Quando a resiliência, devido a exaustão, dá espaço à tristeza, nem o profissional mais experiente fica imune diante do quadro desolador trazido pelo agravamento da pandemia. Se há um ano atrás o perfil dos internados por conta da covid-19 eram de adultos e pessoas idosas, agora o cenário é de cada vez mais jovens sem comorbidades indo parar nas unidades de tratamento intensivo.
Na linha de frente, profissionais da saúde, mesmo desgastados física, mental e emocionalmente, seguem atuando e dedicando-se a atenuar sofrimentos e salvar vidas. Enquanto isso, fora dos hospitais, uma parcela da população age como se o pior já tivesse passado, como se o colapso não fosse uma realidade.
No último dia 10 de março, a pandemia causada pelo novo coronavírus completou um ano no Rio Grande do Sul, quando foi confirmado o primeiro caso, a infecção de um homem de 60 anos. Desde então, foram 720.461 pessoas contaminadas no estado, sendo 53% mulheres. A maioria dos casos confirmados são de jovens adultos entre 30 a 39 anos, seguido de 20 a 29 anos.
No próximo dia 24, completa-se um ano da primeira morte no estado, de uma senhora de 91 anos. Do início da pandemia até agora, o RS perdeu 14.363 vidas para a covid-19 e, hoje, é o quarto estado brasileiro em número de mortes. Nesta quinta-feira (11), a média móvel de mortes chegou a 192 por dia. Para se ter uma ideia da gravidade, no dia 17 de fevereiro, menos de um mês atrás, a média era de 44. Um aumento de 436%.
Para além desses números, o estado enfrenta o colapso no sistema hospitalar, onde a taxa geral de ocupação de leitos de UTI, desde o dia 1º, oscila sempre acima de 100%. Na linha de frente, juntamente com médicos e técnicos, estão o corpo de enfermeiras e enfermeiros. Apesar do desgaste e da sobrecarga, esses trabalhadores mantêm o espírito de cooperação e comprometimento, muitas vezes abrindo mão de férias, extrapolando sua carga horária e vivendo, muitas vezes, longe de seus familiares.
A fim de trazer um pouco desta difícil realidade, o Brasil de Fato RS conversou com enfermeiras que atendem pacientes infectados. Elas relatam que a situação, que já era desafiadora, com a atual gravidade da pandemia torna-se ainda mais exaustiva.
Limite, incerteza e exaustão
“O que posso te dizer deste momento é que as nossas rotinas estão cada vez mais desgastantes, nós nos sentimos nadando, nadando, nadando e morrendo na praia porque nós não vemos claramente a luz no fim do túnel. A incerteza que nós temos de, nos próximos dias, como vai se comportar a doença nos provoca exaustão”, desabafa Angela Enderle Candaten, enfermeira do Serviço de Enfermagem em Terapia Intensiva do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
Mesmo sendo referência no combate à pandemia no estado e tendo reconhecimento internacional, o HCPA foi impactado pelo colapso e hoje lida com uma superlotação de 114,37% dos seus leitos de UTI. Angela conta que o hospital encerrou sua capacidade de ampliação de leitos, assim como a capacidade de ampliação física.
A situação dos recursos humanos é outro fator que chegou ao limite. “Não há mais recursos humanos disponíveis no mercado para cumprir essa demanda tão rigorosa. Temos um time de profissionais extremamente cansados, exaustos, talvez 40% do nosso corpo de trabalho atue em duas instituições de saúde em cenário covid. Estamos esgotados fisicamente e psicologicamente”, lastima. “Estávamos adaptados a trabalhar dentro dos padrões de qualidade e segurança, em um ambiente que era planejado, seguro, tendo todas as situações sob controle. Hoje não temos mais esse cenário”, complementa.
