Rio Grande do Sul

Literatura

"A linha que separa o autobiográfico do ficcional é muito tênue", afirma Falero

O escritor José Falero, nascido e criado em uma das periferias de Porto Alegre, conta um pouco da sua vida e obra

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O escritor gaúcho José Falero foi o entrevistado do programa Arte, Ciência e Ética num Brasil de Fato desta quinta-feira, conduzido pela jornalista Katia Marko e o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo - Reprodução

"A guerra tinha ficado fora de moda. No entanto, a pergunta era: Até quando? A história sempre se repete: tréguas vêm, tréguas vão (...) Não é certo tu querer começar toda uma puta duma guerra que vai foder todo mundo só para poder tentar se vingar e se sentir um pouco melhor, até porque, na real, isso nem ia trazer teu irmão de volta, de qualquer jeito. Vai ser só uma porra duma bola de neve.” O trecho acima é do livro "Os Supridores", de José Falero. 

O dia 6 de maio de 2021 foi marcado por mais uma chacina em uma periferia brasileira. Uma operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro terminou com 25 mortos (sendo um policial) na comunidade do Jacarezinho, na zona Norte da capital carioca. Tida como a segunda maior chacina da história do estado, ocorreu mesmo com resolução do STF que suspende operações policiais em favelas durante a pandemia.

Foi trazendo esse episódio à tona que o programa Arte, Ciência e Ética num Brasil de Fato desta quinta-feira, conduzido pela jornalista Katia Marko e o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, iniciou a conversa com o escritor gaúcho José Falero. Nascido no bairro Lomba do Pinheiro, uma das periferias da capital gaúcha, localizada na zona Leste da cidade, ele é um dos expoentes atuais da literatura brasileira feita por escritores negros.   

“É uma pena ter que começar falando desse tipo de coisa, esse tipo de tragédia que além de ser infeliz por si mesma, também não é novidade, é uma coisa que acontece desde sempre neste país”, afirma Falero sobre a chacina do Rio de Janeiro. 

Segundo avalia o escritor, isso é um problema construído de diversas formas, inclusive na indústria da arte, quando pessoas da periferia, da “quebrada”, pessoas pretas, são representadas sem humanidade nenhuma. “Nem na literatura, novelas e filmes essas pessoas ganham direito de serem representadas como seres humanos com angústias, com anseios, com esperanças. Não é uma pessoa do ponto de vista do Estado, pode parecer absurdo, mas não tem direito a ser tratado com dignidade, não tem direito a ter sua vida respeitada”, critica.

Durante o diálogo, Falero pontuou as diferenças entre a periferia e a população classe média e alta da cidade, do consumismo, injustiça social, dignidade, distribuição, e que se vê descortinada em sua vida e suas obras. 

“Quando eu trabalhava na obra e descobriram que eu queria ser escritor, que eu escrevia e queria publicar, virei motivo de chacota. Na época eu não tinha essa robustez emocional que tenho hoje em dia, e foi foda para lidar com aquilo, eu chorava, chegava em casa e ficava triste. Não dá para culpar essas pessoas. O que eu quero refletir aqui é essa estrutura de poder injusta, que atua no subjetivo das pessoas, no imaginário, pras pessoas pensarem que isso não é para ti." 

De acordo com o escritor, a explicação disso vem de um círculo que parece não poder ser rompido e da ausência da representatividade. “A explicação é que meu pai foi porteiro, minha mãe foi faxineira, minhas tias são faxineiras, meus vizinhos trabalham na obra, são porteiros. Naquela época não conhecia um único escritor, não conhecia uma única pessoa que trabalhasse com arte. Então tu imagina o quanto isso influencia no imaginário das pessoas, de achar que as coisas não são para ti, de achar que teu lugar é esse lugar de subalternidade, desse lugar de subemprego, de emprego precarizado. Porque tudo que tu olha ao redor, todas as pessoas que têm uma vida diferente, os atores, os escritores, são diferentes de ti, vêm de outro lugar da cidade. Geralmente a pessoa é branca, na maioria das vezes homem, na maioria das vezes hetero.” 

