As telas de cinema cada vez mais são um território dos indígenas, que com a câmera na mão deixaram de ser apenas personagens de filmes, séries e novelas, e passaram a construir sua própria narrativa. Em função da pandemia da covid-19, que atingiu em cheio os trabalhadores da cultura e fechou salas de exibição, a iniciativa Tela Indígena encontrou uma forma de manter essa janela aberta com o evento Mborayvu: imagens e mensagens indígenas para a cidade. Entre os dias 16 e 19 de abril, prédios de Porto Alegre serão transformados em telas, onde serão projetados curta-metragens de realizadores da etnia Guarani do Rio Grande do Sul.
Com a intenção de ser uma ponte entre realidades diferentes que sofrem com o isolamento exigido pela pandemia e também de mostrar os mais de 500 anos de resistência cultural dos povos originários, o evento inicia às 18h30 desta sexta-feira (16), com uma transmissão especial das projeções ao vivo pelo Youtube. Oportunidade para quem não é da Capital prestigiar as produções. Ao mesmo tempo, os projetores serão ligados na cidade, exibindo um filme por dia. Cada audiovisual tem cerca de 10 minutos e será reprisado quatro vezes durante uma das quatro noites.
No primeiro dia, será feita a exibição em dez locais da Capital; no segundo, em nove e, nos últimos dois dias, oito lugares receberão as projeções dos filmes. As projeções no Viaduto Otávio Rocha e no encontro entre as ruas André da Rocha e Lima e Silva serão em maior escala e exibirão todos os filmes. O evento encerra no dia 19 de abril, Dia do Índio.
Os filmes exibidos criam uma espécie de portal, que convida quem perdeu o contato com a natureza ou com suas comunidades durante o isolamento, a observar como tem sido viver a pandemia em locais próximos, cercados de natureza, mas que sofrem com o isolamento mesmo antes da pandemia. Confira os detalhes das exibições no final desta reportagem.
Resistência guarani
Gérson Gomez Karaí, um dos realizadores, tem 28 anos e atualmente vive na Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Santa Catarina. Ele integra o coletivo Comunicação Kuery e afirma que as produções são uma forma de resistência. “A gente está num momento bem complicado mundialmente, não só o indígena, mas todo o ser humano”, afirma, em relação à pandemia. “A gente já vive como povo oprimido, mas a gente tem esse nosso lado que é muito legal de resgatar e manter, ao mesmo tempo, em nossas comunidades através das nossas canções, tradições, nossa cultura”, complementa.
A mensagem, segundo ele, é que independente da pandemia, o povo segue mantendo viva sua prática cultural que valoriza a natureza e as relações. “A nossa resistência é manter sempre viva a nossa espiritualidade, o nosso conceito, o nosso modo, o nosso jeito de ser, a nossa maneira de fala, que possamos ser respeitados, a gente é um povo muito oprimido”, destaca. Esta é a síntese de Mborayvu, que dá título ao projeto e, conforme Gérson, é mais que uma palavra. “É trazer os nossos ancestrais e manter vivo em forma de pintura, pinturas corporais, oralidade, cultura. Manter a tradição gastronômica, do plantio, do bem viver.”
Cinema como estratégia
O realizador conta que a ideia de fazer filmes surgiu da necessidade apontada por lideranças, para registrar o cotidiano das aldeias, resultando na criação do Comunicação Kuery, fundado em 2011, e que já conta com diversas produções, disponíveis no site do coletivo. “A temática foi dita dentro de uma assembleia grande, onde teve várias lideranças importantes, onde essa plataforma de comunicação foi muito importante para manter também o fortalecimento da luta política, do movimento indígena guarani. E um dia a gente conseguiu abraçar isso, a ideia das lideranças importantes, pra gente poder se manter e dizer o que a gente pensa, o motivo do qual a gente luta nunca é visibilizado.”
Gérson destaca o poder do cinema como ferramenta de comunicação do seu povo, que passa a transmitir sua voz e sua luta, desmistificando preconceitos. “Quem trabalha com o povo Guarani sabe que o povo Guarani é muito da espiritualidade. Ao mesmo tempo que são bem religiosas, são bem quietas, geralmente elas não falam muito, quem fala são as pessoas que são da frente. Então a comunicação entra com isso, de que forma a gente tenta trabalhar isso porque está na hora da gente começar sim a se impor também, como outras etnias fazem”, afirma o cineasta.
Tela Indígena e o fomento do cinema indígena no RS
O coletivo Tela Indígena foi criado em 2016. Atualmente reúne quatro antropólogos, pesquisadores e artistas formados pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS): Ana Letíca M. Schweig, Georgia de Macedo, Eduardo S. Schaan e Marcus Wittmann. De forma coletiva, eles explicam que as quatro equipes de realizadores que compõem o evento são de diferentes regiões e pensaram sobre mensagens endereçadas aos não indígenas, com temáticas distintas. "Mborayvu é uma palavra guarani que, aproximadamente, significa 'amor e generosidade', que acontece quando nos desprendemos de nossos desejos materiais e nos doamos aos outros. Por isso, cada cineasta, por meio dessas imagens, doou um pouco de si, de seu cotidiano e de suas comunidades para que nós, não indígenas, possamos ver sua realidade."
Os filmes trazem o cotidiano das crianças na calmaria das aldeias, brincadeiras, uso de máscara nas comunidades. Uma das mensagens mostra as pinturas corporais e as diferentes gerações resistindo a séculos de contato e como, em períodos como esse, continua resistindo e se fortalecendo de seus modos. Outros mostram o cotidiano do artesanato nas comunidades, peças que são sempre vendidas nas cidades, mas que muitas vezes na correria das pessoas não entendem nem percebem os guaranis vendendo artesanato. “Agora, esse cotidiano e importância volta estampado nas paredes dos prédios, não podendo mais ser invisibilizado”, relata o coletivo.
Para ilustrar, cita a fala de outro diretor, Ariel Kuaray Ortega, do Coletivo Mbya Guarani de Cinema: “Nesse momento da pandemia que estamos enfrentando, quisemos passar um pouco também o dia a dia das crianças aqui da aldeia e como estamos enfrentando a pandemia. Poder passar um pouco dessa liberdade que a gente tem na aldeia, da importância de estar bem com a natureza. Que existe também uma outra realidade que não é a realidade da cidade, né? Que existem também outras pessoas, com outra cultura, outra maneira de estar nesse planeta e que está enfrentando de outra forma também. Porque, de alguma maneira, essa pandemia está diretamente ligada à natureza. Isso tá acontecendo porque o ser humano começou a se desligar muito da boa convivência com a natureza e com a terra principalmente, e através das imagens a gente quer passar um pouco isso pras pessoas que estão fechadas nos seus apartamentos, nas suas casas na cidade, que é uma realidade totalmente diferente”.
O coletivo, que atua em parceria com os cineastas indígenas, fundamenta seu trabalho como uma forma de colocar em evidência as relações e vivências dos povos indígenas, que também fazem parte das cidades. “Muitos indígenas moram em Porto Alegre e Região Metropolitana (assim como vários outros centros urbanos), frequentam o centro da cidade e o Brique da Redenção - sempre estiveram nesse território. Mas, muitas pessoas não sabem, ou preferem não saber que essas pessoas existem e transitam em diversos locais”, afirma.
Desafios da pandemia e renda para as aldeias
Com os constantes ataques à cultura e a produções culturais e artísticas, o Tela Indígena compartilha que sempre viveu uma insegurança em relação à continuidade dos projetos. “Com a pandemia, essa incerteza se intensificou. Sempre realizamos a mostra em espaços de cinema, mas tivemos que pensar sobre nossos principais objetivos durante esse período: como facilitar e produzir encontros entre tantas diferenças? Como continuar promovendo espaços de conhecimento das questões indígenas, filosofias e lutas? Como fortalecer cineastas, artesãos, artistas, músicos e trabalhadores da cultura em geral?”, questiona.
A solução foi voltar-se não só para a exibição, mas também para a produção. Contemplado pela Lei Aldir Blanc, o projeto gerou renda às famílias e ampliou o potencial de comunicação dos indígenas. “O projeto contratou quatro equipes de cineastas. São seis diretores de cinema, com suas respectivas equipes de filmagem, alimentação para essas pessoas, além de uma verba destinada à cada comunidade”, afirma o coletivo.
Aquisição de equipamentos para os indígenas
Cada equipe de cineastas recebeu um kit com equipamentos para filmagem e a comunicação entre produção e realizadores se deu de forma on-line. “Inclusive a edição dos vídeos, através de reuniões e muitas trocas de mensagens. Dessa forma, os realizadores não precisavam circular para fora de seus territórios e a equipe de produção evitou entrar em contato com as aldeias, respeitando o distanciamento social.”
“A gente conseguiu a compra de equipamento junto com a parceria do Tela Indígena com a Lei Aldir Blanc. Nossa, foi um ganho pra gente, uma conquista mesmo!”, celebra Gérson, contando que outras formas de financiamento do Coletivo Kuery são as vaquinhas online. Agradecido pelo projeto, ele complementa que, “na Tela Indígena, a gente conta um conto, são sonhos, são filmes diferentes, é onde a gente coloca lá para que as pessoas possam nos enxergar e também ter o respeito por nós como indígenas. E entrar nessa luta também com a gente. Então essa é uma maneira de conscientizar e ao mesmo tempo trazer discussões, para ser um povo só, lutar por uma causa”.
Para o coletivo Tela Indígena, esses editais de cultura, ainda que muito mais acessíveis durante a pandemia por seus formatos, continuam um pouco distantes de atender trabalhadores da cultura nas comunidades indígenas. “A gente acha que os editais facilitaram muito a possibilidade de mais participação indígena, mas, também estamos refletindo muito sobre nosso papel de estar criando pontos, e esperamos que cada vez mais os editais sejam mais acessíveis para esses trabalhadores, para que cada vez mais tenham autonomia para inscrever seus projetos.”
