há muito tempo.”

Assista à live "Chumbo e Pátria: Por que o povo da Colômbia está rebelado?"


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Edição: Marcelo Ferreira