Ele conta que conhece pessoas que começaram dar passos na literatura, escrevendo suas histórias, por ele ter conseguido publicar, por ser uma figura próxima, parecida. “Imagina quando isso se popularizar mais, quanto tu tiver diversos escritores da quebrada publicando e tendo suas obras reconhecidas, tu imagina a transformação que isso vai trazer. 


"Eu comecei a pensar nisso, o quanto as linguagens que são utilizadas na literatura não afugentam as pessoas" / Reprodução Todavia

Começo de tudo 

De servente de pedreiro, porteiro, se fez escritor, e apesar do reconhecimento que sua literatura venha tendo, afirma que sua vida é perrengue desde sempre e não há perspectiva de mudança. Falero conta que a leitura entrou tardiamente na sua vida, apesar dela estar presente intrinsecamente no gosto que tem por narrativas, filmes, história em quadrinhos e até mesmo jogos de videogame. “Gostava de prestar atenção de como as histórias são contadas.”

O hábito e o gosto pelas letras de forma concreta veio através de sua irmã, Caroline Falero, diretora, atriz, educadora e artesã. “A escrita está muito associada à leitura, ao hábito de ler, e eu comecei a ler muito tarde, com 20, 21 anos. Minha irmã que me convenceu a ler. Não acreditava que pudesse ser legal.”  

Foi com a provocação da irmã, desafiando a ler um livro inteiro que fez com que nascesse o Falero leitor. O escritor conta que o primeiro livro lido na íntegra foi o Besta-Fera, de Jack Woods, que pegou emprestado. Desde então, nunca mais parou de ler. “Não foi só o livro, fui me encantando com coisas que eu percebi que eram daquele suporte, daquela plataforma. Sensações que não teria como experimentar vendo um filme, jogando videogame, era uma coisa do livro. E eu fiquei encantado com o que aquilo me provocava.” 
 
E por não parar mais de ler, logo começou a escrever suas próprias histórias. Outro empurrão para a escrita tem ligação com as histórias em quadrinhos, as quais desenhava. “Eu não conseguia desenhar as coisas que eu queria, às vezes. Eu aprendi a desenhar muitas coisas, mas de repente eu queria fazer uma história que se passasse na cidade. Eu não sabia desenhar um monte de prédios, carro estacionado, o ambiente urbano. E toda vez que tu vai contar uma nova história no desenho é uma curva de aprendizado enorme, e na escrita eu me sentia mais livre, concebia as histórias e conseguia dar formas a elas, uma curva de aprendizado um pouco menor.” 

Construindo a sua própria didática, indo atrás das ferramentas para desenvolver a escrita, sem a figura do mestre para apontar os caminhos, acabou se apaixonando pela gramática e tudo relacionado com a produção de textos.

Dos livros lidos na primeira fase do gosto pela leitura, Falero cita Edgar Wallace e  Agatha Christie. “Quase tudo que parava na minha mão era estrangeiro, e era clássico. O primeiro livro nacional que li era um clássico também, do Machado de Assis, Quincas Borba e Memórias Póstumas. Me apaixonei por Machado, é um dos autores que eu fui atrás quando pude trabalhar e comprar meus próprios livros.” O escritor cita também o escritor japonês Eiji Yoshikawa, autor do romance Musashi. Segundo aponta Falero, Machado de Assis e o escritor japonês influenciaram sua literatura. “O fato de eu ter experimentado e gostado dos dois foi importante para mim porque me fez entender que não existe caminho certo, caminho errado, existem possibilidades.” 

Cursos e aprendizado 

Apesar da evasão escolar pontua que nunca parou de estudar. “Sei da importância da incursão escolar, tanto é que estou tentando recuperar o tempo perdido. Sou estudante de EJA, devo me formar esse semestre no ensino médio. Estou muito feliz de conseguir, faz muito tempo que tento. Mas a maior parte das coisas que aprendi, foi sozinho. Eu comprava os livros para aprender as coisas quando comecei a trabalhar, e antes disso lia os livros didáticos que estivessem disponíveis. Curso nunca fiz, até tive vontade, mas não pude fazer.”

