Governo Bolsonaro está em xeque e cenário internacional sugere que o tempo da “austeridade” acabou. Enquanto se debate com a pandemia, Brasil precisa de nova imaginação política. Um ponto central é tributar os super-ricos. Já há como fazê-lo
Surgiram na semana passada sinais de que o debate da Reforma Tributária no Congresso Nacional tende a ser adiado. Membros do Parlamento e do próprio governo opinam que uma reforma estruturante, neste momento, não é recomendável.
Ao mesmo tempo, o Fundo Monetário Internacional (FMI) recomendou aos países a implementação de “uma contribuição sobre os rendimentos mais altos” para a recuperação da pandemia da covid-19, como já vem ocorrendo em países como Argentina, Bolívia, Chile e Equador que estão tributando as grandes fortunas. O Brasil pode e deve sair da contramão do mundo e fazer justiça fiscal para combater a miséria.
Se uma Reforma Tributária ampla, que inclua os mais variados interesses e mudanças na Constituição parece inadequada por exigir extensos debates quando temos milhares de vidas perdidas para a covid-19, a volta da fome, milhões de desempregados e uma devastação econômica sem precedentes, há medidas mais simples e de forte impacto que podem ser adotadas urgentemente.
A solução para essa aparente dicotomia é fazer justiça fiscal emergencial e solidária com medidas já apresentadas ao Congresso Nacional em agosto de 2020. São oito projetos de lei entregues ao Parlamento, defendidos e difundidos por mais de 70 organizações nacionais que integram a campanha Tributar os Super-Ricos.
As oito propostas foram redigidas por especialistas em tributação que conhecem profundamente a estrutura tributária injusta do país. O pacote de medidas propõe o aumento dos tributos sobre as altas rendas, grandes patrimônios e redução para as baixas rendas e pequenas empresas, aumentando, inclusive, repasses para Estados e Municípios. Estas iniciativas podem gerar arrecadação anual aproximada de R$ 300 bilhões ao ano, onerando apenas os 0,3% mais ricos.
Mas estes projetos não tramitam ainda. Na fase atual da campanha, as entidades pressionam por seu andamento no Congresso Nacional.
As perspectivas de melhora no cenário econômico e social são muito pequenas e nada animadoras. Mais da metade da população não tem comida suficiente e variada como deveria. A nova leva de auxílio emergencial é ínfima em valor e abrangência.
Os super-ricos são uma parcela muito pequena da população que paga pouco ou nada de impostos, gerando injustiça fiscal profunda e agravando o abismo entre os milhões de pobres, justamente os que mais pagam impostos proporcionalmente.
Frente a esse quadro desolador fazer justiça fiscal tributando as grandes fortunas e altas rendas e corrigir a tabela do Imposto de Renda é uma oportunidade sem precedentes para assegurar receita de forma justa para atender a legião de desempregados e vulneráveis que rapidamente se formou e que vai se agravar. Está colocada a oportunidade para que sejam discutidas medidas tributárias urgentes e defender a vida dos brasileiros, como pode ocorrer se os projetos de lei da campanha Tributar os Super-Ricos forem votados no Congresso.
Dos oito projetos apresentados aos parlamentares, somente um necessita de uma proposta de emenda constitucional. Os demais são de tramitação mais simples. Uma das ideias força é corrigir as distorções no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), que livra as rendas do capital em detrimento da renda do trabalho. Voltar a tributar lucros e dividendos distribuídos na pessoa física (isentos desde 1996) e revisar a tabela de alíquotas, elevando as que incidem sobre rendas mais altas, não necessita de uma reforma tributária ampla e possui um potencial arrecadatório de R$ 160 bilhões anuais.
No Brasil, as altas rendas e as riquezas acumuladas são pouco ou quase nada tributadas, fazendo com que a concentração de riquezas esteja entre as mais elevadas no mundo. As pessoas que acumularam muita riqueza, por herança, doações ou pela distribuição isenta de lucros, são privilegiadas pelas isenções e quanto mais possuem, menos imposto pagam.
Os lucros remetidos para fora do país também são isentos. É um incentivo aos sócios de bancos e empresas mandarem dinheiro para o exterior ao invés de gerarem empregos locais. A proposta é que os lucros remetidos ao exterior sejam tributados no Brasil, onde foram gerados.
Já o Imposto sobre as Grandes Fortunas (IGF), previsto na Constituição Federal desde 1988, necessita somente de regulamentação legal. Na proposta da Campanha, serão tributadas pessoas com patrimônio superior a R$ 10 milhões (somente 59 mil pessoas), sobre a parte que exceder esse valor. A tributação atingiria somente os patrimônios pessoais e, portanto, não afugentaria nenhum investimento produtivo. A previsão de arrecadação é de R$ 40 bilhões.
A pandemia da covid-19 tem causado algumas modificações importantes no campo tributário e fiscal. Muitos países estão gastando, e muito, em medidas de combate às crises sanitária e econômica. O que parecia antes completamente impossível começou a acontecer. O Brasil pode seguir os bons exemplos de outros países.
Organização bastante conservadora, o FMI vem apontando, desde 2015, que é necessário alterar a estrutura tributária e promover mudanças que levem a uma melhor distribuição de renda e crescimento econômico.
