A dimensão catastrófica que a pandemia assumiu no Brasil era evitável
Pela memória de Michele Sandri
Em mais uma atividade pública, o presidente Jair Bolsonaro voltou a criticar as medidas de isolamento social para combater a covid-19, demonstrando todo seu desprezo pelos fatos e pela realidade. “Chega de frescura, de mimimi, vão ficar chorando até quando? Temos que enfrentar os problemas”, disse ele no dia 4 de março, deste 2021.
Eu vou chorar para sempre.
Não choro somente, como a catarse socializada pelo teatro grego antigo, ou como a tristeza amarga, insuperável e profunda da perda de frações de nossa vida e memória que se vão quando morre um amor, quando morre alguma sentimentalidade.
Choro pelas vítimas do Holocausto perpetrado pelo nazi fascismo durante o século XX, choro quando me deparo com o genocídio da diáspora africana da imigração forçada pelo escravismo mercantil dos séculos XVIII e XIX, choro pelas vítimas palestinas, curdas e saharauis dos campos de refugiados. Choro pelos mortos, desaparecidos e torturados pelas ditaduras.
Choro acima de tudo como linguagem, como transmissão de signos. Choro com sentido ético e político, como denúncia, indignação. Choro, enfim, com objetivo. Choro manifestamente quando vejo, leio ou escuto aqueles que produzem a morte, e que a sistematizam como intenção. Quando leio sobre Adolf Eichmann[1] ou vejo Amon Goth[2], sociopatas imputáveis de um genocídio planejado; choro frente a apologia ao extermínio e à tortura; choro indignado por conta dessa maldade construída, esta maldade calculada e, em estado de indignação absoluta, choro por essa maldade ser repetidamente consentida.
A dimensão catastrófica que a pandemia assumiu no Brasil era evitável. Foi uma construção social intencional que transformou a indiferença em política, o individualismo em virtude e o fascínio pela morte em método. Este conjunto de indiferença, individualismo e morbidez faz a base da retórica política do governo Bolsonaro.
Tomou tal dimensão por razão objetiva da política do governo federal. Os cortes austericidas nos investimentos em proteção social na saúde e assistência social, a negação da potência pandêmica e infecciosa do coronavírus e suas variantes, a negativa em adotar medidas com base científica e técnica, o combate sistemático às medidas de proteção como uso de máscaras e isolamento social, a incúria e improbidade na oferta de vacinação anti-Covid, universal e imediata, a sugestão e propagação de uso de medicações ineficientes, diversionistas e não comprovadas cientificamente, compõem um conjunto de evidências que nos impõem afastar a ideia de despreparo ou incompetência. Trata-se de uma política de desaparecimento dos que seriam os mais fracos, uma eugenia não declarada.
Dando evidências cada vez mais nítidas de que a pandemia atingiu o nível catastrófico da atualidade em decorrência de uma política adotada por seu governo, Bolsonaro recentemente deu um passo a mais. Ameaçou governadores, e por decorrência prefeitos, de negar e obstruir repasses de recursos públicos para o combate à covid e à crise, caso tomassem medidas para o aumento do isolamento social, vedação de aglomerações e fechamento de atividades comerciais.
A pressão pela manutenção das atividades econômicas tem apenas resultados ideológicos e políticos, mantendo mobilizada uma base de empresários, trabalhadores precarizados e “profissionais liberais”, sendo absurdamente ineficaz para produzir resultados econômicos positivos. A negação do combate à pandemia matou inaceitáveis quase 300 mil pessoas, reduziu o PIB em 4,1% e desempregou, somente no ano de 2020, mais 8 milhões de trabalhadores. Quadro que somente não foi pior porque o governo Bolsonaro se viu obrigado, muito contra sua vontade portanto, a manter programas de transferência de renda e, principalmente, porque o SUS é maior que ele e que sua capacidade de destruí-lo. A política de Bolsonaro aumentou a crise econômica e sanitária no país.
Não choro, portanto, somente pela morte, choro fundamentalmente contra a intenção de matar. E chorarei indeterminadamente, ao menos enquanto ela for instrumento metódico da barbárie.
[1] ARENDT, Hannah. EICHMANN EM JERUSALEM. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[2] A Lista de Schindler, filme dirigido por Steven Spielberg, produção de Steven Spielberg, Gerald R. Molen, Branko Lustig, roteiro de Steven Zaillian, baseado na obra Schindler´s Ark de Thomas Keneally. Los Angeles, 1995.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko