É urgente um verdadeiro compromisso de reconexão de nossa espécie com a Natureza
Escolher um tema para uma coluna semanal, neste país que rodopia na vertigem dos ventos do saci-pererê, é um desafio enorme. Mesmo a alternativa remendona, de buscar um fio, para tentar fazer uma colcha com os retalhos mais vistosos, não é moleza.
Desde a semana anterior, tivemos a triste lembrança dos 25 anos da chacina de Eldorado dos Carajás. Vejam: um mundão de terra desaproveitada, e um universo enorme de famílias sem terra para trabalhar, o que tende a acontecer? É lógico, é natural, e é só uma questão de tempo. Se o Estado não intervier para corrigir o desequilíbrio e a injustiça que isso determina, as cercas serão cortadas. Em algum momento todos os territórios vazios de destino como aquela fazenda Cajazeiras, serão ocupados, para que cumpram sua função social. E é isso que a Constituição Federal determina: a terra deve cumprir sua função social. Em Eldorado do Carajás, eram 1.500 os sem terra acampados com este objetivo, e o Estado interveio com metralhadoras. Dezenove mortos no local, dois mortos nos dias seguintes, dezenas de desaparecidos, em fuga imposta pelo medo. Esta é a marca internacional do dia 17 de abril.
De 19 a 23 de abril, semana dos povos indígenas, representados na Cúpula do Clima por Sineia do Vale, da etnia Wapichana, da terra indígena Raposa Serra do Sol, demarcada em 2005 durante o governo Lula e objeto de conflitos intensos que se agravaram após o golpe de 2016, e mais notadamente no governo Bolsonaro, com acelerada invasão de garimpeiros em busca de ouro. Em sua fala, dia 22, Sineia apontou a urgência de ações e a inconsistência de discursos ambientalistas contraditórios quando emitidos por responsáveis pela paralisação de políticas públicas efetivamente aplicadas em defesa do ambiente e dos direitos dos povos tradicionais.
Já Bolsonaro, o outro brasileiro convidado para a reunião, foi surpreendentemente lógico e cordato, recebendo majoritariamente elogios cautelosos e desconfiados, apesar de algumas criticas ácidas. Ele fez afirmativas importantes, mas discutíveis, prometendo resultados tão impactantes como a eliminação, até 2030, do desmatamento ilegal que atinge recordes a cada ano, em sua gestão. Prometeu a duplicação de recursos aplicados à fiscalização de danos ambientais e o reforço a órgãos e políticas sistematicamente depredados em seu governo. Também se apropriou de medidas dos governos anteriores e se apoiou nelas para prometer antecipação em dez anos no prazo para neutralidade na emissão nacional de gases de efeito estufa. Aquelas metas haviam sido estabelecidas pelo governo Dilma no Acordo de Paris, que o governo Bolsonaro já havia ameaçado desconsiderar ou mesmo abandonar.
Tudo isso, dia 22 de abril, data em que lembramos um ano daquela reunião ministerial filmada, onde o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, estimulou a cúpula de governo a aproveitar que o povo estaria distraído, por conta da covid, para “dar de baciada”, “ir passando a boiada”, “simplificar o regramento”, acelerando na prática a destruição ambiental.
Não lembro de outra reunião ministerial, após aquela. Talvez não ocorram, ou não se façam necessárias num governo deste tipo. Mas seus efeitos são claros. Ali se estimulava o dia do fogo, a perseguição de ambientalistas e a instalação do medo generalizado entre povos indígenas, rurais e urbanos. O mau exemplo e a violência, que prosperaram desde então podem ser vistos em manifestações públicas tão abjetas como ameaças ao STF, por encapuzados simulando a Ku Klux Klan, repetidas esta semana no parque Moinhos de Ventos, em Porto Alegre.
Entende-se a cautela de Sinara e observadores internacionais, quanto à confiabilidade de Bolsonaro, em suas afirmativas de compromisso orientados para a paz e solidariedade. Afinal ele já havia mentido na ONU, culpando, inclusive, indígenas e povos tradicionais pelos incêndios florestais ocorridos no Brasil. Aliás, segundo Bob Fernandes, referindo o site Aos Fatos, em 839 dias de governo, Bolsonaro teria faltado com a verdade, distorcido os fatos, falseado argumentos, enfim, teria mentido pelo menos 2.855 vezes.
