Os constantes cortes no orçamento, reestruturação ou esvaziamento de órgãos relacionados com o tema do meio ambiente, reforma agrária e cidadania, nomeação de pessoas sem qualificação compatível para cargos estratégicos colaboram para o incremento do aumento do desmatamento na Amazônia, e por consequência, violações de direitos das populações consideradas tradicionais e a constante ameaça de autonomia de seus territórios por grileiros, madeireiros ilegais, grandes corporações de diferentes setores, garimpeiros e fazendeiros.
Conjuga-se ao quadro o avanço da fronteira do capital baseado na implementação de grandes projetos, a exemplo de construção de complexos portuários, modal de transportes (rodovia, hidrovia e ferrovia) e grandes hidroelétricas. Nesta agenda, o Baixo Amazonas (oeste paraense), região que abriga um complexo de unidades de conservação (UCs) – estima-se em 33 UCs – entre eles, territórios indígenas, remanescentes de quilombos, diversas modalidades de assentamentos rurais, consta como prioridade para a consolidação da região como um corredor de exportação da produção de grãos do Brasil Central. A agenda desenvolvimentista baseada no uso intensivo dos recursos naturais coloca em xeque a existência dos territórios acima citados, bem como a sobrevivência das populações que neles habitam.
Desde 2018, quando do início da gestão do novo governo federal, os números de desmatamento na Amazônia alcançam indicadores alarmantes. No ano de 2020 bateu recorde dos últimos dez anos, com o registro de 8.058 km² de floresta suprimida. O crescimento foi de 30% em comparação com o ano de 2019, quando se registrou a perda de 6.200 km². Desse total o estado do Pará responde por 42%, alertam dados sistematizados pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), conforme esclarece o quadro abaixo.
Nesta conjuntura, ao longo da história o estado do Pará tem liderado toda ordem de indicador negativo em relação a desmatamento, ao trabalho em condição análoga à escravidão, bem como indicadores no campo de violência contra dirigentes que defendem a reforma agrária, o meio ambiente e os direitos humanos, onde o estado tem sido líder absoluto.
Estado que mais militantes sociais são assassinados
Os casos mais recentes são os assassinatos do indígena e professor de História Isac Tembé, 24 anos, por policiais militares no dia 12 de fevereiro, quando caçava com outros parentes. O caso ocorreu na Terra Indígena (TI) Alto Rio Guamá, no município de Paragominas, reconhecido reduto do agronegócio do estado. Em carta denúncia o povo Tembé-Theneteraha adverte que ameaças e ataques têm sido uma constante contra os indígenas, em particular liderados por madeireiros e fazendeiros.
A região é reduto de influência do vice-governador do estado, Lúcio Vale (PL), alvo de operação da Polícia Federal por desvio de recursos públicos em 10 municípios do estado, na segunda fase da Operação Carta de Foral, em dezembro de 2019. A acusação reside no desvio de R$ 39 milhões de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
Cristiano Vale (PL), irmão do vice-governador, acaba de ser empossado para presidir a Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e Amazônia (Cindra) da Câmara Federal. O ex-prefeito na cidade de Viseu é acusado de grilagens de terras, e votou a favor da MP Provisória 910/2019, depois convertida no Projeto de Lei (PL) 2633/2020, que facilita a regularização de terras sem averiguações, conta a reportagem do site Olho nos Ruralistas, do dia 13/03.
Sobre a execução de Isac, que deixa a esposa grávida, uma nota de protesto do povo Tembé defende que “O coração do povo Tembé-Tenetehara sangra com o brutal assassinato do nosso jovem guerreiro Isac Tembé. A bala que lhe tirou a vida, com apenas 24 anos, atingiu a todos que desde tempos imemoriais habitamos essa terra e fazemos a permanente defesa da floresta e de nossos saberes tradicionais.”
Isac foi morto no mesmo dia que Dorothy Stang
Isac tombou no mesmo dia em que o assassinato da missionária estadunidense e agente pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Dorothy Stang somava 16 anos. Stang foi morta na cidade de Anapu, no sudoeste do estado, aos 73 anos. A agente da CPT foi executada por denunciar grilagens de terra e o desmatamento na região. Como outros casos, um crime anunciado. Como outros assassinatos, poderia ter sido evitado tivesse o Estado vontade política.
Na mesma região, os assassinatos dos dirigentes sindicais Ademir Federicci (Dema), em setembro de 2001, e Bartolomeu dos Santos (Brasília), em julho de 2002 precederam a morte de Stang. Brasília foi estrangulado, teve as pernas quebradas e recebeu 12 tiros de armas de diferentes calibres. Por ironia, o crime ocorreu em uma comunidade denominada de Castelo dos Sonhos, região de Altamira, sudoeste do estado.
Assim como na TI do povo Tembé, os projetos de Assentamento de Desenvolvimento, Sustentável (PDS), efetivados após a morte da missionária, passam por constantes ameaças de grileiros, madeireiros e fazendeiros. E, o padre Amaro, herdeiro do legado de luta da missionária, convive com toda ordem de ameaças e coações.
Nesta mesma toada de violência, antes de Isac, o camponês Fernando Araújo Santos foi executado com um tiro na nuca na cidade de Pau D´arco, no sul paraense. Santos era testemunha chave do massacre de dez camponeses ligados à Liga dos Camponeses Pobres (LCP) ocorrido em 2017 em operação de reintegração de posse da fazenda Santa Lúcia. Todos os 16 policiais militares e civis envolvidos no caso estão em liberdade e trabalhando.
A balada de violência no Pará não dá trégua. Benedito Cordeiro de Carvalho, também indígena do povo Tembé foi assassinado no dia 2 de março com um tiro na cabeça em plena luz do dia, no município de Capitão Poço, nordeste do estado. O caso ocorreu com menos de 30 dias da morte de Isac. Didi, como era conhecido, era guarda municipal na cidade de Ourém, município na mesma região. O indígena foi executado quando se dirigia de moto para aldeia para visitar parentes.
Tragédia a sobrepor tragédia. Até o dia que antecedeu a execução do camponês Santos, a única pessoa envolvida no caso que estava presa era o advogado de defesa dos camponeses, José Vargas Junior, que tem se notabilizado mundialmente por defender camponeses e indígenas na delicada região sul paraense.
Aos moldes do anuviado caso da prisão de brigadistas da vila de Alter do Chão em novembro de 2019, no município de Santarém, a prisão do advogado é envolta de suspeitas com relação às acusações. Vargas é considerado pelas forças policiais como elemento suspeito no desaparecimento de um presidente de associação do município de Redenção. A base de acusação é uma piada sobre o caso encontrada no celular no advogado.
Entidades ligadas à defesa dos direitos humanos no estado denominam a questão como criminalização na luta por direitos e dos movimentos sociais, em particular os ligados à luta no campo, meio ambiente e direitos humanos. Nesta linha, antes de ser executada, a missionária Dorothy foi acusada em armar camponeses. A mesma imputação foi realizada contra o padre Amaro, que chegou a ser preso entre março e junho de 2018, e responde a processo.
Sobre os casos acima, no momento o advogado encontra-se em prisão domiciliar. Sobre os brigadistas de Santarém, o Ministério Público Federal (MPF) decidiu pelo arquivamento das acusações de terem ateado fogo na floresta.
No mesmo ano do caso da prisão dos brigadistas, em agosto, fazendeiros e empresários da cidade de Novo Progresso, no oeste do Pará, organizaram o Dia do Fogo. A mobilização foi organizada a partir de grupos de aplicativos sociais.
A denúncia foi realizada pelo jornalista Adécio Piran, do site Folha do Progresso. Após denunciar o crime, que incrementou os focos de incêndio na cidade em 300% durante dois dias, o jornalista foi obrigado a ficar fora do município por dois meses por conta de ameaças de morte.
O presidente do Sindicato dos Produtores Rurais da cidade, Agamenon Menezes e o dono da loja Agropecuária Sertão, Ricardo de Nadai são considerados os articuladores do crime, conta reportagem de Daniel Camargos, de 23 de outubro de 2019, publicada no site Repórter Brasil. As investigações são dificultadas por conta da relação dos acusados com políticos do estado e fora dele, avalia a reportagem.
A violência no estado é um rosário sem fim. No mês de março o assassinato da dirigente do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Dilma Ferreira Silva, de Tucuruí, soma dois anos.
Além de Silva foram mortos o marido, Claudionor Costa e um amigo, Hilton Lopes. Já em maio, o assassinato do casal de extrativistas do projeto de assentamento Praia Alta Piranheira, de Nova Ipixuna, José Cláudio e Maria do Espírito Santo, soma uma década.
Violência no estado vem de longa data
Instituições alinhadas à defesa da reforma agrária, do meio ambiente e de direitos humanos não sabem precisar o número exato de pessoas ameaçadas de morte no Pará. O certo é que a violência no estado vem de longa data, sendo a década de 1980 considerada a mais sangrenta. Terra, subsolo, água e as riquezas da floresta ocupam o centro de disputas por diferentes sujeitos de interesses díspares, dentro e fora do estado.
Boa parte destes indicadores nefastos tem explicação nas diferentes experiências de projetos de desenvolvimento na Amazônia, estes baseados em grandes projetos, que tendem a expropriar as populações consideradas tradicionais, a exemplo de indígenas, extrativistas, remanescentes de quilombos e camponeses, e a concentrar terra e renda nas mãos de poucos. E, tem-se ainda, o interesse pelo subsolo.
É justo contra este ambiente de indicadores de desmatamento, exploração ilegal da madeira, concentração da terra, monocultivo homogeneizadores, uso de agrotóxicos e violências que um conjunto de organizações de vários campos defendem a institucionalização de uma Política Estadual de Manejo Florestal Comunitário e Familiar (PEMFCF), onde os diferentes sujeitos sociais historicamente marginalizados do estado possam ter assegurado o direito de sua reprodução econômica, política, social e cultural a partir de seus territórios, como legítimos guardadores da terra, da floresta e dos rios.
“Acreditamos que este quadro triste marcado pelo desmatamento e violências contra as populações tradicionais do estado pode em certa medida retroagir com a efetivação da PEMFCF tendo como horizonte a convergência de várias ações no fortalecimento destas populações historicamente marginalizas no conjunto de experiências de políticas de desenvolvimento imposto para a região, argumenta Manuel Amaral, um dos animadores da proposta e coordenador do Instituto de Educação do Brasil (IEB) no Pará. A jornada soma perto de uma década.
Leia a segunda parte da reportagem especial amanhã (2):
Manejo Florestal Comunitário e Familiar: há uma década organizações sociais populares, ONGs e pesquisadores pleiteiam a efetivação da política no Pará
:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::
SEJA UM AMIGO DO BRASIL DE FATO RS
Você já percebeu que o Brasil de Fato RS disponibiliza todas as notícias gratuitamente? Não cobramos nenhum tipo de assinatura de nossos leitores, pois compreendemos que a democratização dos meios de comunicação é fundamental para uma sociedade mais justa.
Precisamos do seu apoio para seguir adiante com o debate de ideias, clique aqui e contribua.
Edição: Katia Marko