“Nas últimas semanas o ritmo de trabalho tem sido muito intenso. O número de chamados para o SAMU através do fone 192 praticamente triplicou. Além disso, houve um aumento expressivo do número de ligações pedindo apoio nas unidades básicas de saúde para pacientes com sintomas respiratórios.”
“Sempre foi difícil chegar em uma emergência lotada com mais um paciente. Mas agora, está muito mais difícil. Nós vemos o esgotamento dos profissionais e dos recursos!! Verdadeiras cenas de guerra.”
Os relatos são das médicas socorristas da SAMU de Porto Alegre, Dra Fabiane Tiskievicz e Mariana Angelica Berardi Cioffi.
Março tem sido o mês mais trágico no estado desde que a pandemia teve início, ultrapassando os dois picos vivenciados em julho e dezembro de 2020. Além do recorde de vítimas fatais, convive com a superlotação de leitos. Desde o final de fevereiro e até o momento, não baixa de 100% a ocupação de leitos em unidades de terapia intensiva (UTI). Só em Porto Alegre nove hospitais estão nesta situação. As três maiores emergências, mesmo com todas as adaptações possíveis, fecharam as portas.
Normatizado no Brasil a partir de 2004 pelo decreto presidencial do governo Lula, nº 5.055, de 27 de abril de 2004, o primeiro Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) do Brasil surgiu em Porto Alegre, em 1995. Inspirado no modelo francês de assistência e atendimento pré-hospitalar, caracteriza-se por prestar socorro às pessoas em situações de agravos urgentes, nas cenas em que esses agravos ocorrem, garantindo atendimento precoce, adequado ao ambiente pré-hospitalar e ao acesso ao sistema de saúde.
Sendo parte fundamental da engrenagem na saúde no país, a saturação vivida em hospitais, postos de saúde e unidades básicas de saúde, também acaba refletindo no SAMU. Em Porto Alegre, as chamadas para o 192 triplicaram. Conforme relata a Dra Fabiane Tiskievicz, nas últimas semanas o ritmo de trabalho tem sido muito intenso. “Houve um aumento expressivo do número de ligações pedindo apoio nas unidades básicas de saúde para pacientes com sintomas respiratórios, assim como no número de pedidos de transporte de pacientes dos pronto atendimentos para os hospitais. Notamos também o aumento da gravidade dos sintomas nas chamadas”, pontua.
Segundo ela, até o final do ano passado, muitos dos casos que ligavam para solicitar socorro eram de menor gravidade, podendo ser orientados por telefone ou, quando atendidos no domicílio, se verificava que não havia necessidade de hospitalização. Agora, destaca a médica, a maioria dos pacientes necessitam de remoção por precisarem de oxigênio. Muitos inclusive apresentam sintomas graves.
“Além disso, existem os outros pacientes que não estão infectados, mas estão com um AVC, um Infarto do Miocárdio, ou foram atropelados, levaram um tiro. Essas pessoas também precisam de atendimento. Também precisam da nossa ajuda. Nós atendemos dentro dos lares! Vendo o sofrimento de toda a família. Algumas vezes pacientes muito graves ou, até mesmo, casos de paradas cardíacas, que nem sempre conseguimos reverter, tendo que participar isto aos familiares e confortá-los. Apesar de esta ser uma rotina nos nossos atendimentos, a pandemia tornou isto mais difícil”, conta.
Tal pressão também é sentida pela médica socorrista Mariana Angelica Berardi Cioffi. “Trabalhar no SAMU sempre foi uma caixinha de surpresas. Porque o solicitante, geralmente um leigo, nem sempre sabe expressar a gravidade da situação, as vezes pra mais ou pra menos. Também tem pessoas que mentem só para ter o atendimento. Isso sempre existiu. Mas agora, o número de chamados dobrou”, aponta.
O aumento dos casos graves tem trazido uma realidade a qual a médica compara a verdadeiras cenas de guerra. “Temos pacientes muito graves, e não temos lugar adequado para acomodar todos. As vezes precisamos aguardar mais de hora com o paciente para definir um destino. Já deixamos nossas macas e cilindros de oxigênio com os pacientes nas emergências. Sempre foi difícil chegar em uma emergência lotada com mais um paciente. Mas agora está muito mais difícil. Nós vemos o esgotamento dos profissionais e dos recursos”, desabafa.
“Já houve tempo suficiente para as pessoas entenderem que isto não é uma brincadeira”
“Sabemos que os hospitais e pronto atendimentos estão lotados. Muitas vezes, quando chegamos para deixar o paciente, temos que também deixar a maca por não ter onde colocar o paciente no local. Ficamos com a ambulância sem condições de atendimento até conseguirmos outra maca, sabendo que, neste meio tempo, existem outros pacientes aguardando”, aponta Fabiane, formada há 23 anos, e trabalhando como médica socorrista do SAMU há 7 anos.
Fabiane conta que os EPIs tão necessários são também muito quentes sobre o macacão e frequentemente a equipe tem que atender na rua, sob o sol ou em casas sem ventilação ou ar condicionado. “Além de ficarmos com o paciente em casa ou dentro da ambulância por um tempo maior que o normal, aguardando um destino. No final do dia estamos acabados, mas também motivados por permanecer na luta.”
Para ela, o atendimento pré-hospitalar é uma escolha muito gratificante, por permitir sentir que realmente está ajudando, fazendo a diferença para aquele paciente. Conforme conta a médica socorrista quando as primeiras informações sobre a pandemia chegaram, notou-se que se estaria enfrentando uma situação totalmente nova, extremamente perigosa, e sobre a qual muito pouco se conhecia. “Após um ano, infelizmente o sentimento não mudou muito. Ocorreram várias descobertas, muita pesquisa está sendo feita, muita discussão entre os colegas para tentar propiciar o melhor manejo para os pacientes, mas o vírus continua a nos pregar peças. Parece que quando atacamos por um lado, ele dá a volta e nos ataca pelo outro”, pontua.
