Discurso de legitimação da violência e contra o estado democrático de Direito, flexibilização das regras para porte, posse e vendas de armas e munições e redução dos poderes dos estados sobre as forças de segurança, com mais autonomia das polícias militares. São cada vez mais nítidas as relações das milícias com a estrutura institucional do país, em uma estratégia de armar ostensivamente a militância ideológica que apoia o governo e incentivar atos antidemocráticos, com o objetivo de minar o processo eleitoral de 2022.
No dia 17 de fevereiro, Edson Rosa, 50 anos, de muletas, segurava uma placa de rua com o nome da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada em 2018 em uma emboscada planejada por milicianos. Rosa, que usa uma prótese na perna direita, estava em frente à sede da Polícia Federal (PF) do Rio de Janeiro, para onde fora levado, na noite anterior, o deputado federal Daniel Silveira (PSL/RJ) – preso por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do STF, por incitar atos violentos contra ministros da Corte e defender, entre outros crimes, a volta do AI-5 e a destituição sumária de todos os integrantes do Supremo.
O que se viu a seguir foi chocante: o homem, que tinha uma tala na perna direita, foi jogado ao chão por um simpatizante do parlamentar detido, imobilizado com um golpe no pescoço e ofendido aos gritos de “lixo, lixo” por manifestantes que protestavam contra a decisão do STF. Enquanto o homem gritava por “socorro”, ativistas incentivavam os agressores a retirarem a placa de suas mãos.
O episódio da prisão de Silveira é emblemático do avanço paulatino das milícias sobre o Estado brasileiro. O deputado foi preso após postar um vídeo de 19 minutos em que ofende ministros do STF, incentiva agressões físicas aos magistrados, defende a restauração do AI-5 – principal instrumento de exceção da ditadura militar que governou o país entre 1964 e 1985 – e desfia um repertório de palavrões direcionados à Corte.
Silveira é ex-PM no Rio, tem uma ficha recheada de prisões e advertências e foi eleito em 2018 graças à sua proximidade com a família Bolsonaro: ele ficou célebre por quebrar uma placa de rua que homenageava a vereadora Marielle Franco.
Não por acaso, o Rio é a base eleitoral tanto de Bolsonaro quanto de Silveira. Segundo pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), um quarto dos bairros cariocas já é dominado por milícias – em termos territoriais, a presença dos milicianos avança por 57% da área da cidade. E já afeta 2,6 milhões de pessoas, ou 33% da população urbana.
Para o sociólogo José Cláudio Alves, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o poder das milícias ultrapassou a gestão de mercados informais, como transporte e venda de gás, além de segurança privada, para desembocar no acesso ao poder político, convertendo esse controle territorial em poder, seja no âmbito legislativo, seja no executivo. “Uma área dominada por milícias ao longo dos anos se torna um nicho eleitoral”, pondera.
A relação com as polícias é o elo inicial. De acordo com Alves, a aliança entre legisladores e milicianos é uma herança política de vereadores e deputados ligados a grupos de extermínio nos anos 1990. “Em nome do combate à criminalidade, a polícia sempre matou gente pobre aos baldes. Isso sempre ocorreu. O que nós temos agora é um escancaramento disso com o bolsonarismo e a transformação dessa retórica em plataforma política”, esclarece.
Avanço miliciano para as estruturas do Estado
Os números do Geni/UFF, o qual teve colaboração do datalab Fogo Cruzado com o Núcleo de Estudos da Violência da USP, se referem a 2019 e tomaram como base as ligações ao Disque-Denúncia – do total de chamadas, 37,8 mil mencionavam casos envolvendo milícias. Alves diz que as milícias deixaram a condição de “poder paralelo” para se transformarem no próprio Estado. “Sem essa conexão direta com a estrutura institucional, não haveria milícia”, argumenta.
Chama a atenção o avanço rápido do poder miliciano, que já ultrapassou facções tradicionais no universo carioca desde os anos 1990, como o Comando Vermelho e o Terceiro Comando. O coordenador do estudo, Daniel Hirata, diz que a influência das milícias se expande para as regiões mais periféricas do Rio de Janeiro e região metropolitana, especialmente a Baixada Fluminense. “São áreas muito mais populosas que as regiões urbanas dominadas pelo tráfico. O avanço nos últimos dez anos foi avassalador”, diz.
Pelas suas características territoriais, as áreas de milícia são também celeiro para a emergência de lideranças populares, incluindo aí evangélicos vinculados ao fundamentalismo religioso. “O poder e a consolidação das milícias são ocasionados por um acúmulo de dinâmicas econômicas e sociais que aglutinam múltiplas faces ao longo de décadas. Vai do discurso que legitima a violência, no estilo bandido bom é bandido morto, até os projetos de armar a população”, completa.
Quadrilhas civis armadas
Antes da prisão do deputado, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) assinou quatro decretos que facilitam e ampliam a posse e porte de armas por pessoas comuns. Especialistas têm dito que as medidas, as quais passam a valer dentro de dois meses, devem favorecer a formação de quadrilhas civis armadas.