Formada pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), no campus de Frederico Westphalen, Angela tem 33 anos de idade e 10 anos de experiência na enfermagem em terapia intensiva. Há três anos, trabalha na UTI do HCPA e, desde o início da pandemia, na área covid exclusivamente. Além do cansaço físico e mental, a enfermeira revela o desgaste emocional, onde a incerteza abala muito. “Estamos em um momento extremo de fadiga por compaixão. A gente acaba ficando cansado ou fadigado em compaixão aos nossos colegas que também estão cansados, trabalhando no seu limite”, revela, destacando ainda o desafio de ver tantos pacientes em situação de extrema vulnerabilidade em relação à sua saúde.
Não é o momento de jogar a toalha
Angela salienta para a população que não é o momento de jogar a toalha, que todos podem e devem fazer a sua parte, assim como os trabalhadores da saúde têm feito. Ao falar sobre parte da população que não atende aos apelos por cuidados, ela diz que no início da pandemia enxergava a comunidade como vítima da pandemia. Hoje, porém, sente-se mais indignada do que antes. “Eu sinto uma certa revolta quando vejo as pessoas ignorando as recomendações, achando que é bobagem da nossa parte, que estamos supervalorizando nosso sofrimento. Isso nos fere, é impossível não sentir esse sentimento tão agradável em relação às outras pessoas”, afirma.
“Nós nos privamos da liberdade e nos permitimos nos colocar distante das nossas famílias para que elas possam estar protegidas e a gente vê pessoas mais jovens que ignoraram todas as recomendações, que foram passar suas férias, que foram para o carnaval, que foram para o ano novo, que foram para N situações de risco e que trouxeram o vírus para casa. Isso nos choca! Apesar de estarmos há um ano aprendendo sobre a doença e algumas pessoas ignorarem as recomendações, isso ainda nos provoca muita dor, porque nós vimos o resultado final”, complementa.
O resultado disso são familiares contaminados lotando os hospitais em estado de extrema fragilidade. “Às vezes os próprios familiares não conseguem vê-los assim porque estão distantes fisicamente e não podem fazer as visitas, apesar da gente promover as videochamadas. É aquela história, a gente só acredita no que vê. Então, talvez o afastamento das pessoas, por proteção, por precaução, por segurança, tenha provocado esse sentimento de ‘só acontece lá dentro, nós que estamos aqui fora podemos ter vida normal’”, acredita.
Aliás, o afastamento familiar também é um fator de impacto negativo para os profissionais da linha de frente. Nesse um ano de pandemia, Angela se encontrou com sua família apenas duas vezes. Neste ano, só tiveram encontros remotamente. “Não vi meus pais, avós, não vi as pessoas que amo. Moramos na Capital somente eu e meu esposo. Então meu vínculo é somente nós dois enfrentando esse caos todo. Lógico que a tecnologia nos aproxima muito, mas o que continua provocando sofrimento é o distanciamento físico da família”, desabafa.
Vacina é a solução
Sem focar no aspecto político, Angela faz críticas à falta de gestão do governo federal na condução da pandemia. Ao destacar que o Brasil teve um privilégio de ver a pandemia começar do outro lado do mundo e de poder aprender com a experiência de outros países, lamenta que os governos tenham encarado como se o problema nunca fosse chegar no país. Veio então a primeira onda, “e já foi avassaladora”, depois a segunda, com variantes como no Reino Unido. “E a segunda onda chega em Manaus, acentuada, devastadora, matando milhões de brasileiros e a gente de novo tem essa posição de imparcialidade, de falta de liderança frente a alguns processos, principalmente a vacinação."
Ela lamenta que o Brasil tenha ignorado, por tanto tempo, a negociação das vacinas. “Quando as indústrias farmacêuticas começam a ofertar as vacinas, ainda em agosto de 2020, o país ignorou dizendo que só ia comprar quando estivesse realmente preparado para tal, e hoje a gente vê esse caos. Nosso país é muito grande e precisamos de uma estratégia de vacinação e imunização muito mais inteligente em relação às áreas de maior vulnerabilidade do nosso país, e isso não vem acontecendo. Nós colhemos o fruto talvez da incompetência técnica e científica, da falta de credibilidade científica que nós assistimos diante dos nossos olhos no nosso país.”
Neste atual “cenário preocupante e devastador”, com variantes do vírus que deixam a transmissibilidade da doença muito maior, ela entende que a vacina é a solução. “Precisamos, enquanto população, batalhar para isso, lutar pela imunização, porque só ela vai nos dar a segurança e tranquilidade que a gente precisa e a esperança de voltar à normalidade, aliada, é claro, à manutenção das medidas preventivas como distanciamento social, uso de máscaras e a higienização de mãos frequentemente”, afirma. “Precisamos manter os cuidados mesmo com a campanha de vacinação em andamento, ainda é cedo para relaxar, precisamos de medidas mais rigorosas coordenadas para que a gente vença mais esse momento de extrema vulnerabilidade social, de saúde pública e de gestão do nosso país”, finaliza.
“Nem no início da pandemia eu atendi tanto sintomático respiratório”
Mesmo distante do colapso vivido pelos hospitais e das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) da Capital, a enfermeira Beatriz Antunes não deixa de sentir a realidade de suas colegas de profissão. Ela trabalha em um posto de saúde da zona Sul de Porto Alegre, a Unidade de Saúde Guarujá, onde é enfermeira há quatro anos.
Conforme Beatriz, o posto só não está superlotado porque a equipe tem feito o máximo que pode para atender rápido. “É um trabalho cansativo, porque o dia todo temos que falar para os pacientes sobre a bandeira preta, para não vir na unidade por qualquer coisa, somente em casos de urgência. Se não é esse trabalho diário e de formiguinha, lota mesmo”, conta.
A enfermeira comenta que ouve de colegas a situação drástica vivida em outras comunidades, com UPAs lotadas. Segundo ela, mesmo no posto do Guarujá, diariamente, chega algum paciente sintomático, e a situação piorou muito nos últimos dias. “Nem no início da pandemia eu atendi tanto sintomático respiratório. Está muito cansativo. E com a vacina temos que realocar profissionais. Agora temos apenas dois afastados, mas tivemos ocasiões em que tivemos cinco colegas afastados.”
Outro fator que atinge equipes em hospitais, UPAs e postos também acontece entre os colegas de Beatriz, a contaminação dos trabalhadores. Ela conta que quatro colegas já testaram positivo para a doença, sendo dois médicos, uma dentista e uma técnica em enfermagem. “Uma médica ainda está afastada. Os familiares da técnica estão internados, pai e irmão. Os familiares de todos que positivaram também positivaram. Foi bem caótico”, comenta.
Em relação às pessoas que parecem ignorar a pandemia, Beatriz diz que fica muito triste. “Passou o momento da raiva, eu tenho vontade de chorar o tempo todo quando penso nisso porque a gente tem se matado de trabalhar e para educar a população sobre os riscos e também se manter bem para ouvir quando alguém entra na sala dos sintomáticos para falar de algum familiar internado aos prantos”, desabafa.
A enfermeira compartilha que é horrível a sensação de saber que os hospitais e as UPAs estão lotados, que os profissionais de saúde estão exaustos e que não tem número suficiente de trabalhadores de saúde para atender à demanda necessária. “Eu quase choro quando entro na sala dos sintomáticos com um idoso porque sei da realidade de Porto Alegre. Por dentro fico pedindo para não ser covid”, conta.
Para Beatriz, é somente a superação e a resiliência que afastam a vontade de desistir de tudo quando ela vê alguém que não se importa com a atual gravidade da situação. “Acho que a gente tem que ter algo no fundo que faz resistir e informar todo o possível, nos mínimos detalhes, para a população se conscientizar”, conclui.
*A primeira conversa com Beatriz ocorreu no dia 4 de março, ao publicarmos a matéria, ela mandou uma atualização da situação.
