“Neste momento estão caindo as últimas selvas do globo, estão sendo adulterados os últimos rincões da natureza ainda mais ou menos intacta”. A frase é do pioneiro da ecologia José Lutzenberger e data de 50 anos, quando discursou na cerimônia de fundação da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) profetizando dias difíceis.
Mais longeva entidade ambientalista do Brasil, a Agapan celebra seu cinquentenário nesta terça-feira (27). O saldo de seu ativismo de meio século é a criação de dez parques e reservas nacionais e estaduais e o surgimento da lei pioneira de controle de agrotóxicos do país.
Militou no combate à poluição, denunciou ao mundo a devastação da Amazônia, lutou pela demarcação das terras indígenas e está na origem da primeira secretaria de meio ambiente do Brasil, a do Rio Grande do Sul. Hoje, batalha contra a implantação da maior mina de carvão a céu aberto da América Latina às portas de Porto Alegre.
Seu presidente atual, o biólogo Francisco Milanez, está na associação desde os 14 anos. Hoje, aos 64, atesta que nunca viu tanta destruição quanto nos dias atuais.
A seguir, confira a entrevista:
Brasil de Fato RS - Cinquenta anos depois da fundação da Agapan, a natureza enfrenta talvez o maior desafio da sua história sob o governo Bolsonaro...
Francisco Milanez - Nunca houve um retrocesso como o que está acontecendo agora. Nunca. Mesmo no período militar, obtivemos conquistas legais e estruturais. O único período de retrocesso começa há poucos anos, está acelerado e, em algumas áreas, estamos perdendo o que conquistamos em 50 anos de luta. Nunca houve nada igual. É absolutamente avassalador. Acontece principalmente na federação mas os estados e municípios estão fazendo coisas inacreditáveis.
“Nunca tivemos um governo tão subserviente”
BdFRS - Como comparar o período em que a Agapan nasceu, em plena ditadura militar, com os dias de agora?
Francisco - Na ditadura, como a mídia era muito censurada (sobre temas políticos), ela dava espaço para nós. Até sermos censurados, lá por 1975, corremos soltos e com ampla divulgação. Era difícil mas, hoje, os grandes interesses econômicos dominam e manipulam as informações. É muito mais complexa a questão. Nunca tivemos um governo tão subserviente aos interesses contrários à vida e ao povo brasileiro. O resultado é um conservadorismo ignorante, absolutamente burro, que vai contra toda a história do conhecimento humano.
BdFRS - Qual sua opinião sobre o discurso de Jair Bolsonaro na Cúpula do Clima?
Francisco - É um discurso vazio e desonesto, que usa artifícios para ignorantes como, por exemplo, falar do potencial agrícola sustentável do Brasil, quando é totalmente insustentável essa corrida pelo veneno que ele está propiciando com intoxicação em massa e o assassinato do solo. Fala que o Brasil é o maior detentor de água doce do mundo, quando ele está acelerando a destruição com a invasão da Amazônia, o plantio de soja, todas essas burrices espetaculares. Joga para atender sua clientela que é de baixíssima compreensão da realidade.
“Lutzenberger diria horrores de Salles e Bolsonaro”
BdFRS - Você conviveu com o José Lutzenberger. O que acha que ele, um dos fundadores e a figura mais conhecida da Agapan e do ambientalismo brasileiro, estaria dizendo hoje sobre Ricardo Salles e Bolsonaro?
Francisco - Lutzenberger não era uma pessoa de meias palavras. Não tinha papas na língua e diria horrores do Salles e do Bolsonaro. De qualquer forma, não há nenhuma classificação que possa ofender o antiministro do Meio Ambiente e o cara que ocupa o cargo de presidente do Brasil.
BdFRS - Qual a imagem que seus contatos ambientalistas no estrangeiro têm da situação atual do Brasil?
Francisco - As pessoas estão perplexas. Não conseguem perceber como o Brasil, que estava virando uma liderança mundial, vira uma coisa fascista, entreguista, porque, se alguma função existe para as forças armadas é proteger o Brasil e não entregar. E estamos entregando tudo. Os estrangeiros não entendem e perguntam: “Como é que vocês, que eram nossa alegria e orgulho, viraram isso?”
“Mourão não tem sensibilidade para entender os povos indígenas”
BdFRS - A pressão de Washington e a dependência de Bolsonaro do governo Biden poderá mesmo travar o desmatamento?
Francisco - A pressão de Washington é uma pressão conveniente, para sinalizar “Cuidado, eu tenho como te prejudicar”. Mas se a gente olhar, vemos que grande parte dos interesses ligados à soja estão ligados a empresas americanas. É um jogo de fingir. Mas com certeza o governo Biden será bem melhor do que o do Trump…
BdFRS - O vice de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão, ganhou o cargo de presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal. Militares e Amazônia combinam?
Francisco - Lembro de declarações do Mourão antes dele ser vice-presidente. Eram da pior qualidade. Ele trabalhou na Amazônia e, pelas informações que tenho, com muito pouco brilho. Eu trabalhei e morei na Amazônia. Estou longe de ser um especialista mas estudei e fiz pós-graduação em análise de impacto ambiental. Visitei minerações e obras. Sem falar que Mourão não tem sensibilidade e informação para entender os povos tradicionais da Amazônia, muito menos os povos indígenas.
“A Agapan nasceu questionando o sistema”
BdFRS - O que diria sobre o pioneirismo da Agapan, que antecedeu o Greenpeace, Amigos da Terra e outras organizações mundialmente conhecidas?
Francisco - A Agapan nasceu questionando o sistema, o consumismo, os valores da sociedade. Essas outras entidades nasceram defendendo baleias, etc. É conservacionismo, que existe desde o império (no Brasil). É importantíssimo mas não resolve porque preserva os bichos e deixa o sistema igual. A Agapan foi o berço da agroecologia. O Lutzenberger, nosso primeiro presidente, saiu de uma multinacional de venenos (Basf) por causa dos venenos.
Desde o primeiro momento (na Agapan), se falava de uma agricultura sem venenos. Seu pioneirismo é questionar a administração do planeta e não só preservar espécies. E isso é muito diferente. Essas outras entidades hoje também fazem esse questionamento mas não eram assim no início. Na primeira Cúpula da Terra em Estocolmo (1972) a discussão não era a nossa forma de vida mas se se precisava tratar os efluentes das indústrias… Não era para mudar nada. Só precisava dar uma limpadinha.
BdFRS - Qual seria, hoje, o maior desafio da Agapan?
Francisco - É deter a destruição. Em nível estadual, o maior retrocesso é a destruição do código de Meio Ambiente do estado e da lei de agrotóxicos – escrita dentro da Agapan em 1982 – para permitir agrotóxicos proibidos em seus próprios países. Em nível federal, a destruição das reservas indígenas, da Amazônia, da Mata Atlântica, através dos ecossistemas associados. E a mineração que ataca o Rio Grande do Sul, além da especulação imobiliária. São grandes e diferentes inimigos.
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Edição: Marcelo Ferreira