Fica claro que há um vício, uma coerência estrutural nesta prática de distanciamento entre falação e ação, intenção e gesto, que não permite dúvidas: o cara mente. E como mente muitas vezes, resta considerar que não o percebe ou não se importa com isso. Em outras palavras, a culpa não é dele, é nossa. A culpa é dos tolos que continuam escutando suas falas e esperando a consolidação de realidades fantasiosas, no mundo real.
Mas as lideranças globais dificilmente cairão nesta. Os recursos pedidos por Bolsonaro seguramente serão condicionados a mudanças efetivas, que de fato podem acontecer em breve, pós-bolsonaro, como sugerem outros anúncios deste dia 22 de abril. Os líderes globais podem aguardar para breve um interlocutor confiável. Nesta data, o Supremo Tribunal Federal assumiu seu papel de intérprete da justiça e decidiu: O juiz era ladrão. Com isso, o Lula recuperou seus direitos humanos e políticos. E nós, a esperança de vivermos novamente em um país orientado para o futuro, construindo elementos de soberania nacional, com o apoio do povo e contando com a credibilidade das demais nações do planeta.
É verdade, o ministro Fachin tentou manobra que o ministro Lewandowski chamou de constrangedora; o ministro Barroso tentou malabarismo que o ministro Gilmar Mendes ironizou, lembrando que a despreocupação com a própria biografia não deveria ser levada ao ponto de comprometer a biografia do STF: o ministro Fux tentou suspender a sessão, sendo contido com energia pela ministra Rosa Weber, e por fim, o ministro Marco Aurélio pediu vistas, suspendendo um processo decisório finalizado porque já contava com 7 a 2, para um total de 11 votos. Uma sessão com lances de drama, tragédia e comédia, a serem estudados pela história.
Para fechar com chave de ouro, este dia 22 de abril, quando alcançamos 383 mil mortes por covid, centenas de organizações sociais produziram Carta aos Governantes do Mundo, sobre a crise planetária, e apontaram os caminhos para sua superação.
Por limitação de espaço, não vou reproduzir aqui o texto. Numa simplificação tosca, e recomendando a leitura do original, ele é aqui resumido, na sua primeira parte, destacando forte acusação ao modelo de desenvolvimento pautado por interesses do capital financeiro e transnacionais desrespeitosas aos direitos e necessidades humanas, com o apoio de governos fantoches, pela crise planetária que ameaça a vida na terra.
Os povos apontam que as Nações Unidas fracassaram e que o momento exige mobilização de todas as sociedades, organizações, movimentos populares, cientistas e cidadãos em geral, em torno de medidas urgentes que permitam salvar a espécie humana, preservar a biodiversidade, despoluir os oceanos e reorientar as políticas públicas a favor da vida. Trata-se de verdadeiro compromisso de reconexão de nossa espécie com a Natureza, assumindo que a tragédia global, para ser superada, exige recuperação e respeito a valores solidários e ecológicos, em substituição às ânsias do capitalismo, alimentado por individualismo e consumismo obscenos, que estão destruindo os alicerces da casa comum.
Concluem que os povos do mundo, conscientes de suas responsabilidades, se comprometem em trilhar este novo caminho, desenvolvendo plantações e criações de base agroecológica, protegendo as águas, a vida dos solos e dos bens comuns da natureza, ampliando mecanismos de resistência territorial, contra o projeto da morte. Reclamam e incitam os governantes do mundo a que assumam suas responsabilidades públicas, já, ainda que tardiamente.
Não é espetacular o fato de que neste dia 22 de abril também se comemore o Dia da Terra? Da Terra Mãe, da Pachamama, de Gaia, o ente solitário que mantém tudo ligado e que ativa suas forças e encantamentos costurando a história da vida com o fio da solidariedade?
Pois essa é a linha que pretende unir os assuntos desta semana: a da solidariedade. Ela é o instrumento de Gaia, que ativa as enzimas que formam o sistema imunológico do planeta.
Segue a música do dia.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko