“O agravamento da doença é o terror da equipe médica, a sensação de impotência e, muitas vezes, o luto. O profissional tem que juntar todas as suas reservas de energia para reabilitar um paciente, reservas físicas e emocionais para suportar a demanda. Mas precisa ainda mais do que isso: precisa também motivá-lo”, descreve a fisioterapeuta Vera Lúcia Martins Moraes.
Após o mês mais grave e mortal, até o momento, da pandemia no Rio Grande do Sul, abril começou dando sinais de uma leve desaceleração no que se refere à questão de disponibilidade de leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). Mas a realidade ainda é tida como colapso, o que reflete em quem está na linha de frente. No momento, o estado está com 94,3% de leitos ocupados, sendo 3.204 pacientes em 3.399 leitos de UTI.
“A situação atual que estamos vivendo não se compara a nada do que vivemos no último ano. É caótico. É pesado. É frustrante. Não existem profissionais qualificados que tenham disponibilidade e nem ânimo. Estamos cansados. E a desenfreada 'abertura de leitos' apenas mascara o colapso na saúde, pública e privada”, afirma a fisioterapeuta Fernanda Mariano Leites.
Formada pela Universidade Federal de Santa Maria, em 1992, e com quase 30 anos de profissão, Vera Lúcia, também reforça o cenário desolador. “Estamos vivendo uma verdadeira tragédia, fruto da conjunção de vários fatores infames, principalmente o não comprometimento do poder Executivo com a pandemia, bem como o seu negacionismo, a falta de adesão às medidas de restrição e uso de máscaras, e o atraso na compra de vacinas”, aponta.
Cuidado do leito à recuperação
Profissionais da linha de frente, os fisioterapeutas estão entre aqueles que mais tempo ficam à beira do leito dos pacientes com covid-19. Estão entre os responsáveis pela avaliação contínua da condição ventilatória e da necessidade de suporte de oxigênio ou ventilatório (como as máscaras de ventilação não invasivas e ventilação invasiva), assim como decidem junto à equipe multiprofissional o plano terapêutico. Além de trabalhar na reabilitação dos pacientes pós-covid.
Apesar da covid-19 ser uma doença sistêmica, o principal sistema comprometido é o respiratório, sendo o comprometimento pulmonar associado à falta de ar o que leva à internação hospitalar, descrevem as fisioterapeutas. De acordo com elas, nos pacientes pós-covid são observadas sequelas como dispneia aos esforços, cefaleia, fraqueza, dores no corpo e ainda existem aqueles casos de internação prolongada em UTI, chamados de críticos crônicos. Estes últimos têm grande impacto na funcionalidade, mobilidade e qualidade de vida.
Destaca-se também, nos quadros mais comuns de recuperação, a capacidade pulmonar, tônus muscular e resistência física. A duração das sequelas, tanto leves, quanto moderadas e graves, ainda é incerta. “A certeza é da necessidade de atendimento especializado para reabilitação”, frisam.
Atendendo em casas de longa permanência (residenciais geriátricos), assim como em atendimento domiciliar individual (no caso dos pacientes com covid para evitar internação ou após alta hospitalar), Vera relata que uma dupla preocupação. “Não sabemos como eles vão evoluir clinicamente, o quadro pode mudar de um dia para outro. Há também o risco do contágio, apesar de todo o aparato, que coloca o profissional no stress de atender em prontidão e, muitas vezes, precisando se afastar do convívio familiar”, expõe a fisioterapeuta que tem trabalhando mais no pós-covid, onde a palavra é reabilitação.
“A doença é sistêmica. Então, além das sequelas pulmonares, também são bastante comuns a fraqueza muscular generalizada, inapetência, depressão, perda de memória, sequelas neurológicas, e muitas outras. Pelo que vemos até então, a recuperação tem levado um curso de no mínimo três meses de trabalho árduo. Dependendo do caso, esse prazo se estende bem mais”, conta.
Desafios que mudam
Vera comenta que nos residenciais geriátricos antes não haviam restrições às visitas de familiares, e que os residentes podiam conviver em locais como refeitório, banhos de sol, podiam sair para passeios comuns, e que agora tudo é restrito. “Por vezes, até mesmo o atendimento fisioterapêutico teve que ficar reservado só aos pacientes graves, para diminuir a circulação. Precisamos usar equipamentos de proteção, máscara, jalecos descartáveis, face shield, luvas, muito álcool gel e muita vigilância para fazer coisas simples do dia a dia, que cercam o atendimento ao paciente. Mesmo assim, tivemos muitas vidas perdidas”, diz.
Fisioterapeuta há três anos e meio, graduada pela PUCRS no ano 2017, Fernanda iniciou em 2018 sua pós-graduação na modalidade Residência Multiprofissional, como bolsista do Ministério da Saúde. De acordo com ela, o curso tem como principal objetivo formar profissionais no Sistema único de Saúde e para o Sistema único de Saúde. Trabalhando no Hospital Independência, em Porto Alegre, referência em cuidado humanizado no SUS, Fernanda destaca que triplicou a quantidade de leitos de UTI no hospital durante a pandemia.