Pelos decretos, aumenta de quatro para seis o número de armas que podem ser adquiridas por qualquer cidadão brasileiro. Também determina que o porte vale para, simultaneamente, dois armamentos, além de ampliar a compra de munição para caçadores, atiradores e colecionadores. Os chamados CAC poderão comprar cinco (colecionadores), 15 (caçadores) e 30 unidades (atiradores).
Um relatório recente produzido pelos institutos Igarapé e Sou da Paz, ambos do Rio de Janeiro, mostrou um aumento de 65% no volume de armas legais nas mãos de civis no período de dois anos em que Bolsonaro está no poder. Em números absolutos, a legislação armamentista do governo colocou nas ruas quase 500 mil armamentos letais – fazendo uma conta simples, foram legalizadas, em média, 685 armas por dia na atual gestão federal.
Maria Stela Porto, do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília (UnB), acredita que há um risco concreto, a partir dos quatro novos decretos de Bolsonaro, de se armar ostensivamente a militância ideológica que apoia o governo e incentivar atos antidemocráticos logo mais à frente – ela mira, inclusive, o processo eleitoral de 2022.
“Os decretos são um enorme retrocesso. No caso das milícias, a legislação vem colocar lenha na fogueira porque a gente sabe que esses grupos vão se beneficiar da flexibilização, levando em conta que muitos dos milicianos são ou foram policiais”, diz. E no campo da política, o risco, segundo ela, é real. “Os decretos significam armas nas mãos, principalmente, de pessoas ligadas ao bolsonarismo. Então, é mais um fator a se ser levado em conta no caso de derrota eleitoral (em 2022). Isso é uma coisa bastante preocupante, bastante séria”, opina.
Ligações com o poder
Outro caminho que tem pavimentado a influência miliciana no país é a intenção de Bolsonaro em aumentar a autonomia das polícias militares – uma invenção da ditadura que governou entre 1964 e 1985 – em relação aos governos estaduais. O projeto, que altera a lei orgânica das PMs, está em discussão no Congresso.
Autor do livro A República das milícias: dos esquadrões da morte à era bolsonarista (Todavia, 2020), em que esmiúça as relações do crime com o poder no Brasil, o jornalista Bruno Paes Manso aponta o descontrole das polícias como fator de desequilíbrio da violência política.
“Quanto mais tolerantes os governos são com a violência policial, maior é a chance de ver as forças policiais agirem contra o Estado de Direito. A polícia deixa de ser uma instituição de controle para ser protagonista do crime, isso é um risco real e urgente. Não é por acaso que vemos as polícias batendo recordes de mortes nos últimos anos, é o maior sintoma de que os governos estão perdendo o controle sobre os policiais. Institucionalizar isso agora é muito grave”, critica.
No livro, Paes Manso disseca a crescente representatividade das milícias na vida institucional do país – leia-se, no poder – e faz uma ligação direta com o clã presidencial a partir da eleição do atual senador Flávio Bolsonaro (Republicanos/RJ) para a Assembleia Legislativa carioca em 2002. “A ligação entre Bolsonaro e as milícias é ideológica. Ambos são contra a modernidade, são contra os debates de teor democrático, são reacionários e, sobretudo, defendem a violência como solução, independentemente das leis e do Estado de Direito”, argumenta.
Em dado momento do livro, Paes Manso conta como o ex-assessor de Jair Bolsonaro Fabrício Queiroz, então articulador da base eleitoral do atual presidente na Baixada Fluminense, “levou o garotão imberbe (Flávio Bolsonaro tinha 22 anos à época) e criado na Tijuca para pedir votos nos batalhões policiais”. Eleito, Flávio levou Queiroz para dentro de seu gabinete em 2007, junto com familiares de outros milicianos da região – entre eles, mãe e irmã de Adriano da Nóbrega, tido como o maior bandido do Rio de Janeiro e morto de forma suspeita no interior da Bahia, em 2019.
“Flexibilizar as regras para porte, posse e venda de armas e reduzir o controle dos homicídios cometidos pela polícia. Se eu tivesse que pensar em duas mudanças legislativas para facilitar a vida dos paramilitares no Brasil, essas estariam em primeiro lugar. Não apenas porque a venda de armas e munições é fonte complementar de receita dos milicianos, mas também porque os homicídios têm sido um dos principais instrumentos de poder desses grupos”, diz o jornalista em seu livro.
A gravidade da estratégia de Bolsonaro e o risco de uma guerra civil como resultado da política armamentista do presidente alarmaram o ex-ministro da Segurança Pública e da Defesa no governo de Michel Temer, Raul Jungmann, que enviou um alerta ao STF. “Ao longo da história, o armamento da população serviu a interesses de ditaduras, golpes de Estado, massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo de serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão”. Para Jungmann, não há qualquer ameaça, “real ou imaginária”, à liberdade dos brasileiros que justifique as medidas. “É inafastável a constatação de que o armamento da cidadania para ‘a defesa da liberdade’ evoca o terrível flagelo da guerra civil, e do massacre de brasileiros por brasileiros, pois não se vislumbra outra motivação ou propósito para tão nefasto projeto”, diz.
Edição: Extra Classe