Rio Grande do Sul

Direitos Humanos

“A cidade é mais do que um lugar na terra; ela é um centro de relações humanas”

Reconhecido defensor das causas sociais, o advogado Jacques Alfonsin conversou com o Brasil de Fato sobre sua trajetória

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"O direito à cidade busca corrigir todas as distorções sociais daí derivadas, que sustentam esse flagrante desequilíbrio" - OAB MA

“Não é fruto do acaso os direitos humanos, especialmente os fundamentais sociais, sofrerem tão forte oposição, serem mal vistos e difamados por 'pessoas de bem'.” Entre a aplicação da lei e a justiça verdadeira, eles incomodam muito, por provar historicamente que a primeira tem estado longe de garantir a segunda e, bem por serem denominados humanos, denunciam essa desumanidade”, afirma o procurador do Estado do Rio Grande do Sul (Aposentado), Jacques Alfonsin. 

Reconhecido defensor das causas sociais, Alfonsin começou a se dedicar a elas em fins da década de 1970, e desde então não parou mais. Mestre em Direito e professor de Direito Civil da Unisinos, é advogado e assessor jurídico de movimentos populares como o MST e ONGs ligadas aos direitos humanos, como dos catadores. É também fundador e coordenador da ONG "Acesso – Cidadania e Direitos Humanos", em Porto Alegre, e integrante da RENAP (Rede Nacional de Advogados Populares).

Além disso, publicou vários estudos sobre função social da propriedade e da posse, reforma agrária e solo urbano, assessoria jurídica popular e direitos humanos. Entre eles,  "Das Legalidades Injustas às (I)Legalidades Justas: Estudos Sobre Direitos Humanos, Sua Defesa por Assessoria Jurídica Popular em Favor de Vítimas do Descumprimento da Função Social da Propriedade" pela editora Armazém Digital; "O Acesso à Terra como Conteúdo de Direitos Humanos Fundamentais à Alimentação e à Moradia" (Sergio Fabris, 2003).

Em entrevista ao Brasil de Fato RS, Alfonsin fala sobre a situação atual dos direitos humanos no país, em especial no que toca do direito à moradia, à terra e à uma cidade mais democrática. “A injustiça social tem uma tendência crescente de capacidade para reproduzir e aumentar seus danos. O meio ambiente e a pobreza dão um testemunho notório desse fato; somente através de uma vontade política pública muito corajosa e fiel, à prioridade, à preferência de fazer o aparentemente impossível, ou seja, enfrentá-la e vencê-la, intimamente ligada e com o apoio organizado do povo que dela é vítima, pode-se manter a esperança ativa num direito à cidade capaz de fazer o que aparenta ser impossível”, ressalta. 

Abaixo a entrevista completa:

Brasil de Fato RS - Quando o senhor decidiu que iria se dedicar às causas sociais?

Jacques Alfonsin - Tudo começou em fins da década de 1970 do século passado, é bom que se sublinhe isso porque essas causas marcam a própria história do Brasil, e, pela gravidade dos conflitos que elas encerram, exigem a atenção e a ação permanentes de toda uma vida para quem se disponha a assumi-las. Recebi um pedido, então, de um religioso marista, Antônio Cecchin, para defender um grande número de famílias pobres que ocuparam uma extensa área urbana de Canoas/RS. Durante quase 5 anos, em contato muito frequente com elas, sustentamos uma batalha judicial renhida e cheia de percalços, como são todas as disputas sobre terra, alcançando uma convincente vitória, em dezembro de 1983.

O fato foi muito divulgado e, em 1985, quando a Fazenda Annoni, um latifúndio situado em Sarandi/RS, foi ocupada por uma multidão de sem-terras, pediram-me também para auxiliar um pouco a defesa jurídica do grupo, hoje um assentamento exitoso de reforma agrária. A partir daí a frequência com que o povo pobre se vê forçado a defender sua vida, assumindo pelas próprias mãos a defesa dos seus direitos humanos fundamentais, como os de alimentação e moradia, juntaram-se ao meu trabalho pessoas interessadas em defender famílias pobres. 

