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Coluna

O general e a carta que nunca lhe escreveram

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"A crise política e o crescimento mundial das ideias e valores reacionários de extrema direita foi interpretada em círculos dirigentes do oficialato das Forças Armadas como uma espécie de absolvição pela história" - Divulgação
A política e a história são feitas dentro da disputa pelo poder e não fora dela

A obra de Gabriel Garcia Marques “Ninguém Escreve ao Coronel” descreve a expectativa de um oficial do exército que durante mais de 50 anos espera receber a confirmação de sua aposentadoria. Metodicamente o coronel se dirigia, todas as sextas-feiras, ao porto da cidade onde morava na expectativa de que, finalmente, o reconhecimento de seus valores chegasse sob a forma de uma carta informando de sua aposentadoria e lhe trazendo os devidos proventos de sua reforma, o que definitivamente faria justiça à sua lealdade como militar dedicado.

Trata-se de um personagem que encarna as desventuras do abandono e da frustração ao lidar com a busca do reconhecimento. Uma engenhosa representação dos militares latino-americanos, ressentidos não com um ou outro governo ou especificamente com o tesoureiro da caixa de aposentadoria, mas com a própria história do continente, com as vontades contraditórias que fizeram com que seu ideal de nação se desvirtuasse. O tenentismo de 1922, as quarteladas dos anos 1930 e as ditaduras de 1970 e 1980 teriam sido assim construídos, sobre a ética de um sujeito virtuoso, mas incompreendido, com uma missão que transcende à própria necessidade da manifestação racional da vontade geral e a torna essencialmente um objeto de sua interpretação.

Os desastres políticos e humanitários promovidos pelas ditaduras do continente, com milhares de mortos e torturados, outros milhares deserdados de guerras sem sentido e milhões de desempregados, quebraram muito da legitimidade e da ideia de superioridade ética desse setor da burocracia estatal.

O período de redemocratização, estabilidade democrática e de governos progressistas “empurrou” os militares para uma posição de menor intervenção política geral, mas, paradoxalmente, de ascenso em seu papel técnico e de suporte logístico à sociedade, recuperando grande parte da legitimidade social que haviam perdido. Esta dimensão foi particularmente forte nos períodos de governo lulistas, expressa com a publicação do Livro Branco da Defesa e da Estratégia Nacional de Defesa[1].

Contudo, a crise política e econômica do período 2013 a 2018 e a migração da direita, quase que de conjunto, de posições democráticas para posições autoritárias e não constitucionais, criou um contexto que funcionou como se fosse uma sineta, a anunciar a tão esperada carta chegada ao porto que finalmente consagraria o devido reconhecimento daquele papel de liderança e superioridade - componentes de sua interpretação muito singular sobre a hierarquia e a “alma” nacionais. A crise política e o crescimento mundial das ideias e valores reacionários de extrema direita foi interpretada em círculos dirigentes do oficialato das Forças Armadas como uma espécie de absolvição pela história.

As manifestações do General Santos Cruz têm a capacidade de atualizar tais visões de mundo para o contexto da crise sanitária e econômica do Brasil que, antes de mais nada, é a crise do bolsonarismo e do sonho autoritário que ele embala.

Santos Cruz diz que “O Brasil não merece ter que optar entre dois extremos já conhecidos”. E avança em sua tese (...) são exatamente iguais na prática e não servem ao Brasil” para buscar se posicionar entre e acima desses dois extremos: “Neste momento, sou a favor de um governo que promova a paz e a união nacional.” Culmina sua manifestação afirmando que tem o objetivo de “alertar para o perigo do fanatismo político que gera violência e para as tentativas (...) de arrastar o Exército para o dia-a-dia da política partidária e utilizá-lo como instrumento da disputa de poder”, buscando convencer os leitores de uma verdade que não se sustenta nos fatos.

Em 17 de dezembro de 2018 Santos Cruz encadeava os mesmos fundamentos porém em sentido inverso, considerando que Bolsonaro não era um extremo igual ao Lula, mas o governo que poderia restaurar seu ideal de nação: “Eu vejo aí umas besteiras imensas de algumas pessoas fazendo, inclusive, conferências internacionais, falando que o Brasil está com risco de perder as liberdades individuais. Não. O Brasil está é no caminho de recuperar as liberdades individuais. Porque você não tinha mais nem liberdade de andar na rua. Você tem que contratar segurança particular, todo mundo para o seu condomínio, para sua casa, para o seu carro, comprar carro blindado, não sei mais o que. Eu vejo o Brasil hoje com uma vontade de recuperar as suas liberdades”.

Há dois elementos perenes em ambas as declarações, uma ainda na ativa do governo Bolsonaro e outra já mandado para a ‘reserva’ do governo. O primeiro elemento é a construção do inimigo da nação como mecanismo para sustentar e justificar a missão transcendental da elite militar brasileira que se coloca acima das relações de poder, portanto, se autoconferindo a atribuição de poder moderador instituído pela missão e não pela Constituição.

O segundo elemento é a defesa dos interesses da grande e da pequena burguesia como forma de legitimação política. Em 2018 esse segundo elemento aparece como a defesa do “nosso país sequestrado”, da necessidade dos indivíduos incluídos neste ideal andarem blindados e com segurança, já em 2021 este mesmo elemento aparece como a necessidade dos homens de bem se unirem ao centro, no equilíbrio e moderação que extirpa os extremos e garante a conservação do velho e bom Brasil.

A contradição é cristalina. Constrói a retórica da neutralidade e da transcendência que lhe coloca como acima da disputa de poder, porém revela-se em sua parcialidade ao clamar pela identidade de classe com a elite, para efetivamente participar da direção do poder. Em verdade, é quase um clamor desesperado para salvar uma estratégia que naufragou na dimensão catastrófica da crise humanitária e civilizatória produzida por Bolsonaro. Um esforço retórico para recriar as condições políticas que restauraram o poder da extrema direita em 2018, mas que se esfumaçam aceleradamente a cada dia.

O general apresenta uma visão da política baseada no esforço de repetir normativamente a história, como uma história de cantos de virtudes e homens predestinados. A política e a história por extensão, contudo, são feitas dentro da disputa pelo poder e não fora dela, e a política está deixando a correlação de forças de 2018 para trás.

Assim como o coronel que aguarda sua carta, o general e o que ele representa desejam manter-se na arena política e com isto obter o reconhecimento de sua imprescindibilidade. Ocorre, contudo, que essa carta, reconhecendo e recompensando tal predicado, não foi escrita e não será enviada.

 

[1] Reuni alguns argumentos a respeito disto em meu trabalho apresentado para obtenção do título de Mestre em Ciência Política pela UFRGS em 2017. 

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko