Mãe de três filhos, Adriana Mezzadri, 42 anos, moradora da cidade de Charrua, região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, é uma das organizadoras do livro "Feminismo camponês popular: reflexões a partir de experiências no Movimento de Mulheres Camponesas".
Há mais de 20 anos no Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Adriana pontua que, atualmente, a realidade das mulheres é ainda mais complexa. “A vida continua no isolamento produtivo, as mulheres saem menos, há dificuldades de venda dos produtos direto ao consumidor, como as hortaliças, as feiras estarem funcionando muito pouco, quando funcionam é com menos circulação das pessoas”.
Em entrevista ao Brasil de Fato RS, ela fala um pouco da sua trajetória, sobre a vida das mulheres camponesas e as violências que as perpassam.
Veja abaixo a entrevista completa
Brasil de Fato RS - Gostaria que nos falasse um pouco da tua história, trajetória. Como chegou no Movimento de Mulheres Camponesas (MMC)? E qual a importância do movimento?
Adriana - Eu tenho 42 anos, sou mãe de três filhos. Estou há mais de 20 anos no Movimento. Comecei a participar, na adolescência, das lutas pelos direitos ao salário maternidade e à saúde pública - que deveria ser um "direito de todos e dever do estado". Assim como por igualdade, ser mulher, e contra o impedimento para fazer as coisas ou ser, como por exemplo, há anos atrás, e hoje também, como a mulher dirigir, ir a certos lugares em determinados horários, ou querer estudar, era e continua sendo, em diferentes momentos, há questionamentos por ser mulher.
A importância do movimento é poder transformar em coletivo as pautas que às vezes são individuais, ele tem um caráter político, organizativo, a luta pelos direitos da mulher do campo e também de certa forma das mulheres trabalhadoras. Nesses mais de 20 anos que integro o movimento tivemos conquistas, como por exemplo o salário maternidade para as camponesas, que antes não existia, depois passou a ter direito a quatro meses de um salário mínimo. Antes as mulheres não se aposentavam e passaram a se aposentar, a questão do Sistema Único de Saúde se fortalece em alguns períodos, como a pandemia.
A questão das políticas agrícolas também se fortaleceram, o próprio Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que agora estão sendo desmontados. E também a questão da saúde integral que a gente sempre trabalhou, as plantas medicinais, a questão das sementes crioulas - a recuperação e a importância de ter o domínio disso e não ficar com as empresas e não termos que pagar o preço que eles colocam.
Hoje, na questão dos alimentos, dá para ver muito mais, a inflação que teve no ano passado até agora. Então há dificuldade, ainda mais para as mulheres de modo geral, que representam 70% das mais pobres, e acabam tendo ainda mais dificuldade de ter uma alimentação adequada, ter condições de alimentação, o fato da fome ter voltado com bastante força. E nesse contexto entra a questão da importância da soberania alimentar, das comunidades, dos territórios, mas que não se vê nenhuma política neste momento, neste aspecto, e sim só para as commodities de exportação do agronegócio.
BdFRS - Como dirigente do Movimento de Mulheres Camponesas, quais são os problemas principais enfrentados pelas mulheres do campo devido às relações de gênero? Nesse universo, como o machismo, o patriarcado, se apresenta?
Adriana - Entre os principais problemas estão o não reconhecimento do trabalho da mulher, cuidados que ela tem com a casa, preparação dos alimentos, cuidando dos filhos, idosos, e não ter como e com quem dividir este trabalho. Muitas vezes só é considerado trabalho a produção na roça, não considerando o ‘quintal’, as dores da casa, produção de alimentos, que é a garantida alimentar de quem vive ali.
O machismo e o patriarcado podem ser vistos nessa questão da terra. Por exemplo, se tu pegar de herança, poucas mulheres têm acesso à terra por essa via, a maioria fica com os homens.
Outro problema é a violência contra as mulheres que se apresenta nas suas diversas formas. Tem essa questão econômica, das terras, que é também subjetiva. A terra acaba sendo um meio de produção, mas só 19% das mulheres têm título da terra.
Tem outra questão que é assim, por exemplo, se tu tirar leite, no sul é uma tarefa feminina, no nordeste é uma tarefa masculina. Então lhe convém aonde lhe convém, isso não é tarefa de mulher, mas é tarefa de homem porque tem mais rendimento; como buscar água, onde tem pouco acesso, na maioria das vezes é uma tarefa das mulheres, um trabalho muito pesado. Então tem toda essa construção social, da tarefa menos valorizada ser tarefa das mulheres, como essa questão do leite que é diferente no país. Aonde lhe convém vai dizer se é trabalho de mulher ou não.
Há ainda a questão da educação, os camponeses em si tinham muita dificuldade, mas as mulheres às vezes mais. Eu vivi na pele isso, nas fases que não era obrigatório que nem é hoje, que tem uma política de transporte, de escolas próximas, que antigamente não tinha, a gente ia na aula a pé.
BdFRS - Como é a realidade atual das mulheres camponesas? Como a pandemia tem afetado a vida dessas mulheres?
Adriana - Um pouco da realidade acho que já respondi acima. Agora tem essa política de educação, que está sendo desmontada, e agora em 2020 e 2021, por exemplo, onde eu moro não está tendo aula presencial. Eu me licenciei, mas só consegui concluir ano passado. É um estudo que a gente vai fazendo em partes porque acha importante. Mas quando eu estava no período de estudar eu tinha que andar muito para pegar o ônibus, para ir na escola no município vizinho.