Em 1996 fundamos, por sugestão da Betânia, uma das minhas filhas, a Acesso Cidadania e Direitos Humanos, em Porto Alegre. Nesta pequena ONG, passamos a prestar nossos serviços, quase exclusivamente para empoderar a conscientização e a ação de multidões sem-terra, sem-teto e sem-trabalho - como hoje as identifica o Papa Francisco - que não se deixam vencer pela injustiça social vigente no passado e no presente do Brasil.

BdFRS - O senhor é reconhecido como defensor das causas sociais e tem sua trajetória marcada pela defesa dos direitos humanos. Como o senhor analisa essas questões no cenário em que estamos vivendo?

Jacques Alfonsin - Como um profundo e injusto retrocesso. A história do Brasil, talvez, nunca tenha visto uma tão perversa inversão de valores em tudo o que diz respeito aos direitos humanos, à justiça social, ao enfrentamento das irresponsabilidades históricas com que o poder econômico do capital exclui socialmente multidões pobres do país. Toda a sociedade brasileira vive hoje sob a tensão, a angústia e o sofrimento criados pela covid-19. A injustiça social, entretanto, que é uma outra e pior pandemia e mata muito mais gente, sob a qual o povo pobre do país padece, há séculos, essa está até aproveitando a outra para fazer “passar a boiada”, com o apoio explícito do governo federal, de tudo quanto ainda conseguia travar o seu poder de contágio e morte.


 " A gentrificação e as remoções, assim, constituem efeitos injustos do abuso de “direitos” (?) econômicos e políticos que desrespeitam a natureza da terra, seja urbana ou rural, como fonte indispensável de vida para todas as pessoas e não só para quem tem dinheiro para comprá-la"/ Foto: Marcelo Ferreira

BdFRS - Quais os problemas mais graves que temos quando se trata dos direitos humanos? Como garantir acesso a cidadania e direitos Humanos?

Jacques Alfonsin - A interpretação e a aplicação das leis que tratam desses direitos, parte sempre da letra deles, inscrita em regras e princípios jurídicos onde eles se dizem garantidos. Trata-se de uma interpretação abstrata, desencarnada, com ralo efeito prático. Esse nos parece um dos principais problemas porque os direitos humanos, como a própria denominação deles convence, são diferentes de outros direitos. Para serem efetivamente garantidos, o respeito devido que lhes é devido, antes de ser procurado na lei, encontra justificativa e legitimidade no próprio ser humano, pois, para eles, a lei obriga, não por ser lei, mas sim porque tem a obrigação de reconhecê-los. 

Por isso, as suas garantias já nascem fragilizadas se a violação deles buscar socorro em “algo”, como é a lei, e não em alguém como são as vítimas dessa violação. Integradas por multidões pobres, a maioria carente de consciência crítica das causas pelas quais sofre todo o tipo de opressão social, humilhação e exploração, sofrem de uma injustiça social que desafia a possibilidade de ser colocada como ré em qualquer processo administrativo ou judicial. 

Antes de qualquer outra coisa, portanto, quem defende essa porção de gente precisa estar junto dela, ocupando o seu lugar social, empoderando as garantias dos direitos humanos pelo despertar coletivo da indignação ética dos próprios sujeitos desses direitos para fazerem valer a sua própria dignidade e cidadania, resistindo à toda a forma de dominação que, mesmo sob o pretexto de aplicação de lei, traia a finalidade desta e pratique a injustiça. 

BdFRS - O senhor esteve na assessoria das principais lutas em defesa da moradia no nosso estado. Que cidade temos atualmente quando levamos em conta questões como gentrificação, remoções? Que efeitos isso traz para o direito à cidade?

Jacques Alfonsin - A cidade é mais do que um lugar na terra; ela é um centro de relações humanas que se baseiam numa qualidade de vida, refletida nas garantias devidas, principalmente, aos direitos de morar, circular, trabalhar e descansar, como afirmam muitos dos que estudam harmonizar essas funções do solo urbano. 

Elas estão sujeitas à uma correlação de forças econômico-políticas que dominam a distribuição de “fixos” e “fluxos”. Entre os primeiros podem ser lembrados as casas, praças, ruas, hospitais, escritórios, repartições, escolas, templos, prédios para o comércio, a indústria e outras construções semelhantes; entre os fluxos, todos os modos pelos quais se abra acesso, transporte, segurança, de quem reside ou passa pelas cidades aos referidos fixos, uma urbanização humana para direitos humanos. 