Toda essa situação acaba se refletindo na vida e na rotina dos profissionais da área da saúde, especialmente aqueles que estão na linha de frente. “Não tem como não estar cansada, esgotada e preocupada. A falta de empatia da população que segue aglomerando, fazendo festas clandestinas e transmitindo o vírus é chocante! Distanciamento, máscaras e higiene das mãos, medidas simples que as pessoas insistem em não fazer”, enfatiza Mariana.
Formada há 10 anos pela Universidade de Caxias do Sul, fez residência médica em cirurgia geral no Hospital Dr. Miguel Riet Corrêa Júnior em 2012/13, em 2014 residência em cirurgia do trauma no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre (HPS), assim como especialização em cirurgia plástica no Hospital São Lucas da PUC em 2016/17/18. Há 3 anos trabalha no SAMU da capital gaúcha, e por 5 anos no SAMU estadual. Além de há 1 ano e meio trabalhar no HPS de Canoas como cirurgiã plástica. Para ela a descrição desse um ano de pandemia é surreal. “Algo que eu nunca imaginei que passaríamos. É muita tristeza com a falta de empatia da população”, lamenta.
Além do cansaço há também o medo da contaminação, apesar de toda a paramentação necessária. “O medo sempre existe. A angústia por cada colega que adoece é imensa. Tentamos nos apoiar uns nos outros. Quando achávamos que iria melhorar, acabamos por enfrentar a pior fase da pandemia até agora”, frisa Fabiane. Ela destaca que além do aumento do número de chamados, alguns colegas adoeceram, necessitando o aumento de carga horária dos que ficaram.
Um desses colegas foi o condutor socorrista do SAMU de Porto Alegre, Gilson da Silva Rocha, de 51 anos. Gilson havia sido internado no HPS com sintomas no dia 13 março. Contudo a piora no quadro levou ele a óbito no último sábado (20). Fundador do Sindicato dos Condutores de Ambulância do RS (Sindcaers), o condutor havia perdido recentemente a esposa devido a doença.
“Tenho tentado me cuidar o máximo possível, ainda não me contaminei e tenho esperança de que isso não aconteça, mas sei que basta um descuido. Já tive familiares contaminados e sei a angústia de ter que esperar para saber qual será a evolução, sabendo que se tivesse uma piora importante eu não poderia garantir que este familiar conseguisse uma vaga em hospital”, diz Fabiane.
Familiares longe, projetos adiados
“A pandemia acabou com muitos planos. Tinha viagens de férias e cursos programados para 2020. Não acredito que poderei realizar em 2021 e gostaria muito que 2022 as coisas estivessem melhor. Não vejo meus amigos, de fora da Medicina, há mais de um ano. Tenho uma sobrinha de 1 aninho que vi muito menos do que eu gostaria. Acabei ficando mais longe da minha família. E tive minhas férias canceladas nos serviços em que trabalho. Estão vencidas há 2 anos no SAMU”, relata Mariana.
Fabiane também teve que se afastar de muitos familiares, os quais têm alguma doença que poderia aumentar o risco de contaminação. “Meus pais este ano fizeram 50 anos de casados sozinhos em casa, por muito tempo os vi apenas de longe. Isto tem sido bem difícil”, afirma.
Falta de amor próprio e empatia
“Quando achávamos que tudo iria melhorar no final de 2020, a pandemia retornou com toda sua força. Como estava melhorando, as pessoas começaram a se descuidar do uso da máscara, estavam cansadas, e as festas de final de ano e férias propiciaram o aumento das aglomerações. Isso, somado ao surgimento de novas cepas do vírus, trouxeram a pior fase da pandemia que já enfrentamos no estado”, argumenta Fabiane, que diz se sentir triste em relação as pessoas que insistem em se aglomerar e não usar máscara.
“É uma falta de amor próprio e amor ao próximo! Pois mesmo que esta pessoa não se contamine, poderá contaminar um familiar, um amigo. Perdemos colegas e amigos este ano. E não podemos deixar as mortes pela covid caírem na banalidade, como se fossem uma coisa normal. Acho que já houve tempo suficiente para as pessoas entenderem que isto não é uma brincadeira”, ressalta Fabiane.
“É muito triste ver essas pessoas não se cuidando, porque depois de um tempo são elas brigando por atendimento nos hospitais lotados. A falta de empatia é desoladora”, desabafa Mariana. “Eu vejo meus colegas se virando em mil para tentar dar conta. Sempre tentando dar o jeitinho de atender mais um. E sofrendo com a falta de recursos. Tendo que escolher quem ganha o respirador. Eu vejo meus gestores correndo para tentar enxugar gelo. A curva nunca parou de subir... sabíamos que isso iria acontecer em Porto Alegre, mais cedo ou mais tarde”, complementa.
Apesar de todo o cenário desalentador, Fabiane vê esperança na vacina. “Espero que ela nos propicie uma trégua nesta guerra que agora já dura mais de um ano. Um ano em que vivemos com medos e incertezas. Torço imensamente para que o ritmo da vacinação possa ser acelerado, para que mais pessoas fiquem protegidas”, finaliza.
As duas médicas socorristas reforçam para que as pessoas se cuidem, usem máscara. E que cuidem dos seus familiares e amigos.
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Edição: Katia Marko