Rio Grande do Sul

Dia Mundial do Livro

“A taxação é mais uma mentira, como esse governo costuma agir”

O Brasil de Fato RS conversa com pessoas dedicadas e envolvidas com os livros sobre a proposta de taxação

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"A leitura é um ato libertador e por acreditar na importância da construção de um mundo livre que devemos dizer não à taxação e sim ao redirecionamento de recursos dos impostos já cobrados à área do livro” - Pixabay

“Eu continuo firmemente pensando em modificar o mundo e acho que a literatura tem uma grande importância", afirmou o escritor Jorge Amado, sobre o engajamento em literatura, ao Jornal da Tarde, em janeiro de 1988. 

Foi Jorge Amado, um dos mais famosos e traduzidos escritores brasileiros, que ao exercer a função como deputado federal, pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1946, conseguiu que fosse incluída na Constituição daquele ano, a isenção de impostos para o papel utilizado na impressão de livros, jornais e revistas. Ratificada na Constituição de 1988, que determinou ser vedada à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios criarem impostos de qualquer natureza sobre o livro e a imprensa escrita, mais de sete décadas depois, a isenção corre risco no governo de Jair Bolsonaro. 

Desde o ano passado o governo vem dando sinais claros sobre o intento de taxar os livros no país, o que poderá onerar ainda mais toda a cadeia ligada ao livro, desde sua base (escritores, editoras), até a ponta final do processo, que são os leitores, em especial os mais pobres. O Executivo federal apresentou, em julho de 2020, o Projeto de Lei (PL) 3.887, que propõe a criação da Contribuição sobre operações de Bens e Serviços (CBS) em substituição ao PIS e a COFINS. Com esse projeto, a alíquota zero sobre a venda de livros praticada atualmente passará a uma alíquota de 12%.

Como justificativa para sua sanha, o governo alega que os pobres não leem, que não consomem livros. Ano passado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a afirmar que livro era coisa da elite. Recentemente a Receita Federal voltou a afirmar que pessoas mais pobres não consomem livros não-didáticos, seguindo a mesma linha adotada pelo governo de que pobres não leem. 

O argumento do governo não encontra sustentação ao se analisar os dados recentes da  pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2019-2020), realizada pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural e aplicada pelo IBOPE Inteligência. Apesar do país ainda ter um patamar baixo de leitores, cerca de 52%, o estudo revela que há um contingente de cerca de 27 milhões de brasileiros nas classes C, D e E que consomem livros, enquanto 17 milhões são os compradores das classes A e B.

Em artigo publicado nesta sexta-feira (23), Dia Mundial do Livro, Zoara Failla, coordenadora da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, destaca que, com a taxação dos livros, os brasileiros das classes C, D e E, já excluídos por sua situação social de vulnerabilidade, terão ainda mais dificuldade em fazer parte da população leitora. A pesquisa destaca que para 22% dos brasileiros que compraram livros em um período de três meses, o preço foi o principal fator de influência para a compra. 

Para a auditora fiscal e presidente da Delegacia Sindical do Sindifisco Nacional no Ceará, Patrícia Gomes Peixoto Seixas, não resta dúvida de que essa tributação, se aprovada, gerará um efeito cascata em todo o setor de educação do país. "Em uma sociedade empobrecida como a nossa, os livros serão ainda menos consumidos", destacou em artigo publicado recentemente.

No texto, a auditora ressalta que todas as vezes que um pensamento único tentou se implantar em uma sociedade, foram os livros o principal alvo de ataque. “Que país queremos construir tributando livros e silenciando para a tributação das fortunas?”, questiona.

Para as fontes ouvidas pelo Brasil de Fato RS, a afirmação do governo federal é uma falácia e está carregada de preconceitos. Elas também reforçam os prejuízos que toda a cadeia ligada ao livro e à leitura sofrerá, caso o PL seja aprovado. 

“Taxar os livros vai atingir não só o mercado do livro (editoras, livrarias, distribuidoras), mas os leitores que diretamente serão afetados com o aumento do preço do livro, as instituições que atuam na realização de projetos de leitura, os escritores e ilustradores que vivem de direitos autorais. Esse debate em um momento tão delicado como o que passamos no Brasil é um despropósito. Taxar os livros é um plano de genocídio criativo e intelectual da população brasileira”, afirma a professora e mestre em educação, Márcia Cavalcante, que atua há 15 anos com bibliotecas comunitárias à frente da OSC Cirandar.


