Presidente da Fundação Piratini (TVE e FM Cultura) no governo de Olívio Dutra e diretor da Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), José Roberto Garcez conta em entrevista ao Brasil de Fato RS sua experiência na gestão de emissoras públicas. O jornalista fala sobre o andamento dos processos de privatização e da tentativa de destruição destas emissoras no país.
Segundo ele, “já durante a campanha eleitoral, Jair Bolsonaro falava em extinguir a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e passar seus canais de rádio e televisão para a iniciativa privada. Porém, depois de assumir, foi aconselhado por muitos assessores a ponderar seu desejo. Além do potencial propagandístico dos veículos da EBC (rádios, televisões e agências de notícias em texto e áudio), era preciso encontrar quem produziria os conteúdos de áudio e televisão para difusão das informações governamentais”. E embora conste do programa nacional de desestatização, a privatização da EBC continua em suspenso.
José Roberto Garcez tem 42 anos de jornalismo. Foi secretário geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS, diretor da Federação Nacional dos Jornalistas e representante da Fenaj na Confederação Nacional dos Trabalhadores em Comunicação e Publicidade (Contcop). Secretário de Comunicação no governo de Raul Pont, na Prefeitura de Porto Alegre entre 1997 e 1999. Presidente da Fundação Cultural Piratini no governo de Olívio Dutra, entre 1999 e 2002. Diretor da Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec) entre 1999 e 2002. Diretor de Jornalismo da Radiobrás entre 2002 e 2005. Presidente da Radiobrás entre 2005 e 2007. Diretor da EBC entre 2007 e 2010. Gerente Executivo de Rede e de Relações Institucionais da EBC entre 2010 e 2016, até ser demitido pelo interventor da EBC nomeado por Michel Temer.
Na direção da Abepec participou do processo de consolidação da organização das emissoras públicas de televisão brasileiras, lutando pela modificação da legislação a fim de dotá-las de autonomia e financiamento direto. Na Radiobrás atuou na luta pela organização nacional das emissoras públicas voltando a filiar a então TV Nacional de Brasília à Abepec. A emissora federal havia sido retirada da entidade durante o segundo mandato do governo FHC em represália a transmissão em rede nacional de uma entrevista com o líder do MST, João Pedro Stédile.
Como diretor da Radiobrás ajudou na elaboração dos primeiros estudos para a formação de uma nova empresa pública do governo federal. Já como presidente da Radiobrás, foi do grupo de trabalho comandado pelo ministro da Comunicação no segundo mandato do presidente Lula, Franklin Martins, destinado a preparar o projeto da Empresa Brasil de Comunicação.
Veja na entrevista de Garcez como funciona o sistema de emissoras públicas no Brasil.
Brasil de Fato RS - O que é uma emissora pública?
José Roberto Garcez - Embora não haja um consenso, a comunicação pública é definida, geralmente, como a que é feita com equidistância dos interesses governamentais e do mercado. Por ser genérica, essa definição exige algumas premissas concretas. As mais importantes são: 1) financiamento público e, se possível, universal para garantir independência editorial; 2) coordenação superior por uma estrutura com representação e controle de variados segmentos da sociedade; 3) mandato fixo para a direção executiva que é demissível apenas pelo conselho superior; 4) produção própria e independente de conteúdo que reflitam os interesses e as necessidades de todas as áreas da sociedade, especialmente com temas que não sejam veiculados pela mídia comercial, com especial atenção às minorias; 5) acessibilidade universal com programação com ênfase em questões culturais e disputa de audiência baseada na qualidade.
A comunicação pública é essencial para um verdadeiro sistema democrático. A democracia exige, obrigatoriamente, que absolutamente todos os setores da sociedade tenham direito de expressar suas opiniões por meio de veículos universais, especialmente os operados pela radiodifusão (rádio e televisão). Sem veículos de comunicação pública, apenas os interesses capitalistas estarão representados pelos aparelhos comerciais. Não é por acaso que em quase todos os países com democracia liberal os sistemas públicos de radiodifusão precedem os veículos comerciais.