Parceria do coletivo Projetores da Cultura
O projeto Mborayvu: imagens e mensagens indígenas para a cidade conta ainda com a parceria do coletivo Projetores da Cultura, que vai exibir os filmes nos prédios de Porto Alegre. O coletivo Tela Indígena comemora a cooperação. “O coletivo Projetores da Cultura tem uma visão muito semelhante em relação à ocupação das ruas pela arte, de modo acessível, de fazer com que as imagens atravessem o cotidiano, seja para pessoas nas suas casas, como as pessoas que estão passando nas ruas. É uma parceria que almeja o maior acesso possível a arte, pública, gratuita e comprometida com artistas, com a diferença e diversidade”, ressalta.
Outras iniciativas
O Tela Indígena tem outras iniciativas previstas para este ano, disponíveis em mais detalhes em seu site. Uma delas, via financiamento do Fundo de Apoio à Cultura, é o projeto “Mborai Mbaraete”, ainda sem data de lançamento. Também realizado em parceria com o Coletivo Comunicação Kuery, vai retratar a música sagrada dos Mbya Guarani através de alguns cantores e xamãs. Além disso, seguem com o projeto de assessoramento e estímulo à produção cultural dos próprios indígenas, contemplado no Edital Criação e Formação - Diversidade das Culturas.
Filmes e cineastas do Mborayvu
Jêguá (Nossa Resistência) é dirigido por Gerson Gomez Karaí, um dos fundadores do Comunicação Kuery, coletivo audiovisual de jovens mbyá-guarani. O coletivo é composto por moradores da aldeia Tekoá Nhundy, no bairro da Estiva, em Viamão, a partir da necessidade apontada pelas lideranças indígenas de registrar a vida e o cotidiano nas aldeias. O coletivo realiza documentários e vídeos que buscam dar maior visibilidade ao povo Guarani. A equipe também conta com os realizadores Igor Leopoldino e Elizete Antunes.
O filme Minha aldeia, minha vida / Yvy poty rã / Uva po'oa kuery é dirigido por Patrícia Para Ixapy Ferreira, Ariel Kuaray Ortega e Aldo Kuaray Ferreira, residentes da aldeia Tekoá Koenju, em São Miguel das Missões (RS). Eles compõem o coletivo Mbyá-Guarani de Cinema, fruto de oficinas de produção audiovisual da ONG Vídeo nas Aldeias. Ativo desde 2007, o coletivo reúne cineastas que usam a linguagem do audiovisual como expressão artística e política. Suas produções são exibidas em festivais e exposições nacionais e internacionais.
Teko Mbaraete é dirigido por Vherá Xunu, indígena mbyá-guarani da aldeia Tekoá Pindó Mirim, de Itapuã, na cidade de Viamão (RS). Em 2016 foi convidado a fazer parte do grupo de Comunicadores Mirim da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), na qual trabalhou durante três anos divulgando, fotografando e filmando eventos Guarani. Seu primeiro filme se chamou “Perigo na Mata” (2016) e seu último lançamento foi “O despertar do divino Sol” (2019), ambos curtas-metragens. A equipe também conta com os realizadores Andréa Kerexu, Nicolas Kara'i e Karai Paulo.
O filme Kyringue reko vy'a (O Modo de Ser Feliz das Crianças) é dirigido por Pará Reté, uma indígena mbyá-guarani de 14 anos e moradora da aldeia Tekoá Jataí’ty, do bairro Cantagalo, de Viamão (RS). Pará iniciou sua trajetória no audiovisual sendo fotógrafa da III Mostra Tela Indígena (2018). Em 2019, gravou o seu primeiro curta-metragem, intitulado “Kyringue Rory’i: o sorriso das crianças". No mesmo ano, seu filme foi exibido na abertura da IV Mostra de Cinema Tela Indígena. A equipe também conta com os realizadores Diego Luis Sanches e Jane Dinarte.
Detalhes das projeções
Dia 16 - noite de abertura com projeção especial, de grande escala, no encontro entre as ruas André da Rocha e Lima e Silva, além dos outros oito locais fixos da mostra. Nesta ocasião toda a programação será transmitida também pelo YouTube para que os moradores de fora da Capital também possam acompanhar. O link para acessar a exibição pelo YouTube.
Dia 16 e 17 - exibição da programação completa junto ao viaduto Otávio Rocha.
Dias 16, 17, 18 e 19 - projeções simultâneas dos filmes em 8 locais:
1. Rua Sofia Veloso;
2. Av. Osvaldo Aranha esquina com Av. Venâncio Aires;
3. Av. Osvaldo Aranha esquina com Av. Cauduro;
4. Av. João Pessoa próximo à UFRGS;
5. Rua 24 de Maio;
6. Fachada do Teatro São Pedro junto à rua Riachuelo;
7. Rua Riachuelo esquina com Rua Vasco Alves, e
8. Rua Duque de Caxias frente da Praça Marechal Osório.
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Edição: Katia Marko