"Livro deveria ser ainda mais incentivado e não taxado” / Fabiana Reinholz

O PL na visão de leitoras

Na ponta do processo que envolve o livro e a leitura estão os leitores. Nesse segmento as pessoas que estão nas camadas da base da pirâmide social serão as mais afetadas com a taxação. A seguir, relatos de alguns desses leitores, da cidade de Porto Alegre, que têm as bibliotecas comunitárias como fonte de leitura e de contato com os livros. 

“Sou educadora social no CPCA, uma instituição franciscana na Lomba do Pinheiro, e lá temos uma biblioteca comunitária que nossas crianças e adolescentes acessam cotidianamente, já se tornou uma rotina para esta gurizada que não teria condições de comprar livros. Mas aumentando o preço vai ser bem difícil renovar o acervo e seguir cativando esta geração tão presa a aparelhos eletrônicos. Minha filha, Dandara, de 12 anos, em um ano de pandemia leu mais de 80 livros, e isso só foi possível porque temos acesso às bibliotecas comunitárias. Ela me pediu um combo de livros de aniversário e tive que comprar parcelado, pois à vista era inviável. O custo dos livros já não é acessível à maior parte da população, se aumentar os impostos vai ser mais difícil ainda”, afirma Ceniriani Vargas da Silva. 

“Vocês acham legal aumentar os valores dos livros? Estão vendo o quanto estão caras as coisas, o quanto está difícil para as pessoas. E ainda querem aumentar os preços dos livros? Nós somos estudantes e gostamos de ler, e vocês querem aumentar os preços?! Os comércios estão ficando cada vez mais caros. Vocês param para pensar que tem famílias sem alimento, sem serviço? Pensaram quantos estudantes estão sem estudar porque não têm acesos a internet? Não pensaram né, onde o Brasil vai parar. Viram o preço do arroz, o preço do gás, o preço da gasolina, o quanto está horrível de caro? Aprendam a nos valorizar, os pobres, porque merecemos ser valorizados. E parem de querer aumentar os valores dos livros porque tem pessoas que não têm condições financeiras para compras livros, ainda mais se subir o valor. Vamos nos colocar no lugar dos outros”, desabafa a estudante Helena Graiss, 15 anos.

“Penso ser injusto aumentar os impostos sobre os livros, pois automaticamente irá afetar no bolso do leitor. A consequência dessa ação será o afastamento dos mais pobres em relação à prática da leitura e do consumo da cultura literária. O que deve ser para todos, será apenas para quem tem boas condições financeiras”, aponta Marina Albuquerque, 16 anos, estudante do Instituto de Educação General Flores da Cunha. 


"As bibliotecas, em especial as municipais, as escolares e as comunitárias, também sofrerão com essa elevação no preço dos livros", afirma Zoara Failla / Arquivo Pessoal

Bibliotecas comunitárias 

Importante mecanismo de aproximação da população mais carente com o livro e a leitura, as livrarias comunitárias, juntamente como outros movimentos populares de formação de leitores, saraus culturais, movimentos de poesia, pontos de cultura e clubes de leitura, desmontam o argumento do governo. É o que destaca a professora Márcia Cavalcante. “Há uma cena cultural e literária, com certeza, mais viva que nos bairros nobres dos grandes centros.” Para ela a afirmação de que somente a elite consome livros vem de um discurso retrógrado e colonialista e precisa ser desmontado.  

“As comunidades de periferia no Brasil, onde estão mais concentradas as populações empobrecidas, leem sim! Afirmo isso com segurança, pois acompanho há anos um movimento de fortalecimento de bibliotecas comunitárias que são faróis nas mais diversas comunidades de norte a sul desse país”, ressalta a professora. 

“Na periferia real, onde nem a Receita Federal nem os representantes desse governo pisam, há livros, leitura, leitores, escritores, escritoras, editoras independentes, selos literários que publicam histórias em importantes perspectivas, festas literárias, gente que narra suas histórias e tece uma rede de leitura das palavras e de leitura de mundo, como nos inspira Paulo Freire. Quem afirma que a população empobrecida não lê está de costas às comunidades, não as reconhece como fazedores de cultura. Contudo, em um governo distópico como o que estamos vivendo em âmbito federal não me surpreende esse discurso e essa proposta absurda de taxar os livros”, complementa. 