Uma boa cidade, então, pode ser considerada aquela que garante a mais ampla liberdade do ser humano, preferencialmente a de satisfazer a necessidade de ter um abrigo, pelo direito de moradia, um tipo de fixo seguro. Esse perderia o sentido se não fosse secundado pela liberdade de ir e vir em segurança a cargo, principalmente, dos serviços públicos que dão sustentação aos fluxos.

A gentrificação e as remoções, assim, constituem efeitos injustos do abuso de “direitos” (?) econômicos e políticos que desrespeitam a natureza da terra, seja urbana ou rural, como fonte indispensável de vida para todas as pessoas e não só para quem tem dinheiro para comprá-la. Reduzido esse bem de vida à condição de mercadoria, a sua função social praticamente desaparece. 

O direito à cidade busca corrigir todas as distorções sociais daí derivadas, que sustentam esse flagrante desequilíbrio, a maior delas, quem sabe, a de excluir das vítimas da gentrificação e das remoções, o direito de resistir. Trata-se de um conflito permanente pela disputa do espaço terra, como se já fosse pouco multidões estarem morando em favelas, áreas de risco, cortiços e outras habitações precárias, muitas vezes sem acesso sequer aos serviços públicos de água, luz, saneamento básico, próprios do mínimo existencial de qualquer ser humano. 

Com tudo o que nesse mínimo impõe de respeito a outros direitos que se ponham em conflito com ele, é o que o direito à cidade pretende garantir efetivamente, como o da garantia de defesa administrativa e, ou, judicial, voz e vez nos orçamentos participativos, na elaboração dos planos diretores, nas regularizações fundiárias, no estabelecimento de áreas de interesses social (AEIS), etc.

BdFRS - A moradia é um direito constitucional, contudo ela continua a ser inacessível para muitos. Como garantir que a função social da propriedade quando temos no país muitas casas sem gente?

Jacques Alfonsin - A moradia é uma necessidade humana imposta pela própria natureza, que não permite a ninguém deixar de satisfazê-la, sob pena de colocar em risco a própria vida. Ninguém mora no ar, há necessidade de terra para a moradia e esse bem se tornou muito escasso e caro exatamente porque, sobre ele, permitiu-se uma apropriação ilimitada por parte do direito de propriedade de quem tem capacidade econômica, dinheiro, para sujeitá-lo com tal desumano poder. Transformou-se em um produto do mercado inteiramente sujeito às conveniências e interesse deste como já respondi na pergunta anterior. 

Para conter efeitos tão injustos como esse, a Constituição federal vigente reconheceu o direito à cidade, entre outros. Unido à exigência de a propriedade privada sobre terra cumprir também a sua função social, o direito à cidade procura corrigir a capacidade de expansão do direito de apropriação da terra, só reconhecendo a sua legitimidade na medida em que a dita função se comprove cumprida. 

Na realidade, porém, a função social da propriedade não tem alcançado o efeito prático que se espera dela porque o direito de propriedade ainda é interpretado e aplicado como absoluto, preferencial e superior às obrigações que ele comporta. Incorpora uma liberdade humana que desrespeita responsabilidades e o direito de quem, por força dessa irresponsabilidade, fica privado até de terra suficiente para se alimentar e morar. São muito raras as decisões do Poder Público, seja o das administrações públicas seja do Judiciário, que cobram das/os proprietárias/os essa função. Isso não só explica, como justifica e legitima as ocupações de terra urbana e rural, que multidões de sem-teto e sem-terra são forçadas a promover em defesa da sua própria vida. 


 "O direito à cidade, assim, enquanto não se empoderar com a conquista efetiva dos direitos humanos fundamentais, particularmente os sociais, pode ficar reduzido a uma simples previsão constitucional. "/ Agência Brasil

BdFRS - Em um contexto crescente de especulação imobiliária, como garantir o direito à cidade, e que a mesma seja democrática e acessível a todos?

Jacques Alfonsin - A injustiça social tem uma tendência crescente de capacidade para reproduzir e aumentar seus danos. O meio ambiente e a pobreza dão um testemunho notório desse fato; somente através de uma vontade política pública muito corajosa e fiel, à prioridade, à preferência de fazer o aparentemente impossível, ou seja, enfrenta-la e vencê-la, intimamente ligada e com o apoio organizado do povo que dela é vítima, pode-se manter a esperança ativa num direito à cidade capaz de fazer o que aparenta ser impossível. Antes de tudo, porque a a especulação imobiliária não depende do voto da maioria da população urbana para impor o seu poder sobre a distribuição do solo das cidades. 