De acordo com ela, agora o posto está recebendo pacientes que estão com saturação baixa, tosse com sangue, mais graves. Que precisariam de um leito "e a gente fica rezando pra que tenha", desabafa. De acordo com ela, se antes não havia uma situação tão grave em comparação com outras unidades, agora o posto em que ela trabalha precisou isolar uma sala na unidade para deixar os pacientes no oxigênio enquanto eles esperam liberar uma ambulância da SAMU para levar a algum hospital que os receba. "Está bem mais estressante. E vários colegas trabalhando final de semana para desafogar as UPAs e emergências hospitalares. O quadro muda muito rápido", ressalta.
“Chorar, tomar fôlego e continuar”
“A pandemia é uma grande onda, um oceano. E está cada vez pior”. A afirmação é da enfermeira Martina Zucchetti, em entrevista à revista Marie Claire. Com 30 anos de idade, Martina se formou em 2017. Ela fez residência/especialização no HCPA em paciente crítico, até fevereiro de 2020. Em março, começou a trabalhar na UTI do Hospital Moinhos de Vento, também em Porto Alegre, onde ficou até dezembro. Ela conta que 10 dias depois de iniciar no hospital estouraram os primeiros casos de covid-19. Desde de junho de 2020, trabalha no HCPA e, há três meses, no Grupo Hospitalar Conceição.
Ela é um dos exemplos citados por Angela, de profissionais que trabalham em duas instituições e estão na linha de frente da covid-19. Martina é também uma das inúmeras profissionais de saúde que usaram as redes sociais para relatar a situação vivida por quem está na linha de frente.
Após fazer um plantão de quatro dias, publicou um relato em sua conta no Instagram em que revela que foram inúmeros os momentos em que ela e seus colegas pensaram que o cenário não podia piorar, mas ao contrário, piorava.
“Nunca imaginei ter que falar pra um cara de 40 anos - hígido - que ele precisava de UTI (leia-se ventilação mecânica), mas que no momento não tínhamos como lhe oferecer um leito e a partir disso traçamos estratégias para que ele aguentasse ‘só mais um pouco’; não imaginei estar com todos os pacientes da UTI intubados; com mais da metade pronado; não imaginei ter que pronar duas gestantes - ambas na casa dos 25 anos - com todo o arsenal para uma cesária de urgência montado, caso fosse necessário; não imaginei ter pacientes na faixa etária entre 20-55 anos, sem comorbidades, ocupando a maioria dos leitos disponibilizados (“covid só dá em idosos, eles disseram”); não imaginei ter que parar no meio de um plantão pra sentar na escadinha que usamos como auxílio na reanimação dos pacientes durante um atendimento a PCR pra chorar, tomar fôlego e continuar (...)”, diz o relato.
Martina diz não se arrepender das coisas que abdicou nesse tempo, porque foi por escolha própria. Mas afirma que a única coisa que faz, há um ano, é trabalhar. “É trocar o crachá e ir de um hospital pra outro em modo automático; é não ver minha família; é tomar ansiolítico; é engordar muito ou emagrecer muito; é nem saber direito o que sentir, mas seguir.”
Ela afirma que pensou muito antes de fazer tal manifestação em sua rede social, “afinal lutar contra a ignorância e o negacionismo das pessoas se torna, muitas vezes, mais desgastante do que passar 12h/24h/36h de plantão”. E conclui com um apelo: “procure se informar por fontes confiáveis; converse com as pessoas que estão trabalhando incansavelmente com esses pacientes e sanem as suas dúvidas; não reproduza discursos infundados, se certifique do que é verdade e do que é possível ou não de acontecer; e, mais do que nunca, se proteja e proteja os seus… fique em casa”.
*Pronar: virar o paciente de bruços para permitir que a parte superior dos pulmões se expanda com mais propriedade. A manobra exige cerca de sete profissionais da saúde.
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Edição: Katia Marko