O aprendizado e letramento que tem, vem da vivência com os camaradas, da música (Rap, samba), das coisas que gosta. “Eu tento extrair conhecimento das coisas, pensar a mecânica das coisas, como é que elas funcionam. E muitas dessas coisas foram aproveitadas em tudo que escrevo, inclusive Supridores.”

Ele conta que o livro Supridores estava pronto antes do livro de contos, Vila Sapo, publicado em 2019. “Fazia alguns anos que eu tentava publicar (Supridores). Vila Sapo levei alguns meses. Vila Sapo é resultado de uma experimentação. Durante muito tempo me deixei levar por um pensamento preconceituoso que muita gente tem até hoje, que é de tu pensar que existe o jeito certo de escrever, e o jeito errado de escrever. Eu pensava assim. E durante muito tempo as coisas que eu escrevia era levando em conta a gramática normativa, não havia nada no meu texto da oralidade.” 

Foi com uma conversa com o linguista bahiano Marcos Oliveira que essa percepção mudou. “Foi como tirar uma venda dos meus olhos. Eu comecei a perceber a linguagem como uma ferramenta de dominação. Eu comecei a perceber que não é à toa que essa norma dita culta, que diz o que é correto, não vem do nada. E comecei a perceber que o que dizem que é errado, que falar assim é errado, que escrever assim é errado, é de uma população específica, que é tido como errado. E comecei a perceber que era violento comigo mesmo, inclusive o jeito que escrevia. E decidi experimentar trazer o modo como eu me expresso, como meus vizinhos se expressam, minha mãe, minha família, para as coisas que eu escrevo, e o resultado dessa experimentação é o Vila Sapo.” 

O escritor conta que o retorno dessa experimentação foi positiva. Segundo recorda Falero, as pessoas comentaram que não tinham o hábito de ler, mas que lendo os seus textos não conseguiram parar. “Eu comecei a pensar nisso, o quanto as linguagens que são utilizadas na literatura não afugentam as pessoas. A gente vive em um país que toda vez que vão fazer as estatísticas, se chega a conclusão de que se lê pouco, de que poucas pessoas leem, e os que leem não leem muito. Fico pensando até que ponto o fato da linguagem muitas vezes ser afastada da vivência dessas pessoas contribui para isso." 


"Temos um sistema que é especialista em invisibilizar e deslegitimar o conhecimento de populações específicas, pessoas negras, saberes tradicionais, saberes que são produzidos na quebrada" / Reprodução Livraria Bamboletras

De Brecht até Karl Marx na literatura periférica 

O contato de Falero com Karl Marx se deu por conta dos livros de Harry Potter. O escritor, fã da histórias do “bruxinho”, conta que precisava presentear sua irmã, e por não ter como comprar livros, foi até um sebo e trocou a coleção do Potter por uma série de livros do Marx. “Foi um bom negócio, porque eu tinha interesse, minha irmã tinha, e foi bom para o cara do sebo, porque é mais fácil vender o Harry Potter do que o Marx.” (risos)

O escritor conta que o contado com pensamento marxista veio antes desse episódio, quando a irmã o levou para o teatro para compor a trilha do espetáculo de Bertold Brecht, chamado A Decisão. 

“Tem gente que tem falado que o livro Supridores é uma espécie de tradução do marxismo. Eu não sei até que ponto isso seja verdade, porque tradução mesmo primeiro eu tenho que entender aquilo que quero traduzir perfeitamente para depois eu pensar uma linguagem mais adequada para a qual eu quero traduzir. Mas não é o caso, porque eu não entendi esse pensamento marxista da forma formal, dessa maneira acadêmica. Eu fiquei surpreso que tem gente da sociologia, gente que tem conhecimento profundo sobre essas coisas, e elas têm dito que sim, que o livro traduz muito o conceito.” 

Falero conta que muito do que está em Os Supridores vem do contato com o pensamento marxista, mas também das ideias que já se tem na vila, por exemplo. “As pessoas que estão afastadas da periferia, que não convivem com as pessoas da periferia, que enxergam a periferia de longe, supõe coisas das pessoas da periferia (...) são essas pessoas que muitas vezes têm oportunidade de vir falar sobre a periferia, sem entender a periferia. Essas pessoas pensam muitas vezes que as pessoas na quebrada não têm consciência das coisas. A galera sabe da exploração, sabe tudo isso, mas a gente sabe da nossa maneira.” 

“O problema mano é que entre o certo e a lei tem um abismo. Pela lei existe o tal do salário mínimo. E tá aí como nasce um grande filho da puta: tu vai pagar um salário mínimo para cada padeiro, mas quem foi que disse que esse salário mínimo é o justo, levando em conta o quanto trabalho dos padeiros tem influencia no dinheiro que está entrando? Quem é que calcula essa porra? Qualquer idiota logo percebe que tem coisa errada ai. O salário é sempre muito, muito, muito abaixo do que vale o trabalho de fato. E tu, como fica nessa história” , trecho do livro Os Supridores.

Conforme volta a reforçar o escritor, os moradores da periferia têm consciência de muitas coisas, o problema, aponta Falero, “é que temos um sistema que é especialista em invisibilizar e deslegitimar o conhecimento de populações específicas, pessoas negras, saberes tradicionais, saberes que são produzidos na quebrada (...)Tem um conhecimento ai, eles sabem como são vistos pela polícia, pelas pessoas. Eles se reconhecem como pessoas estigmatizadas nesse contexto. Ninguém pensa sobre isso, ninguém legitima o conhecimento dessas pessoas, o conhecimento que vem da vivência, que vem de tu ter sentido na pele”.   

A violência institucionalizada também foi sentida pelo escritor. “Eu vi meus parentes apanhar da polícia, eu vi meus vizinhos apanhar da polícia. Eu já apanhei da polícia.” 

Ao falar do seu processo e dos personagens em sua obra, afirma que a linha que separa o autobiográfico do ficcional é muito tênue. “Até quando tu vai contar uma história para alguém tem um pouco de ficção. Tem coisas que tu não quer contar, tem coisas que tu acha melhor não contar, tem coisas que tu minimiza, tem coisas que tu dá uma valorizada, tem coisas que tu não lembra como foi e tu preenche como tu imagina que tenha sido.” O escritor disse que o seu processo é um híbrido da vivência com a imaginação.  

Falero conta que vai lançar até o final do ano um livro de crônicas, a partir da sua coluna semana na Revista Parêntese.

A influência das mulheres no caminho 

Durante a entrevista Falero citou várias vezes a irmã e a namorada, indagado se as mulheres influenciaram o caminho do escritor, afirmou que totalmente. "Eu sempre me senti deslocado, no ambiente da masculinidade. Não estou dizendo que estou isento dessa masculinidade tóxica que é tão debatida, fui forjado ali também, sou influenciado por isso em alguma medida, mas sempre me senti deslocado.” 

“Minha mãe me ajudou muito a me construir, minha irmã me ajudou muito a me construir, minhas tias, mas a minha namorada, quando eu conheci ela foi um suporte emocional, intelectual, fez eu acreditar que meu pensamento tinha valor, e comecei a acreditar que eu poderia publicar um livro. As mulheres têm uma participação fundamental na minha construção não só como escritor, mas como pessoa também.” 

Por fim o escritor responde a pergunta, sobre a importância de Arte, Ciência e Ética para um Brasil de Fato. “É importantíssimo. A ciência tão atacada neste contexto político horroroso, não é à toa que ela é atacada, não é à toa que existe esse traço nos governos fascistas de atacar o conhecimento, a ciência, queimar livro, atacar a arte. Acho que a arte acessa coisas que nem mesmo a ciência consegue acessar em termos de autoconhecimento, de conhecer não só a si mesmo, mas conhecer a sociedade. A arte e a ciência são a base para uma sociedade minimamente decente”, finaliza. 

Confira a íntegra da entrevista

Recomendação do Brasil de Fato RS:

Leia escritoras e escritores negros e negras, da quebrada, do asfalto, estrangeiros e brasileiros, especialmente brasileiros e brasileiras. Leia Falero, Itamar, Jeferson Tenório. Leia Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Lilian Rocha, Cidinha da Silva, Fernanda Bastos e tantas outras e outros.


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Edição: Katia Marko