Até o final do século XX em quase todos os países da Europa apenas rádios e televisões públicas tinham funcionamento autorizado. A primeira televisão do mundo foi a BBC, emissora da Grã-Bretanha que até hoje é exemplo de veículo público no mundo. É assim também na França, Alemanha, Austrália, Argentina, Nova Zelândia, Espanha, Portugal, Itália, Áustria, Suécia, Japão, Israel e até mesmo na maior nação capitalista do mundo, os Estados Unidos. Lá, funciona uma rede pública de televisão (PBS) e outra de rádio (NPR) com abrangência nacional e programação reconhecida como de grande qualidade, especialmente jornalística.
Também no Brasil a radiodifusão nasceu pública. A Rádio Sociedade, criada por Roquette Pinto, em 1922, era financiada por um grupo de pessoas que formavam uma sociedade civil, sem apoio comercial ou governamental. Com o surgimento de emissoras privadas, a rádio Sociedade foi doada ao governo federal e hoje é a Rádio MEC, pertencente à Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
BdFRS - Qual a diferença entre comunicação pública e comercial?
Garcez - Não existe uma definição legal das características e as diferenças entre os sistemas público, privado e estatal de radiodifusão. Importante destacar que apenas o sistema de radiodifusão é considerado um bem público que só pode ser operado pela União, por veículos próprios ou por concessões. A primeira referência à comunicação pública foi feita na Constituição de 1988. No curto capítulo destinado à comunicação, o artigo 223 define que o serviço de radiodifusão sonora (rádios) e de sons e imagens (televisões) deve observar a complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal.
Nessa definição reside uma dificuldade: o Brasil é um dos poucos (talvez o único) onde há uma diferenciação entre sistema público e sistema estatal. Não há outro setor ou atividade com essa especificidade. A educação é um sistema público. A saúde é um sistema público. Até mesmo setores operados pela iniciativa privada, como o dos transportes, é um sistema público operado quase sempre por concessões. E assim é em quase todo o mundo. Atividades exploradas pelos governos formam um sistema público, pois partimos do princípio que o Estado é público. Para construir uma definição com validade para o Brasil é necessário recorrer à experiência de outros setores ou dos exemplos externos. Em uma categoria esquemática podemos dizer que a diferença está em quem manda em cada um: no sistema comercial é uma empresa privada: no sistema estatal é um governo e no sistema público é a sociedade. Quem paga, manda. Dito de outra forma: os interesses de quem financia é que definem a política editorial de cada sistema.
A experiência brasileira é praticamente única no mundo. Só aqui o estatal não é público. É quase uma confissão de que os interesses de quem controla a máquina estatal não são os mesmos da sociedade governada. Praticamente todas as emissoras públicas de rádio e televisão do mundo são ligadas aos seus respectivos governos. No entanto, os governantes não têm controle sobre o conteúdo produzido por elas, nem indicam os seus dirigentes. Aqui é diferente. Com exceção das emissoras comunitárias e universitárias que funcionam apenas nas tevês por assinatura o controle das emissoras públicas brasileiras é dos governos.
Em praticamente todos os estados há televisões educativas autorizadas para os governos estaduais. O governo federal também opera emissoras de rádio e televisão geridas pela EBC. No atual cenário nenhuma dessas emissoras possui autonomia em relação aos governos. Raras são as que possuem algum tipo de conselho com participação popular. Onde há conselhos, eles são controlados por representantes dos governos. Esse deveria ser o modelo de gestão de emissoras estatais. Para ser considerada pública, a primeira condição é que haja controle da sociedade sobre a gestão, a programação e a produção de conteúdo. No modelo de democracia brasileira, em que muitas vezes os interesses dos governantes estão dissociados dos interesses da maioria da sociedade, há, evidentemente, diferenças conceituais e até ideológicas entre os dois modelos. Assim como em outros aparelhos ideológicos, em muitos casos há conflito entre esses interesses.
BdFRS - Como foi construído o sistema TVE e FM Cultura no RS?
Garcez - A TV Educativa do Rio Grande do Sul começou a funcionar no início da década de 1970. A Rádio FM Cultura entrou em atividade na década de 1990. Na década de 90 foi criada a Fundação Cultural Piratini que passou a operar as duas emissoras até a sua extinção no governo do ex-governador José Ivo Sartori, do MDB. O modelo de gestão da Fundação foi baseado na estrutura da Fundação Padre Anchieta, de São Paulo, operadora da TV Cultura e de duas emissoras de rádio. Houve, porém, um significativo avanço em relação ao modelo paulista: o Conselho Deliberativo da TVE-RS tinha composição majoritária de representantes de organizações da sociedade. Assim, foi a primeira e única das emissoras estaduais a possuir um conselho no qual os representantes do governo eram minoria. Isso, porém, tinha pouco significado prático, pois o conselho da Fundação Piratini, assim como todos os demais, tinha pouco mais do que um caráter consultivo, apesar de ser, nominalmente, deliberativo.
Um exemplo: o estatuto do Conselho determina que é ele que deve aprovar a indicação feita pelo(a) governador(a) do estado para a presidência da Fundação. No governo de Yeda Crusius essa determinação foi ignorada e o presidente da instituição não foi submetido ao Conselho. Durante sua existência, a Fundação Piratini foi colocada nas estruturas das secretarias da Educação, da Cultura e da Comunicação.
A principal característica da TVE-RS e da FM Cultura foi a intensa valorização da cultura gaúcha. Todo o amplo espectro da cena cultural do Rio Grande do Sul sempre teve espaço na programação das emissoras. A música regionalista, o rock experimental, as produções cinematográficas e teatrais, as artes plásticas e todas as demais manifestações culturais sempre tiveram muita presença em diversos programas.
A TVE-RS também serviu, em várias gestões, para sediar experimentações de produção audiovisual formando gerações de profissionais inovadores e criativos. Nos últimos anos, até a extinção da Fundação, as duas emissoras foram transformadas em veículos de disseminação de propaganda política e ideológica dos governantes de plantão. Hoje, a TVE-RS e a FM Cultura são apêndices da estrutura oficial de comunicação do governo estadual.
BdFRS - E a EBC nacionalmente?
Garcez - A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) foi a primeira estrutura no país com as características universalmente reconhecidas como indispensáveis ao funcionamento da legítima comunicação pública. Ao contrário das emissoras educativas sob controle governamental em funcionamento, a lei de criação da EBC estabelecia formas de manter a autonomia das emissoras: 1) existência de um Conselho Curador, com caráter deliberativo e com participação majoritária de representantes da sociedade; 2) financiamento própria com a destinação de uma Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública; 3) mandato de quatro anos para a presidência da empresa cujo titular só poderia ser demitido pelo Conselho Curador.
Importante destacar que a criação da EBC foi resultado da iniciativa dos Ministérios da Cultura e da Comunicação no segundo mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva com participação da sociedade. A realização de dois Fóruns de Televisão Pública definiu as prioridades das entidades representativas das emissoras educativas, comunitárias, universitárias e legislativas em atividade no Brasil. A demanda principal era justamente a formação de uma estrutura de comunicação pública nacional. A EBC herdou as estruturas de comunicação do governo federal geridas até então pela Radiobrás, empresa federal sediada em Brasília, operadora de emissoras de televisão em Brasília e no Maranhão e de rádio em Brasília, Rio de Janeiro e na Amazônia, e pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, organização social criada no governo de Fernando Henrique Cardoso para dirigir a TVE do Rio de Janeiro e as rádios MEC AM e FM também do Rio.