Assim como Márcia, o estudante de filosofia Sidney Costa, que atua há sete anos na Biblioteca Comunitária Visão Periférica na Vila das Laranjeiras, no Morro  Santana em Porto Alegre, destaca que afirmação é equivocada e elitista. Para o educador e empreendedor social, esse argumento da receita e a intenção do governo de taxar livros não passa de uma estratégia.

“Eu aprendi, em 2008, como soldado do Exército brasileiro, o termo massa de manobra, que acredito que seja exatamente isso que eles estão querendo fazer. Porque um povo que não tem acesso à cultura, que quase já não tem acesso a livros de boa qualidade, se tiver essa taxação será um povo de fácil manobra, de fácil manipulação”, afirma o educador social. “Se quiserem taxar alguma coisa que taxem as grandes fortunas que são inúmeras no Brasil, e não esse veículo que é agregador de conhecimento e sapiência”, complementa.  


"“Se quiserem taxar alguma coisa que taxem as grandes fortunas que são inúmeras no Brasil" / Arquivo Pessoal

Livreiros 

As livrarias de rua independentes são, assim como as bibliotecas comunitárias, importantes mediadores entre o leitor e o livro. Integrante da cadeia produtivo do livro, elas foram fortemente afetadas pela pandemia, além de serem prejudicadas pelas super distribuidoras. 

Proprietário da livraria Bamboletras, Milton Ribeiro disse que o público atendido pela livraria desmente a afirmação do governo. “Temos famílias quem vêm aqui e compram um livro para todos. Ou dois que são lidos por todos. Então, o investimento trata-se disso, tem que ser feito de comum acordo. É triste e bonito de ver”, pontua.

Para além do que vivencia no estabelecimento, Milton cita o estudo 'Retratos da leitura no Brasil', que mostra que as pessoas leem mais hoje do que em 2007 e 2015. “O interesse crescente pela leitura apenas cai entre os entrevistados definidos como "classe A", conforme a faixa de renda. Nesse grupo, que reúne os mais ricos, os que 'gostam muito' de ler eram 48% em 2015, e caíram para 42%. Os que gostam 'um pouco' eram 42%, e passaram a 41%. E os que não gostam saltaram de 10% para 17%. Ou seja, a observação da Receita Federal não bate com a realidade”, reforça.

De acordo com Milton, as pequenas livrarias, mesmo trabalhando com a tele-entrega, não têm agilidade ou estoque suficiente para atender clientes que chegam sem curadoria, pedindo livros que estão anunciados aqui e ali. A taxação, destaca o livreiro, pioraria e muito a situação, pois elevaria o preço de capa dos livros. “A não ser que a ideia seja acabar conosco, livreiros e leitores, coisa que não duvido. Afinal, vivemos sob um governo fascista”, aponta.


Milton Riberio, da Livraria Bamboletras / Luiza Prado/JC

Para ele falta valorizar o efeito do livro sobre a população, dar acesso a ele, citando como exemplo o que é feito na Argentina e no Uruguai. “O livro é caro e poderia ter seu preço reduzido se houvesse edições maiores. Também a presença de gigantes prejudica a cadeia do livro. Todos sofrem com as super-distribuidoras que desejam lucros cada vez maiores. As editoras pequenas e médias já disseram não a pedidos feitos pela Amazon. Também não temos uma lei simples que os europeus praticam: descontos só após um ano de lançamento. Pode parecer que isso encarece, mas não, isso fortaleceria a todos. Os exemplos da Europa e de nossos vizinhos comprova”, opina.

Proprietária da livraria Baleia, Nanni Rios pontua que os hábitos de leitura da livraria são muito diversos. “Tem a pessoa que torra em livros, e eu não sei se lê tudo, e tem a pessoa que compra pouco, mas que compra sempre, que paga à vista, muitas vezes em dinheiro. Essa justificativa de que pobre não lê livro, além dos didáticos, é mentirosa, não se sustenta com base na realidade”, afirma, reforçando que tal ideia é preconceituosa.