Em 2020, em plena pandemia, o Fundo defendeu a tributação progressiva para países com limitados espaços fiscais, com a manutenção dos investimentos públicos. Na última semana, reforçou essa recomendação na publicação do Monitor Fiscal, quando defendeu a cobrança sobre rendimentos mais altos para mitigar os efeitos da crise econômica causada pela pandemia da covid-19.
Na América Latina, Argentina, Bolívia, Chile e Equador implementam medidas para taxar grandes fortunas. Nos Estados Unidos, o pacote de medidas anunciado pelo governo Joe Biden é considerado um dos mais profundos na área tributária.
A participação da renda do trabalho na renda nacional norte-americana vem decaindo nos últimos anos pela diminuição da tributação da renda do capital e o aumento da tributação da renda do trabalho, proporcionalmente.
O governo americano tomou este fato como um dos pontos de partida para propor aumento de impostos para corporações. O corte de impostos para empresas de 35% para 21%, no governo Donald Trump, não resultou em mais investimentos e crescimento econômico, segundo análise do próprio FMI. Agora, a proposta é elevar o imposto para 28%.
Na mira do governo norte-americano também está o combate ao planejamento tributário das empresas americanas (e estrangeiras), que leva à fuga de capitais, lucros e ativos, causando diminuição do pagamento de tributos. As medidas propostas visam a impedir que esses planejamentos abusivos prejudiquem a arrecadação no país, sobrecarregando, indevidamente, outros setores.
Merece destaque, também, o esforço para estabelecer uma taxação mínima de renda corporativa em nível global. Organizações da sociedade civil, como a Red por Justicia Económica y Social (Latindadd) e a Tax Justice Network (TJN) há anos defendem essa proposta, que seria uma maneira de minimizar a guerra fiscal entre países e que leva a perdas de arrecadação para muitos deles, sendo os efeitos ainda mais devastadores nos menos desenvolvidos.
Em novembro de 2020, a TJN divulgou o estudo “Estado atual da justiça fiscal”, denunciando a perda tributária anual de US$ 427 bilhões por abusos fiscais cometidos por empresas multinacionais e indivíduos ricos. Dos US$ 427 bilhões, US$ 245 bilhões são perdidos em função do abuso fiscal corporativo global e US$ 182 bilhões escoam pelo ralo devido a evasão fiscal privada global. Para os países de baixa renda, a perda das receitas tributárias em relação às receitas totais, comparada com os países de alta renda, é muito mais elevada, proporcionalmente.
Na lista dos países que mais perdem impostos anualmente, o Brasil está em quinto lugar, sendo o primeiro justamente os EUA. O montante total de tributos perdidos pelo Brasil, só nesta forma de evasão fiscal, é de US$ 14,9 bilhões.
Se examinarmos especificamente as perdas pela evasão fiscal privada, o Brasil ocupa o terceiro lugar, ficando atrás apenas dos EUA e da Alemanha. A perda de receitas tributárias atinge valores estratosféricos, minando a capacidade do país de reduzir as desigualdades estruturais e garantir direitos consagrados na Constituição Federal de 1988.
À parte as diferenças entre países e as características e peculiaridades de cada um, é possível, como se percebe, modificar o estado atual da regressividade tributária brasileira. Também se pode diminuir o nefasto reflexo da baixa tributação dos mais ricos nos indicadores de concentração de renda e riqueza e das desigualdades sociais, de raça e gênero no Brasil.
Para tanto, o excessivo apego a regras fiscais e a aplicação de políticas de austeridade, precisam ser revistas no Brasil.
Não é possível, muito menos recomendável, em tempos de crise econômica aprofundada pela pandemia, com surgimento de mais bilionários brasileiros e aumento de pobreza, fome e miséria, que continuemos a nos pautar por políticas ultrapassadas e anacrônicas, que contrariam inclusive as tendências mundiais mais importantes e apontam para a taxação dos mais ricos e das grandes fortunas.
É necessário injetar recursos no país, especialmente nestes tempos difíceis. Precisamos deles para salvar vidas, gerar empregos e renda, garantir proteção e assistência social. Precisamos investir em atividades produtivas, onde possamos dar um salto tecnológico e aumentar produtividade, diminuindo dependência e vulnerabilidade externas. Precisamos fortalecer a administração tributária para impedir o abuso fiscal e a perda de receitas tributárias. Precisamos acabar com o teto de gastos e rever as regras fiscais que impedem a aplicação de mais recursos em saúde e educação.
Não precisamos, ao contrário, aumentar taxas de juros e incentivar atividades especulativas e o rentismo. Também não precisamos entregar o patrimônio nacional (privatização) a troco de nada. Este tipo de recurso não é bom para o país.
Não queremos, definitivamente, uma reforma tributária ampla, como as propostas de emenda à Constituição em tramitação no Congresso, tampouco a proposta “enxuta” do ministro da Economia, Paulo Guedes, que unifica tributos e diz-se simplificadora, como se essa fosse a solução.
*Presidenta do Instituto Justiça Fiscal (IJF) e auditora fiscal da Receita Federal do Brasil aposentada
Edição: Outras Palavras