No final de 2007, ainda sob vigência da Medida Provisória que criara a EBC, foi autorizado o funcionamento de emissora digital de TV em São Paulo. Uma das principais características inovadoras da EBC foi a sua abrangência nacional. Até então, as emissoras educativas, mesmo as federais, atendiam somente os públicos dos estados onde estavam sediadas. Assim, uma das primeiras iniciativas da empresa foi atender o dispositivo da lei de criação que ordenava a formação de uma Rede Nacional de Comunicação Pública. Esta rede foi organizada com a participação das emissoras educativas da maioria dos estados brasileiros.
A programação das emissoras dava ênfase na produção jornalística e no estímulo à produção audiovisual independente e regional. Também tinha grande prioridade a programação dedicada ao público infantil que tinha sido abandonada há muitos anos pelas emissoras comerciais. Nascida no mesmo ano do início do funcionamento da televisão digital no Brasil a TV Brasil logo foi contemplada com equipamentos de última geração que demandaram grande investimento. Atualmente, toda esta estrutura está sucateada, pois a radiodifusão exige constante atualização. Para citar apenas um exemplo, vale destacar o abandono da Rádio Nacional da Amazônia, a última emissora de ondas curtas no Brasil e que serve como único meio de comunicação para grande parte da população daquela região.
Como expressão indispensável de uma verdadeira democracia, a EBC foi o primeiro órgão federal atingido logo após o golpe de 2016. Michel Temer destituiu o presidente da empresa, Ricardo Melo, que recém iniciara seu mandato de quatro anos e destruiu o Conselho Curador. O golpe fulminante na EBC foi desferido no atual governo que implantou uma severa censura à produção jornalística das emissoras e juntou as estruturas de comunicação pública e estatal que desde a fundação da empresa funcionavam separadamente.
Como é natural, esta primeira experiência de comunicação pública no país teve diversas falhas e imperfeições. Uma delas foi manter dentro da mesma empresa a produção das emissoras públicas e a prestação de serviços ao governo federal. Herdando as atividades da Radiobrás, a EBC produzia a TV governamental NBR e vários programas de rádio como a Voz do Brasil e a Conversa com o Presidente. Essa produção era feita mediante um contrato remunerado de prestação de serviços e tinha estruturas de produção, equipamentos e pessoal próprios dentro de uma diretoria específica. Apesar dessa divisão a prática demonstrou que a coexistência da produção de conteúdo estatal e conteúdo público foi prejudicial à imagem da EBC. A lei 11.652 não determinou garantias de preservação dos princípios de autonomia editorial e financeira da empresa, justamente os pontos atacados pelos governos pós-golpe.
BdFRS - Por que a discussão sobre a privatização?
Garcez - Mal informado e mal intencionado como sempre, o atual presidente da República, ainda durante a campanha eleitoral, anunciou que extinguiria a EBC. Após assumir, foi aconselhado por muitos assessores a ponderar seu desejo. Além do potencial propagandístico dos veículos da EBC (rádios, televisões e agências de notícias em texto e áudio), era preciso encontrar quem produziria os conteúdos de áudio e televisão para difusão das informações governamentais. A manutenção, privatização ou extinção da EBC ainda é, aparentemente, uma questão não resolvida dentro do governo.
A empresa está incluída no Programa Nacional de Desestatização e o BNDES analisa as possibilidades. Dois patrimônios da empresa despertam interesses em empresários privados: as concessões de rádio e televisão em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo e os imóveis da empresa existentes em vários estados do país, ainda herança do período de existência da Radiobrás. Por exemplo, o prédio da TVE-RS e da FM Cultura, no alto do Morro de Santa Teresa, onde funcionou a TV Piratini, primeira emissora de televisão do Rio Grande do Sul, pertencente ao antigo império midiático de Assis Chateaubriand, pertence à empresa federal. Já a produção do conteúdo audiovisual do governo poderia ser terceirizada para empresas amigas com possibilidade de extinção da Voz do Brasil, em atendimento à antiga demanda das empresas privadas de comunicação.
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Edição: Katia Marko