Segundo avalia a livreira, a taxação do governo é mais uma forma de podar qualquer forma de conhecimento de pesquisa e cultura, as artes em geral. “Taxando o livro tu dificulta o acesso e diminui a circulação, porque esse livro fica mais caro. O governo traz novamente à baila porque sabemos que uma das características de uma retórica fascista é se opor à cultura, se opor a tudo aquilo capaz de fabricar pensamento crítico. A linguagem é reduzida, as metáforas são subtraídas, tudo é reduzido, tudo que tem vida murcha dentro de uma retórica fascista. A taxação é mais uma mentira como esse governo de praxe costuma agir, com base em mentiras, em inverdades, e muito alheio a pesquisa, estatísticas e ciência”, afirma 

Nanni também destaca que a narrativa de que livro não paga imposto é parcial. "Livro não é só tinta preta em um papel branco. Livro é muita coisa, tudo que tu faz para gerar um livro, fazer um livro andar, está pagando imposto. Livro deveria ser ainda mais incentivado e não taxado."

Além disso, acrescenta a proprietária, uma das formas de incentivar o mercado editorial é transformar livrarias de rua em pontos de cultura para que possam seguir abertas não só em momentos de pandemia, mas também em momentos “normalidade”. “Fazer programação cultural é uma coisa que nenhum governo é capaz de fazer de forma que corresponda à sociedade lá na ponta. A lógica dos pontos de cultura, herança do saudoso ministro Gilberto Gil, era de conseguir repassar financiamento para que lá na ponta agentes culturais consigam promover uma cultura condizente com seu entorno”, finaliza. 


"Livro não é só tinta preta em um papel branco", destaca Nanni Rios / Arquivo Pessoal

O princípio de tudo

Tudo começa pela ideia que passa na cabeça do escritor, passando na sequência para as mãos de um editor. O jornalista Rafael Guimarães congrega esses dois processos. Sócio da editora Libretos, o autor de "Tragédia da Rua da Praia" afirma ser uma falácia a afirmação e intenção do governo federal. De acordo com ele, as entidades representativas da cadeia do livro já demonstraram o enorme incremento na produção e circulação de livros gerado a partir das desonerações fiscais adotadas durante o Governo Lula, a chamada Lei do Livro, de 2003.

“Elas tiveram efeito positivo sobre a redução dos preços e o aumento das vendas. A tentativa de taxação do livro, ou seja, recolocar os 12% de impostos que haviam sido retirados, esta sim é que o tornará um produto de elite”, afirma.

Segundo sublinha o escritor, o aumento de preços reduzirá o consumo e fatalmente levará ao fechamento de editoras e livrarias, ao desemprego no setor gráfico, que tem alto índice de geração de postos de trabalho, e ao empobrecimento artístico e cultural do país. Aponta ainda que uma regra econômica básica está sendo esquecida: o preço baixo estimula a demanda, incentiva negócios e gera recursos. 

“Na minha opinião, menos que um resultado econômico, que não terá grande impacto, essa taxação esdrúxula busca aprofundar o projeto bolsonarista em andamento de transformar o ambiente cultural do Brasil em terra arrasada, como se verifica na redução do Ministério da Cultura em mera secretaria e na sua absoluta falta de projetos e ações. Os artistas são vistos como inimigos e as instituições culturais como espaços a serem destruídos. Já que não podem queimar livros em praça pública como gostariam, tratam de inviabilizar a sua produção, buscando, com isso, eliminar a consciência crítica e democrática que se forma a partir do conhecimento”, avalia. 

Ao invés de taxação, o incentivo ao livro e à leitura 

As fontes ouvidas reiteram que ao invés da taxação é preciso de ações de incentivo, como o fortalecimento de programas de leitura e bibliotecas comunitárias, e mecanismos que favoreçam as editoras, como o retorno das compras do governo. E políticas de crédito e incentivo fiscal às livrarias em geral, especialmente para as pequenas, a partir do reconhecimento de sua importância para o fomento da cultura e o desenvolvimento das comunidades. 

“Tramita no Congresso a Lei que implementará a Política Nacional de Leitura e Escrita e esse projeto precisa avançar! Países que são referência em políticas de leitura mudaram o cenário cultural com investimento, fundos setoriais, trabalho conjunto entre Executivo, Legislativo e organizações comunitárias. A leitura é um ato libertador e por acreditar na importância da construção de um mundo livre que devemos dizer não à taxação e sim ao redirecionamento de recursos dos impostos já cobrados à área do livro”, finaliza a professora Márcia Cavalcante.


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Edição: Marcelo Ferreira