“Quando não temos doações e transplantes, a culpa não é da população. Somos nós, os responsáveis pelo sistema, que realizamos alguma coisa errado!” Esta emblemática frase é do ex-coordenador da Organização Nacional de Transplantes da Espanha, Dr. Rafael Matesanz, responsável por levar aquele país para a liderança mundial nos transplantes. Ela é apropriada para muitas outras situações do nosso dia a dia, na gestão da saúde, e também em relação ao número de mortos pela atual pandemia, na nossa cidade, estado e país.

A saúde, dever do estado, vem sendo destruída no sistema de atendimento hospitalar na nossa Capital há alguns anos. Os leitos hospitalares e de UTI para atendimento de pacientes do SUS foram reduzindo gradualmente.

Mesmo com estruturas hospitalares de excelência para o atendimento desses doentes, o acesso para os que necessitam de atendimento especializado é cada dia mais difícil e a atual pandemia escancarou esta situação.

Vários hospitais e unidades de tratamento intensivo tiveram suas portas fechadas nos últimos anos, como o Parque Belém, Alvaro Alvim, Beneficência Portuguesa, ainda somada à redução do atendimento pelo SUS em hospitais filantrópicos.

A atual pandemia, que teve início na China em dezembro de 2019, atingiu gravemente outros países a partir de fevereiro de 2020, e, no mês de março daquele ano, tivemos o primeiro óbito no Brasil e a primeira internação hospitalar pela doença na Capital do Rio Grande do Sul. Apesar de alertas das sociedades médico científicas, baseado em conhecimento da situação grave em outros países, os gestores tomaram a decisão de tornar unicamente dois hospitais públicos federais de excelência como referência para o atendimento de vítimas graves da pandemia.

Os outros hospitais, que poderiam ampliar sua capacidade de atendimento de doentes graves, o fizeram muito tardiamente. Muitos estavam sem estrutura nenhuma para atender estes doentes e contribuíram, inclusive, para a propagação do vírus.

Esta estratégia, erroneamente adotada para o enfrentamento de uma pandemia dessas proporções, teve que ser revista, infelizmente com tempo precioso desperdiçado para devida organização destes atendimentos na rede hospitalar.

Um dos componentes do resultado do atendimento de doentes vítimas de uma pandemia é o melhor preparo prévio dos hospitais, com profissionais e equipamentos adequados. No momento em que os recursos e as equipes dos hospitais estão exauridos, é tarde para tomar essa providência. O momento oportuno para esta melhor organização se perde.

E é extremamente importante e fundamental relembrar que o leito de UTI deve ser a última barreira para enfrentar a pandemia do coronavírus. Mesmo com tratamento de excelência, a probabilidade de doente grave por coronavírus sobreviver é menor que 50%. As principais medidas consistem em restringir a transmissão do vírus, evitar aglomerações, promover o uso de máscaras e a higiene das mãos, detectar e isolar precoce os casos e contatos.

A população tem sido atribuída como responsável pelo aumento de casos e de mortes pelo covid-19 na cidade e no Estado, mesmo com grande sacrifício pessoal nos últimos tempos. O comportamento da população é diretamente relacionado às mensagens transmitidas por seus líderes, em todos os níveis.

A observância das medidas de distanciamento e o adequado preparo da rede de saúde para o melhor atendimento de todos são responsabilidades dos gestores. Estes que têm todas as ferramentas para promover as medidas sanitárias necessárias, de controle da pandemia e redução da transmissão desta doença de alta mortalidade e incapacidade.

As autoridades também têm as ferramentas e meios para promover a comunicação adequada com a população no momento em que medidas difíceis são necessárias.

Infelizmente, constatamos que opções erradas foram realizadas pelas nossas lideranças, em vários momentos da pandemia. A maior parte das mais de 13 mil mortes de gaúchos poderiam ter sido evitadas. O caminho certo nem sempre é o mais fácil. Contrariar interesses de alguns em nome do bem coletivo, humildade para escutar, enfrentar adversidades com determinação e não procurar outros culpados são posturas que há algum tempo não percebemos claramente nos nossos governantes.

As mortes da atual pandemia não são culpa da população.

* Cristiano Franke é médico, integra a diretoria científica da Associação de Medicina Intensiva Brasileira

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Extra Classe