Ela conta que as características e demandas dos pacientes mudaram e com isso veio uma necessidade de estudar e se qualificar sobre a nova doença. “O primeiro desafio enfrentado foi o medo de atender pacientes com alta carga viral e lidar com a possibilidade de se contaminar fazendo o que a gente faz todo dia: trabalhar. E ainda assim, com medo, tentar ofertar o melhor cuidado possível àquele paciente. A primeira mudança que tivemos foi referente a paramentação e alguns outros cuidados técnicos durante os atendimentos, mas hoje acho que foi o menor deles”, narra.
Por sua vez, aponta a fisioterapeuta, o maior desafio é na hora de acolher o paciente. “Receber um paciente conversando, contando da sua família, dos últimos dias em casa, dos bichinhos de estimação, às vezes rindo ou participando de algum momento com a equipe. E depois ver a deterioração desse mesmo paciente, com falta de ar, necessitando de intubação, manobra de prona, hemodiálise, e muitas vezes isso culminar em mais uma derrota para a covid-19. Lembra que ele chegou conversando? Ele contou sobre as caminhadas no parque. O outro disse que agora ia parar de fumar. Nós seguramos em sua mão no momento da intubação. E esse mesmo paciente não voltará pra casa. Aceitar isso é o maior desafio”, desabafa.
Ela corrobora o que outros profissionais da linha de frente e especialistas tem dito reiteradamente sobre o agravamento da doença. “Vemos na prática que os pacientes estão chegando mais graves em relação ao que observamos no segundo semestre de 2020, com evolução para piora ventilatória muito mais rápido que antes. Primeiro acreditávamos que os pacientes estavam chegando tarde no atendimento hospitalar. Com a descoberta das variantes associamos o agravamento a isso. Hoje é um misto, entre a apresentação mais grave da covid-19, a escassez de leitos e de profissionais qualificados”, expõe.
Em relação aos pacientes pós-covid, Fernanda relata que existe um abismo entre aqueles que saem bem e funcionais do hospital e aqueles que passaram por intubação orotraqueal, manobras de prona, hemodiálise ou traqueostomia. “Os pacientes críticos crônicos chegam a passar de dois a três meses internados até a alta hospitalar. Quando retornam para casa têm dificuldade para caminhar, alimentar-se e retomar a atividade ocupacional. Os pacientes que procuram reabilitação pós-covid costumam ser estes últimos, que passaram por um longo período de hospitalização”, relata.
Como profissional do SUS e com experiências em populações socioeconômicas desfavorecidas, Fernanda destaca a dificuldade que as pessoas têm de acesso à reabilitação, uma vez que faltam recursos financeiros para tal, estruturação familiar e também a baixa disponibilidade do serviço. “O fisioterapeuta só está presente no atendimento domiciliar, por exemplo, de forma particular ou por convênio de saúde. Pouquíssimas regiões ou comunidades são favorecidas pelos Programas Melhor em Casa ou consultoria com o Fisioterapeuta do NASF - Núcleo de Apoio a Saúde da Família. Logo, boa parte dos pacientes que recebem alta hospitalar ficam sem assistência fisioterapêutica especializada para reabilitação, assim como sem atenção da equipe multiprofissional, tão importante para a reabilitação plena do indivíduo”, destaca.
Exaustão e incredulidade
A sensação de exaustão física, mental e emocional, é uma constante apontam as fisioterapeutas. “Apesar de aprender muito durante o último ano sobre a doença, ninguém ensina como deixar 'os problemas' do trabalho no trabalho. A gente vive covid-19 24h por dia. Hoje evito olhar e ouvir noticiário, a realidade eu vejo dia após dia”, comenta Fernanda, que sublinha que a situação no estado é desesperadora.
“Se engana quem acha que os números apresentados no noticiário retratam a realidade. A realidade é que temos pacientes cada vez mais graves e cada vez mais jovens, profissionais cansados e um guerra sem fim. Estamos exaustos. É triste ver que ainda existem pessoas que ignoram o caos que estamos vivendo, é inevitável se sentir desrespeitado”, finaliza
Para Vera Lúcia Martins Moraes, a percepção é de que o país está em um abismo sem fim. “A vacinação é muito lenta, o vírus é rápido e agressivo. Estamos todos cansados. Mas ainda assim, a sensação de ajudar alguém a voltar a vida não tem preço. É vida que segue”, pontua.
Sobre o sentimento que sente em relação às pessoas que cada vez mais relaxam dos cuidados necessários diante do cenário atual, ela afirma que é incredulidade. “É inaceitável que frente a tudo que vemos hoje, tantas mortes, tanto sofrimento, existam pessoas que neguem ou desprezem a vida real”, conclui.
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Edição: Marcelo Ferreira