Por isso, se as suas vítimas ficarem dependendo somente do voto e do “devido processo legal” - que a dita especulação tem o poder de transformar numa verdadeira burocracia da exclusão - vão acabar como cúmplices da injustiça social, da ditadura que ela impõe, tanto no meio urbano como no meio rural. 

O direito à cidade, assim, enquanto não se empoderar com a conquista efetiva dos direitos humanos fundamentais, particularmente os sociais, pode ficar reduzido a uma simples previsão constitucional. Daí a legitimidade, a conveniência e a oportunidade de todas essas multidões pobres, titulares desses direitos, criarem um outro ordenamento não só “de direito”, mas de justiça.

É o que já está acontecendo com as conquistas materiais de iniciativas coletivas baseadas no pluralismo jurídico, no “direito alternativo”, no “direito achado na rua”, no “positivo de combate”. Essas suprem, de fato e de direito sim,  a pusilanimidade, a acomodação, a indiferença, ou até o desprezo com que autoridades públicas se dobram, exceções à parte, a poderes que elaboram, interpretam e aplicam o cinda chamado “direito legal”. 

As maiorias que esses poderes manipulam nos parlamentos, sua presença predominante nas administrações públicas, e todo um aparelhamento ideológico formando doutrina na mídia e dentro do próprio Judiciário, impõem uma vigência formal de um comando material sobre o território, não só das cidades como de todo o país. 

A violência das remoções e dos despejos massivos, então, só pode aumentar, não restando outra alternativa para quem padece dessas injustiças, que não a de valer-se de uma resistência ativa como a daqueles novos direitos. Ela já está dando certo em muitas regiões do Brasil, a par de provarem como o próprio regime democrático da nação, como previsto na Constituição federal, em seu artigo 60, se transforma numa trágica farsa sempre que infringe os direitos humanos como cláusulas pétreas, fundamentais.

“O contágio pandêmico de “passar a boiada” de tudo o que interesse ao mercado de terra abriu a porteira para o que ele bem entender de fazer. Não há de ser só obedecendo o devido processo legal que esse tipo de arbitrariedade pode ser impedido em tempo. O direito achado na rua que o diga.

BdFRS - O que podemos hoje trazer como exemplos positivos da luta em defesa do Morro Santa Teresa, da qual a Acesso teve um papel fundamental?

Jacques Alfonsin - A meu ver, o papel fundamental, mesmo, foi desempenhado pelo povo pobre do Morro Santa Tereza. Ali, a Acesso só tenha alcançado algum êxito na medida em que, segundo um método de trabalho inspirado, em parte, na Teologia da Libertação, no modo como ela interpreta e age conforme o evangelho de Jesus Cristo. Não considera prestar os seus serviços para o povo, mas sim com ele, em parceria planejada, executada e avaliada, respeitando-o como o verdadeiro sujeito de direito da sua própria emancipação. 


Durante o movimento de defesa do Morro Santa Tereza foram realizadas diversas reuniões com as lideranças das associações de moradores / Foto: Acesso

Primeiro, dispôs-se a ouvi-lo, em silêncio respeitoso, ou seja, não de forma episódica nem acidental, mas de modo continuado, atento aos menores detalhes da sua vida, necessidades e carências, para conhecer diretamente dele as verdadeiras perguntas e não para antecipar as respostas que a lei tem a pretensão de dar para tudo. Depois, pelo gesto, ou seja, um jeito de mostrar àquela comunidade uma adesão militante em sua defesa que se mostre ativa, permanente, disponível, incondicional e gratuita, motivada por uma prestação de serviço que a respeite não como um sujeito passivo da opressão, mas atuante, resistente e inconformado contra as injustiças que o ameaça. 

Só depois desses dois passos, a Acesso se permitiu a palavra, dialogada sobre a realidade das famílias ali residentes e os efeitos sob os quais a aplicação da lei reflete fidelidade à justiça ou quando ela faz o contrário. Assumiu então a defesa de algumas famílias do morro seja junto às administrações públicas do Estado e do Município, em defesa material, concreta, do seu direito de manutenção das posses de suas moradias, ali conquistadas há décadas. Nossa ONG continua lá, pois ainda há ação judicial pendente, que as ameaça. Estuda atualmente uma forma de regularização fundiária de toda aquela área urbana, já contando, para tanto, com o apoio do Ministério Público.   

BdFRS - Que medidas devem ser tomadas para contribuir na redução das desigualdades em relação a urbanização?

Jacques Alfonsin - Antes de tudo, buscar, com muita paciência e atenção conhecer a realidade sob a qual vivem as vítimas de violação dos direitos humanos fundamentais, especialmente os sociais, do modo como tentei explicar a Acesso fez no morro Santa Tereza. Desigualdades sociais não são criadas por lei, são produto de um sistema-mundo capitalista que, como aqui já referi, tem poder até superior ao dela. Assim, qualquer pretensão de diminuição dessas desigualdades não pode contar somente com a lei. Envolve toda uma outra concepção ético-política de economia, de empoderamento de organizações coletivas, movimentos populares, associações reunidas em torno de uma verdadeira mística de enfrentamento estratégico e tático da injustiça social contra a qual luta. 

Pensar que tudo isso pode ser feito só com os canais concedidos pelo Poder Público é ingenuidade igual a de pensar que, uma vez abertos, lá há de se encontrar as soluções para os problemas urbanos. Um exemplo disso pode ser visto, hoje, em Porto Alegre, em um dos seus conselhos municipais. Conselho, valha repetir o óbvio, pressupõe diálogo desarmado de uma imposição pré-determinada sobre cada assunto que esteja em pauta pela autoridade que o preside. 

A “redução das desigualdades em relação à urbanização” encontra-se em debate, por exemplo, no Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA) de Porto Alegre, que está fazendo a revisão do Plano Diretor desta cidade. Trata-se de um dos piores exemplos de como isso não deve ser feito. Mesmo com advertência do Ministério Público sobre o modo como um problema dessa relevância tem ligação direta com o Estado democrático de direito, com disposições da Constituição federal, do Estatuto da Cidade e da lei Orgânica do município, a direção desse Conselho cerceia como pode a defesa de qualquer proposta que parta de conselheiro representante de qualquer organização popular, ONG por exemplo, cujos objetivos se proponham defender direitos humanos fundamentais sociais. Ali só se aprova ou se rejeita o que o seu presidente decidir aprovar ou rejeitar. 

O contágio pandêmico de “passar a boiada” de tudo o que interesse ao mercado de terra abriu a porteira para o que ele bem entender de fazer. Como já opinei antes, não há de ser só obedecendo o devido processo legal que esse tipo de arbitrariedade pode ser impedido em tempo. O direito achado na rua que o diga.


"É claro que a regularização fundiária, que vise a realização da reforma agrária, seria um ótimo instrumento para a realização dessa política pública, mas do modo como o Incra e o Ministério da Agricultura tratam dele atualmente, a esperança de que funcione é zero." / Observatório da Regularização Fundiária Urbana no Brasil

BdFRS - Ainda na seara do direito que temos sobre o acesso à terra, a questão da reforma agrária, qual a situação no Brasil em relação à regularização fundiária?

 Jacques Alfonsin - A regularização fundiária é um tipo de intervenção do Poder Público, seja no solo urbano ou rural, que pode ter ótimos resultados para garantir segurança de posse de terra, ou até reconhecer a propriedade de posses mais antigas, assim conquistando tranquilidade para populações pobres. Quando é feita em parceria debatida e consertada com as comunidades posseiras, pode ter muito bons resultados. 

Mas quando cai de paraquedas, ditando porque, como e quando deve ser feita, repete o velho vício autoritário de pressupor incapacidade dessas comunidades pobres “entenderem do assunto”, aí há uma garantia certa de fracasso. A lei 13.465 de 2017 pretendeu disciplinar detalhadamente esse tipo de regularização. Apesar de vários dos seus dispositivos serem inconstitucionais - já existindo até uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra ela, pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (ADI 5771) - por darem chance a grilagem e desrespeitarem o domínio público sobre terra, alguns dos seus artigos podem ser aproveitados por comunidades pobres para consolidarem juridicamente suas posses. 

