Rio Grande do Sul

LINHA DE FRENTE

“A coisa mais preciosa que temos é a vida, por isso mantenhamos o distanciamento” 

Alerta é de técnica de enfermagem, profissão que está entre as mais expostas ao vírus nos hospitais

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O cenário de desgaste trazido pela pandemia afeta a vida de todos os profissionais da área da saúde - Foto: Michael Dantas/AFP

No Rio Grande do Sul, a primeira vítima fatal da covid-19 entre os profissionais de saúde foi a técnica de enfermagem do Grupo Hospital Conceição (GHC), Mara Rúbia Silva Caceres, 44 anos, no dia 7 de abril de 2020. “Era uma moça que tem uma história linda, ela foi da higienização, da terceirizada, fez concurso para técnica e passou. Ela foi estudando, galgando, e ali ela estava onde sempre sonhou, cuidando do outro”, conta Claudete Rodrigues Miranda, técnica de enfermagem do GHC. 

Um ano após o primeiro caso confirmado de covid-19, o RS vive seu momento mais crítico, com um número elevado de contaminação e de óbitos e a superlotação dos leitos de Unidade de Tratamento Intensiva dos hospitais. Até o momento mais de 713 mil pessoas já foram contaminadas no estado. Destas, 27.961 são profissionais da área da saúde (não há dados discriminados por categorias). Já foram 14.087 vidas perdidas no território gaúcho. Estima-se que entre 15 e 20 sejam de profissionais de saúde. 

“Vamos nos cuidar, quanto mais rápido fizermos isso, mais cedo teremos nossas vidas de volta” 


Josiane: “Eu me sinto totalmente desgastada, física, mental, e emocionalmente" / Arquivo pessoal

Técnica em enfermagem há quatro anos, Josiane Beatriz Carvalho atua no Hospital Mãe de Deus, unidade particular de Porto Alegre. Assim como outras seis unidades hospitalares da capital, o Mãe de Deus vem enfrentando a superlotação de leitos de UTIs. Nesta quinta-feira (11), o hospital registrava lotação de 111,43%.  

Josiane trabalha em uma emergência, que como ela mesma descreve é sempre uma caixinha de surpresa. “Assim como está vazia, logo está cheia com os pacientes vindo da rua, das ambulâncias. Sempre foi um ambiente de muito movimento, onde a adrenalina vai lá em cima. Agora, com a pandemia, com a superlotação dos hospitais, aumentou muito a nossa demanda de trabalho. Isso porque vimos muitos colegas adoecendo, técnicos de enfermagem, médicos, enfermeiros. Vimos nossa equipe toda adoecendo, e assim tivemos que, muitas vezes, trabalhar dobrado, trabalhar com hora extra, e muitas vezes sob pressão, porque a demanda aumenta muito. Estamos cansados”, desabafa. 

Conforme avalia a técnica, no início as pessoas até que levaram um pouco a sério e tomaram as medidas necessárias, como uso de máscaras, álcool gel, higiene de mãos e isolamento social. “Depois, com o tempo, com o próprio governo dando aquele relaxamento no isolamento social, as pessoas foram se largando bastante e, com isso, elas foram deixando de adotar as atitudes recomendadas”, aponta.  

Ela diz entender que as pessoas estejam cansadas de estar isoladas, que queiram sair e curtir, que estejam cansadas da pandemia. Contudo, como destaca, o momento é de, “infelizmente, aprender a conviver com esse vírus e saber lidar com ele. Temos que usar máscara, fazer o distanciamento social, isolamento, higienização”.  

Josiane afirma que sempre teve uma vida bastante ativa socialmente e que teve que mudar completamente sua rotina, que hoje se resume em ir do trabalho para casa e de casa para o trabalho. Ao responder que sentimentos tem ao ver o relaxamento por parte da população nas medidas de combate ao coronavírus, diz que lhe vem um misto se sentimentos: dor, raiva, sofrimento, desrespeito com os profissionais da saúde. 

“Eu me sinto totalmente desgastada, física, mental e emocionalmente, porque aumentou muito a nossa demanda e a sobrecarga do nosso trabalho, somando a tudo que a gente vê dentro do hospital. Sem contar o que nos entristece muito, quando vem esses feriadões e vemos nos noticiários o pessoal na praia, curtindo nas festas, como se a pandemia não existisse. Isso para nós é uma afronta, uma falta de respeito porque, se a gente pudesse, estaríamos em casa, se pudéssemos estaríamos nos protegendo. A gente deixa a nossa família em casa para ir para o hospital cuidar da família do outro e aí a gente vê que o outro não está nem aí. Isso nos deixa muito triste, isso desgasta”, desabafa. 

Na sua opinião, se o governo tivesse adotado estratégias mais rígidas desde o início, a situação poderia ser diferente. “Se tivesse sido um pouco mais ríspido, teria conseguido controlar um pouco mais”, acredita. Mesmo com o cansaço e o desgaste, diz que tudo isso vai passar. “Vamos nos preservar, nos cuidar. Quanto mais rápido fizermos isso, mais cedo teremos nossas vidas de volta”, finaliza. 

“Acreditamos que as coisas vão mudar, mas agora o cenário é devastador”


Claudete ao ser imunizada / Arquivo Pessoal

“Fomos contaminados nesse período, tivemos vários colegas que foram internados, eu fui uma que acabou se contaminando depois de seis meses do início da pandemia”, relata a técnica em enfermagem Claudete Rodrigues Miranda. Atuando na área há 27 anos, Claudete, que também é vice-presidente do Sindisaúde-RS, há duas décadas trabalha no GHC. 

Mesmo atuando no setor onde os pacientes tem perfil neurológico e a cardiopata, ela acabou se contaminando em agosto do ano passado. “Eu só ia de casa para o trabalho e do trabalho para casa, meu trabalho sindical, inclusive, era remoto. Estava em isolamento social. Então foi no trabalho que me contaminei”, conta Claudete, que foi acometida por uma sequela em decorrência da doença.

“Em novembro internei. A herança da covid 19 é muito mais impactante que a própria doença, de quando o paciente não desenvolve a questão clássica e grave como ser entubado. Muitos de nós que fomos acometidos pela covid temos problemas vasculares, inclusive de saúde mental. Eu tive uma trombose e tive que ser internada, porque o coronavírus traz esse questão de coagulação, esse é um tipo de sequela que tem afetado muitos pacientes”, expõe. 

Esse um ano de pandemia trouxe impactos para a vida dos profissionais da saúde e de seus familiares. Conforme aponta a técnica, muitos dos trabalhadores tiveram que ficar longe de seus filhos, maridos, sem dar até hoje um abraço ou um beijo, sem ver presencialmente seus entes queridos. “A expectativa lá do início da pandemia era que após um ano tivesse outro cenário. Infelizmente não aconteceu. Agora nos deixa muito piores do que no início, onde a gente tinha medo, expectativa de que podia mudar. Hoje temos um cenário devastador, onde temos duas, três vezes o número de mortos, agonia de estar vendo hoje crianças internadas, adultos, jovens e adolescentes entubados”, aponta. 

Impacto do negacionismo do governo

Claudete conta que são inúmeros os relatos de colegas que trabalham com ela há anos, que estão na emergência da covid, atendendo na internação da covid e dividindo suas frustrações. “Toda equipe está assim, não tem plantão que não se derrube uma lágrima, porque é um cenário de guerra devastador. Acreditamos que as coisas vão mudar, mas agora o cenário é devastador”, reitera, pontuando que, ainda por cima, há o problema do governo, que negou a doença, minimizou o problema e hoje ainda diz que é "mimimi". 

Tal postura, complementa ela, tem impacto sobre o número de suicídios, inclusive na categoria. “Nesses últimos 30 dias, as pessoas vem sofrendo pressão. Antes, por mais que tivesse pressão no trabalho, tu conseguia chegar em casa, tomar banho, abraçar teu filho, tua família, hoje não", disse, emocionada. "Hoje não temos para onde correr. Pessoas que tiraram suas vidas porque não têm para onde correr, não têm colo para sentar, braço para chorar, porque a gente também não pode estar levando o vírus para outra pessoa. Temos só a nós mesmos, por mensagem, por telefone, como válvula de escape da pressão que é todo dia”, desabafa, acrescentando que muitos colegas deixaram o cargo. "Muitos colegas não quiseram se manter, muitos se aposentaram e foram embora porque é uma escolha entre vida e morte", complementa.

Ela conta ainda que a esposa do seu filho está grávida e que ela não tem muito contato porque, conforme destaca, o Brasil está em primeiro lugar no mundo em perdas de gestantes por covid-19. “Como eu vou estar expondo ela e meu neto a isso? É muito difícil esse impacto na minha vida, na vida de cada um que eu tenho visto o sofrimento. É um impacto muito grande, mas nesse momento o pior é a frustração de ver que na rua muitas pessoas não usam máscara, muitas não respeitam. Eu não coloco a culpa naquela pessoa que ignora o que é de fato, porque temos um governo que não orienta o uso da máscara, que nega a usar máscara, que não usa máscara em público, e o governo federal e municipal têm feito muito isso”, ressalta, destacando que, no caso do estado, mesmo não sendo do mesmo campo ideológico que o seu, o governo tem feito o enfrentamento.

Ela faz um adendo sobre a vacina, ressaltando que mesmo vacinada a pessoa pode ainda estar transmitindo a doença. “A coisa mais preciosa que temos é a nossa vida, por isso, para preservá-la, é preciso que se mantenha o distanciamento, o uso de máscara. São medidas de higiene e de segurança para sua vida e da sua família. Precisamos de atitude, de segurança e conscientização da população". 


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Edição: Marcelo Ferreira