Hoje acredito que tenha mudado, ficou menor a distância, mas ainda há lugares que tem dificuldade. Mas o estudo, muitas vezes, não é voltado à realidade do campo, para o campo. Mas existem mais possibilidades. Até quando? Não se sabe, porque com essa questão da pandemia a tendência era o estudo híbrido, estava tentando se implementar, agora nem isso, porque a pandemia se agravou.
Poucas mulheres camponesas têm ensino superior. Hoje com o Prouni, Enem, há mais possibilidade para as mulheres acessarem a universidade.
Atualmente, a realidade é ainda mais complexa, a vida continua no isolamento produtivo, as mulheres saem menos, há dificuldades de venda dos produtos direto ao consumidor, como as hortaliças, as feiras estarem funcionando muito pouco, quando funcionam é com menos circulação das pessoas.
A pandemia trouxe dificuldades de comercialização direta dos produtos, temos muito mais gasto ao comprar os alimentos que não produzimos. Temos ainda mais gastos com internet, telefone, tem aumento nos gastos fixos mensais. E se tu não tem uma renda mensal, como que as pessoas sobrevivem?
Tem a questão do leite, no processo de seleção da produção no sentido de ficar só os grandes produtores, as mulheres acabam perdendo esse espaço, ou fazendo queijo mais para consumo que para a venda para comunidade. Se não tu tens que ter todo um processo de agroindústria, e a certificação de uma pequena indústria às vezes é igual de uma megaindústria. As exigências da vigilância acabam não tendo essa sensibilidade.
BdFRS - De acordo com o relatório Conflitos no Campo Brasil 2018, as mulheres enfrentam mais restrições do que os homens no acesso à água, à titulação das terras, ao crédito rural, à assistência técnica e à compra de sementes. Além disso há a questão da violência doméstica, as mulheres do campo estão mais vulneráveis a esse tipo de violência? Como ela ocorre?
Adriana - De fato as Mulheres têm menos acesso a título da terra, a crédito, isso dificulta romper com situações de violência, bem como sistemas públicos estão mais distantes.
No campo quase não se tem dados. Agora com essa questão de todo esse desmonte de políticas, essa é uma em especial. Mas pela nossa observação os casos têm aumentado, só que não se tem muitos dados para comprovar. A questão da violência é um dos direitos que trabalhamos no movimento. O que a gente vê mais é a violência psicológica, física, patrimonial em muitos casos (tomar os objetos, celular, dinheiro). Tem casos de pessoas próximas daqui onde moro em que as mulheres saíram de casa nesse período.
No campo, as distância das casas ajuda neste aspecto. Na cidade, que a gente sabe que tem acontecido muito, a violência é escutada pelos outros, no campo, às vezes, não é tão assim.
A gente tenta construir uma rede de apoio, mas é uma questão das pessoas se darem conta que é uma violência também, porque às vezes passou uma vida inteira complicada, mas acaba achando que é normal. Como a gente desconstrói isso? E daí entra a questão do acesso às armas que acaba piorando mais a situação. Com o conservadorismo a tendência é piorar, isso reflete sobre a violência contras mulheres no campo.
E ainda nessa questão da violência, quando vai se denunciar, acaba sendo outra violência que se sofre, porque é um julgamento do que ou porque sofreu, isso nos mecanismos públicos. Então como construir essa rede mais solidária entre as mulheres sem o julgamento? Porque o patriarcado e o machismo também perpassam pela vida das mulheres na questão de julgar as outras, porque muitas vezes a fulana foi violentada ou sofreu outra violência e a primeira pergunta é o porquê.
BdFRS - Como os movimentos de mulheres do campo dialogam com aquelas mulheres que ainda não estão organizadas? Quais são as estratégias para atrair outras mulheres e disseminar as pautas?
Adriana - Sempre tentamos dialogar com as que estão organizadas e com as que não estão, mas neste momento isso se torna complexo. Mas temos feito de forma virtual, com ligação, com mensagem, continuamos de diversas formas possíveis neste momento de pandemia.
A gente fez e faz várias oficinas de debate. Muitas vezes não é sobre o tema de violência, por exemplo, mas ele acaba vindo. Porque se tu disser que vai trabalhar sobre Lei Maria da Penha, muitas vezes quem está envolvida acaba achando que não é com a pessoa. Começando por outras questões, como autoestima, dependendo da situação quando a pessoa sentir confiança ela vai falar. É uma questão complexa abordar e construir esse debate, essa consciência, cada pessoa tem o seu processo, a gente tem que respeitar.
A defesa da vida tem significado mais importante, se manter vivo é fundamental, batemos recordes de mortes todos os dias. Trabalhar o feminismo é a conscientização de como seres humanos com direitos à igualdade sermos respeitadas e valorizadas.
BdFRS - Na tua visão, como avançar na consciência coletiva da força feminina e na necessidade da unidade das mulheres para superar a desigualdade?
Adriana - Precisamos avançar muito. Com o processo do conservadorismo se fortalecendo, às vezes a gente dá um passo para frete e dois, três para trás. Pautas que poderíamos dizer que estávamos superando, ou avançando, como por exemplo na questão da violência, se tu vai ver, dão para trás. Essa questão econômica também, da autonomia, é bastante complexa. Como as pessoas estão com menos renda e condições, os passos que deram nesse sentido voltam para trás. E aí estamos falando na maioria das mulheres, do campo e da cidade.
Com certeza a unidade das mulheres trabalhadoras é fundamental para avançarmos na luta feminista por igualdade, bem como do conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras por alimentos saudáveis para todos. Precisamos incentivos para a produção, de políticas. E neste momento vacinas para todos já, SUS salva vidas, fora genocidas!
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Edição: Marcelo Ferreira