O risco contrário à regularização fundiária se encontra, todavia, como em várias iniciativas do governo federal vêm acontecendo atualmente, em se atropelar procedimentos administrativos, sob pretexto de reduzir o tempo da sua tramitação. 

A autodeclaração de posses de terra serve de exemplo disso, não se podendo excluir dessa possibilidade uma “regularização” que não passe de esbulho de terra pública e quilombola ou indígena. É claro que a regularização fundiária, que vise a realização da reforma agrária, seria um ótimo instrumento para a realização dessa política pública, mas do modo como o Incra e o Ministério da Agricultura tratam dele atualmente, a esperança de que funcione é zero.

O direito à cidade busca corrigir todas as distorções sociais daí derivadas, que sustentam esse flagrante desequilíbrio, a maior delas, quem sabe, a de excluir das vítimas da gentrificação e das remoções, o direito de resistir.

BdFRS - O que representa para o senhor, após tantos anos de luta em defesa dos direitos, essa homenagem da Associação dos Procuradores e das Procuradoras do Estado do Rio Grande do Sul (APERGS) com o prêmio APERGS de Direitos Humanos "Procurador Jacques Alfonsin"?

Jacques Alfonsin - Fiquei muito surpreso porque não imaginava minha prestação de serviço ao povo pobre merecer um destaque honroso como esse. Quando aceitei e agradeci à APERGS, ousei fazer uma ressalva que me pareceu necessária, por justiça. Se algum mérito pode existir no meu trabalho, como em todos os que se fazem em defesa dos direitos desse povo, tem-se de reconhecer que, na verdade, é ele o verdadeiro “credor” dessas homenagens. Basta se comparar a extensão do poder que a injustiça social tem de oprimi-lo, explorá-lo e humilhá-lo, com o poder da sua corajosa resiliência, para se concluir o quanto a grandeza ético-política das suas frágeis organizações conseguem, ao nível do heroísmo, vencer a violência e a estupidez de um sistema mundo do tipo capitalista que, com muito mais força, em nome do ter, não hesita em esmagar o ser.

BdFRS - O senhor quer deixar alguma outra mensagem para as nossas leitoras e leitores?

Jacques Alfonsin - Sim. Não é fruto do acaso os direitos humanos, especialmente os fundamentais sociais, sofrerem tão forte oposição, serem mal vistos e difamados por “pessoas de bem.” Entre a aplicação da lei e a justiça verdadeira, eles incomodam muito, por provar historicamente que a primeira tem estado longe de garantir a segunda e, bem por serem denominados humanos, denunciam essa desumanidade. A injustiça social, por exemplo, aproveita até a lerdeza do devido processo legal para prorrogar indeterminada e, às vezes até indefinidamente a solução de conflitos humanos submetidos aos tribunais, que desrespeitam leis naturais, leis sim, como as inerentes aos direitos à alimentação e à moradia, dando preferência aos interesses do ter em prejuízo do ser. 

Exemplos não faltam. Basta que se compare, em qualquer site de tribunal, o tempo que um processo de reintegração de posse contra multidão de sem terra ou sem teto leva para obter uma liminar de desapossamento e o de uma desapropriação de terra para corrigir o descumprimento da função social de um latifúndio indispensável à alimentação, à moradia, à própria vida daquela mesma multidão. Com sobrada razão, um direito achado na rua trata uma situação como esta com muito mais justiça. A rigor, isso nem é de hoje. Até São Pedro e São João, há séculos, desautorizaram as autoridades do seu tempo, respondendo as perguntas sobre o que motivava ainda o fato de eles e outros apóstolos continuarem a desobedecê-las, repetindo ao povo o que tinham ouvido e testemunhado em seguimento de Jesus Cristo, mesmo depois do assassinato deste:

"Chamaram-nos e ordenaram-lhes que absolutamente não falassem nem ensinassem em nome de Jesus. Responderam-lhes Pedro e João: 'Julgai-o vós mesmos se é justo diante de Deus obedecermos a vós mais do que a Deus. Não podemos deixar de falar das coisas que temos visto e ouvido'. Eles, então, ameaçando-os de novo, soltaram-nos, não achando pretexto para os castigar por causa do povo...” (Atos dos apóstolos, capitulo 4, versículos 18-21).


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Edição: Katia Marko