Rio Grande do Sul

LINHA DE FRENTE

 “O momento não é nem mais desanimador, é desesperador”, afirma Thais Butteli  

Em entrevista ao BdFRS, a médica intensivista conta que as equipes estão exaustas e a escolha é de quem se tratará

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Equipe da UTI do HCPA vem sentindo o impacto da gravidade do momento. Hospitais estão trabalhando acima da sua capacidade - Arquivo Pessoal

“Há doenças piores que as doenças", escreveu o poeta português Fernando Pessoa, no livro Cancioneiro. Em tempos de pandemia a citação serve para traduzir o momento que estamos vivendo. Para além da luta contra a covid-19, hospitais trabalhando acima da sua capacidade, há ainda uma parcela da população que segue ignorando a gravidade do momento. E um presidente que diz “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”

No estado, o mês de março começou seguindo o enunciado de fevereiro. Vivemos o colapso do sistema de saúde. A ocupação das Unidades de Tratamento Intensivo (UTIS) extrapolou sua capacidade. Na véspera de completar um ano da pandemia, o Rio Grande do Sul está com 104,4%, sendo 3.178 pacientes em 3.045 leitos de UTI. O sistema privado que vem há semanas padecendo de superlotação, começa a refletir de forma gravíssima no Sistema Único de Saúde que está a beira de sua capacidade limite, 99,7%. 

Por trás da crueza dos números, vidas, famílias, amigos. Na linha de frente, profissionais de saúde trabalhando além do seu limite. Resilientes (capacidade que cada pessoa tem de lidar com seus próprios problemas, de sobreviver e superar momentos difíceis, diante de situações adversas e não ceder à pressão, independentemente da situação), esses profissionais vêm sentindo o impacto da gravidade do momento, como o caso da médica intensivista Thais Butteli, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, referência no combate à pandemia. 

Formada em 2006, tem toda sua carreira profissional ligada ao HCPA. Desde fevereiro de 2012 trabalha como médica intensivista contratada. Casada também com um médico intensivista, é mãe de Lucas de sete anos. Em entrevista ao Brasil de Fato RS, ela conversa sobre a situação pela qual passa o estado. 

“A gente tem deixado tantas mensagens que eu tenho dificuldade em saber o que realmente chega na população. Eu gostaria que eles entendessem que a gente está aqui tentando dar o nosso melhor e estamos trabalhando além da capacidade física e mental de cada um de nós, para tentar salvar o maior número de pessoas possíveis, porque agora a gente não consegue falar em salvar todos e nem quase todos, é o maior número de pessoas possíveis. E o que a gente precisa, para que isso pare de subir dessa maneira que a população permaneça isolada, não é mais distanciada, é isolada em casa”, desabafa.

  Veja abaixo a entrevista completa


"O ambiente de terapia intensiva é um ambiente que a gente dá muitas más notícias" / Arquivo Pessoal

Brasil de Fato RS - O RS tem vivido o pior momento desde o início da pandemia, com ocupações beirando os 100% da sua capacidade. O Hospital Moinhos de Vento, alugou um contêiner para os mortos. Em relação ao início da pandemia, como descreverias o momento que estamos vivendo agora? 

Thais - A gente tem uma sensação de revolta, revolta com a população, revolta com os gestores que deixaram a situação sair do controle e chegar nesse nível que estamos hoje. E temos uma sensação de impotência gigante. Acho que os profissionais de saúde todos estão com essas duas sensações muito afloradas nas últimas semanas, porque a gente se vê trabalhando 24 horas por dia, sete dias por semana, e a impressão quando a gente sai de dentro do hospital é que não conseguiu ajudar 10% das pessoas que a gente gostaria de ter ajudado. Tem ficado muita gente sem conseguir acesso ao leito de terapia intensiva, tem pacientes dentro do hospital que não conseguem chegar ao leito de terapia intensiva. 

Isso para quem vinha trabalhando desde março do ano passado, e sabendo que a única maneira disso não acontecer seria com isolamento, distanciamento e com restrição mesmo das atividades causa revolta e uma sensação imensa de impotência. Esses são os sentimentos que preponderam.    

 BdFRS - Estando na linha de frente desde o início da pandemia no estado, como a tu descreverias a evolução da doença, perfil dos pacientes?

Thais - Nós tivemos um momento lá em julho, agosto, no primeiro pico grande da doença que aqui conosco eram pacientes um pouco mais idosos. Tínhamos pacientes com 50, 40 anos, chegamos a ter alguns pacientes com 30. Agora a impressão que os profissionais de saúde têm, isso ainda não está documentado em estudo, é que a população é mais jovem e que o quadro parece mais grave, mais precoce. 

E houve uma grande diferença de pico, lá em julho, agosto, foi uma elevação continua ao longo dos dias, um crescente contínuo, e a gente foi vendo a curva subindo, mas não do jeito que a curva subiu do Carnaval para cá, que é uma curva de linha reta para cima quase fazendo 90 graus. Isso além de termos visto antes, durante a pandemia, nem esperávamos por esse crescimento dessa maneira, isso pegou de surpresa a todos.        

Certamente muitos de nós, senão todos levarão cicatrizes desse momento para vida, ninguém vai sair igual era antes de passar por isso tudo que estamos passando, pelas escolhas, pela decisão de quem é que vai viver e quem não vai ter chance.

BdFRS -  Nos conte como está a realidade dentro do hospital neste momento de altíssima alta de internações e de casos mais graves. Como as equipes estão fazendo para dar conta de tamanha demanda?

Thais - Nós não estamos dando conta da demanda. Estamos há duas semanas tendo que escolher qual paciente vai ficar com o único respirador que se tem naquele momento, qual paciente que a gente vai deixar esperando por um leito de terapia intensiva mais do que o outro. Qual paciente que está no posto de saúde e que a gente vai aceitar no hospital hoje para acessar um leito de emergência porque a gente não consegue receber todos que precisam. 

Então é uma escolha quase que contínua de quem vai viver e de quem não vai conseguir nem chegar perto de um leito de terapia intensiva, e talvez nem perto de um leito de hospital. Tem pacientes nos postos de saúde que estão ficando nos postos, pacientes de 55/60 anos, e que a gente não consegue escolhê-los para entrar no hospital. Sabemos que talvez estejamos decretando o destino daquele paciente nos próximos dias.     

BdFRS- Que impactos esse um ano de pandemia trouxe para tua vida, pessoal e profissionalmente? Como te sentes mental, fisicamente? 

Thais - A gente sente uma fadiga extrema, nos últimos dias a fadiga física e emocional se intensificaram muito por causa dessas escolhas que a gente tem que fazer e que nunca esperamos ter que fazer nessa magnitude. Ter que deixar pacientes sem comorbidade alguma esperando por um leito de CTI e sabendo que aquilo é definidor para o prognóstico daquele doente. 

A gente sai daqui com uma sensação de desgaste físico e emocional gigante, muitos de nós vão muito pouco para casa, muitos de nós ficam 20 horas no hospital, vai para casa para dormir, 4/5 horas e retorna. Então é desgastante para a família inteira. Meu marido e eu somos os dois intensivistas, então em casa tem mais isso, os dois estão aqui, os dois estão o tempo inteiro envolvidos com isso. É desgastante, é uma fadiga extrema física também porque a gente passa o dia inteiro tentando dar conta de uma demanda que não se consegue dar conta em nenhum momento. 

É bastante desesperadora a situação, não é nem mais desanimadora, é desesperadora. Nos causa uma sensação de desesperança.      

É uma escolha quase que contínua de quem vai viver e de quem não vai conseguir nem chegar perto de um leito de terapia intensiva, e talvez nem perto de um leito de hospital.     

BdFRS - Na última terça-feira (2), tanto o estado quanto o país tiveram recorde de mortes em um período de 24 h. Os hospitais estão lotados e com casos mais graves entre jovens sem comorbidades. Como médica tu tens o preparo técnico pra lidar com a gravidade desses pacientes. Para além da questão técnica, como fica o lado psicológico em meio a essa pressão?

Thais - A gente sempre conversa e diz que sai do hospital, mas que o hospital não sai da gente. Saímos daquela sensação que deixamos um pouco de nós ali cada dia que a gente perde um jovem, fica um pouco de nós junto com aquele jovem que se perdeu ali. 

Recebemos durante toda a residência, e mesmo no dia a dia treinamentos continuados de comunicação de más notícias. Então o médico intensivista é um médico que é treinado para dar más notícias, porque o ambiente de terapia intensiva é um ambiente que a gente dá muitas más notícias. Então a gente já tem esse treinamento e tem uma adaptação e uma resiliência para enxergar e para lidar com o sofrimento humano, mas esse tipo de situação atual ela perpassa qualquer treinamento que se possa ter tido, qualquer resiliência que qualquer pessoa possa ter tido. É uma situação que nenhum intensivista imaginou vivenciar. 

A gente sai daqui arrasado, muitas vezes sai do hospital chorando, fica um pouco de nós em cada um que falece naquele dia. Certamente muitos de nós, senão todos levarão cicatrizes desse momento para a vida, ninguém vai sair igual era antes de passar por isso tudo que estamos passando, pelas escolhas, pela decisão de quem é que vai viver e quem não vai ter chance. Porque não são só nomes que a gente enxerga ali, são pessoas que têm uma história, que têm uma família, que têm gente que ama esperando em casa. 

Então é difícil, muito complicado para nós, e é como eu te disse, a gente sai daqui, mas um pouco de nós via ficando com aqueles que falecem.                        


Emergência e CTI covid-19 do Hospital de Clínicas de Porto Alegre HCPA / Divulgação

BdFRS - Como tu analisas as medidas adotadas pelo governo para combater a pandemia, tendo em conta o cenário atual? Pela tua experiência o que deveria ser feito?

Thais - Eu acho que o governo estadual instituiu um programa de distanciamento que foi um programa baseado em evidências. Acho que a gente teve um programa de bandeiras que tinha uma proposta de ser adequado, ideal e que se fosse seguido ele teria dado certo. O problema é que a gente não teve por parte dos prefeitos respeito ao embanderamento, por exemplo, em Porto Alegre não houve respeito ao embanderamento, em muitas situações as pessoas continuavam nas ruas, continuava o comércio aberto, continuavam pessoas circulando sem máscaras pela rua. 

Então eu acho que o desrespeito da população às medidas, o desrespeito dos prefeitos ao plano instituído pelo governo, faz com que a gente viva hoje essa situação que é calamitosa no RS. Mas nós temos um governante maior do Brasil que também não contribui em nada para ajudar os profissionais da saúde a levar isso adiante, a levar essa mensagem adiante. Quando um presidente da República afirma que essas coisas todas são mimimi, que a gente tem que parar de chorar e tem que seguir em frente, não fechar nada. Que tipo de mensagem o profissional da saúde vai conseguir fazer chegar à população quando o governante maior do país, quando o presidente da República diz que as coisas não são bem assim, a gente não está vivendo de fato o que estamos vivendo. Então é bastante complicado para nós que temos uma voz muito pequenininha diante disso tudo, mas que vemos que aquela mesma pessoa que está vivendo um negacionismo e fazendo uma teoria de conspiração, na semana seguinte pode estar aqui na nossa frente precisando de um respirador e a gente não tem para oferecer. 

Isso é muito revoltante para cada um dos profissionais da saúde.   

Independente do que acha o governo federal a gente precisa da ajuda da população, são os profissionais da saúde que estão pedindo agora.  

BdFRS - Há outra questão que alguns governantes têm adotado como medida em relação às UTIS a ampliação de leitos, até quando isso vai funcionar? 

Thais - Isso já não funciona, como tu podes ver os hospitais todos de Porto Alegre todos os dias se reúnem, às 11 horas da manhã, para discutir os casos prioritários que estão nos pronto atendimentos que precisam de UTI urgente para definir quais daqueles pacientes naquele dia vão para um, para outro hospital. 

Todos os hospitais da Capital duplicaram ou triplicaram a sua capacidade física de atendimento. Ter um leito disponível não quer dizer que tu tenhas atendimento para o paciente. O leito disponível precisa de todo um equipamento que já é escasso, por exemplo, o Hospital de Clínicas hoje não tem nenhum respirador, se chegar um paciente agora precisando de ventilação mecânica eu não tenho respirador para colocar nesse paciente. 

Então o leito ele não nos diz nada, a gente está com 170 pacientes em ventilação mecânica hoje no Hospital de Clínicas. Então eu preciso de 170 ventiladores que é o máximo que eu tenho, não tenho mais ventilador na casa. 

E além disso não é qualquer médico que cuida desse doente que está ali. O que a gestão precisa entender é que, por exemplo, o paciente que está com tumor no cérebro ele não pode ser operado por um médico de joelho. Então o paciente que está dentro de uma UTI não pode ser cuidado por um médico que não fez tratamento para atender aquele paciente dentro do CTI. A gente faz cinco anos de residência médica para entender o funcionamento do ventilador, para saber como eu ventilo aquele paciente sem que ele tenha dano pulmonar permanente, para saber todas as drogas que eu preciso usar naquele paciente e em que dose, qual dose que eu uso em devida situação, qual eu uso em outra. 

Então eu não posso ter um médico de joelho ou que opera cabeça atuando em um leito de UTI e mexendo em um ventilador mecânico como se isso fosse resolver o problema daquele doente, só é decretar o óbito daquele paciente. 

É muito ilusório achar que o aumento do número de leitos, e botar umas camas com respirador ruim do lado do paciente vai resolver o problema dele. A demanda respiratória desse paciente é tão imensa que respiradores de moderada performance não dão conta. Eu preciso de respirador de alta performance para que ele tenha alguma chance de sobreviver, e a chance já é pequena, 50% dos que vão a ventilação mecânica morrem.

O nosso discurso do que a população entende está muito distante. Eles acham que ter um leito e um médico do lado do leito com o paciente deitado ali vai resolver o problema, não. Com o melhor especialista, com o melhor ventilador, em um hospital que consegue oferecer todo cuidado e assistência com uma equipe multiprofissional, o paciente que vai para ventilação mecânica morre em 50% das vezes, independente de idade, sexo, comorbidade. Um paciente sem qualquer uma dessas coisas é 100% de mortalidade, ele vai falecer           
       
BdFRS - Temos visto também um relaxamento cada vez maior da população, onde muitas pessoas não se cuidam, que sentimentos isso te traz? Que mensagem tu deixarias para a população?

Thais - Absoluta revolta. Eu tenho vontade, às vezes, eu saio daqui e passo por um parque da cidade que é grande e eu tenho vontade de parar em frente do parque descer e mostrar algumas fotos do que a gente vive aqui dentro todos os dias e dizer ‘semana que vem pode ser um dos teus que está nesta situação e eu não tenho respirador para doar para ele’. Essa é a vontade que eu tenho cada vez que eu passo pelo parque e vejo as pessoas sentadas em volta de uma esteira tomando chimarrão e trocando a cuia, que é o que eu vejo todos os dias quando vou para casa. 

A gente tem deixado tantas mensagens que eu tenho dificuldade em saber o que realmente chega na população. Eu gostaria que eles entendessem que a gente está aqui tentando dar o nosso melhor e estamos trabalhando além da capacidade física e mental de cada um de nós, para tentar salvar o maior número de pessoas possíveis, porque agora a gente não consegue falar em salvar todos e nem quase todos, é o maior número de pessoas possíveis. E que a gente precisa, para que isso pare de subir dessa maneira que a população permaneça isolada, não é mais distanciada, é isolada em casa. Que só ponha o pé para fora de casa para fazer o que nem é essencial, o que é vital naquele dia, que não saia para passear, que não saia para se reunir com ninguém. 

Mais do que nunca, eu sei que é super difícil ficar isolada, mas a gente está aqui tentando dar o nosso melhor para cada um de vocês, e vocês precisam nos ajudar, se não isso não vai parar. O meu apelo é sempre o mesmo. Já que não temos um governo federal que nos ajude fazer entender o que os profissionais de saúde estão passando, o que as famílias que têm doentes aqui dentro estão passando, o que os pacientes que estão doentes estão passando, se a gente não tem um governo que consiga entender a dimensão disso tudo, que a população possa fazer seu julgamento crítico, que a população possa olhar para o lado, ver o que está acontecendo. Procurar por algum familiar que tenha dito a doença para perguntar como é que foi, como é que se sentia, o que vivenciou aqui dentro do hospital. Isso é muito importante para que a gente forme uma consciência coletiva do que está acontecendo, independente do que acha o governo federal a gente precisa da ajuda da população, são os profissionais da saúde que estão pedindo agora.  

Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma.
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
                          [...]
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

Pessoa, Fernando. Cancioneiro (1935)


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Edição: Katia Marko